Mundo Livre S/A, enfim livre da ditadura das gravadoras

Nessa entrevista, o músico Fred Zeroquatro relata o novo projeto do Mundo Livre S/A: uma coletânea ainda não-lançada que receberá o nome de “Combatsamba”. Ele dispara contra as grandes gravadoras que, em sua opinião, limitaram a criatividade de vá

Em entrevista concedida ao site da agência Carta Maior, Fred Zeroquatro, líder da banda Mundo Livre S/A, fala sobre o novo projeto do grupo, sobre o mangue beat de hoje e de quando o movimento surgiu, renovação na cena musical do Recife, sobre o selo idependente que lançaram e sobre indústria fonográfica.


 


Originária de Recife (PE), a banda Mundo Livre S/A fundou o movimento mangue beat, ao lado do músico falecido Chico Science e da banda Nação Zumbi. Na primeira parte desta entrevista, com uma postura incisiva e sempre política, Fred Zeroquatro fala da luta travada pelo Mundo Livre contra a indústria fonográfica, para que o grupo possa traçar seu próprio rumo no cenário musical brasileiro.


 


Quando o mangue beat estourou, vocês receberam propostas de grandes gravadoras?
FZ – Eu participei de uma reunião com o diretor da Sony, no Rio de Janeiro, quando as duas bandas [Mundo Livre e Nação Zumbi] tinham feito a primeira turnê pelo Sudeste.


Nessa reunião, a Sony fez uma proposta para lançar dois álbuns do grupo Chico Science e Nação Zumbi. Para nós, propôs que a banda entrasse numa coletânea com algumas músicas. Mas acontece que o Mundo Livre S/A já possuía dez anos de criação de música de garagem. Era tudo amador, mas havia material de sobra, até para gravar três discos. O Nação Zumbi assinou com a gravadora Sony.


Recebemos um sinal do selo Banguela, pertencente aos Titãs e com distribuição da Warner, que gostaria de lançar um álbum do Mundo Livre, com produção de Carlos Eduardo Miranda. Recusamos, portanto, a proposta da Sony, que queria que gravássemos três músicas numa coletânea. Pagamos um preço por isso, lógico.


Até então, as duas bandas tinham instrumentos musicais velhos, sem a menor condição de gravar. A primeira turnê do álbum da Lama ao Caos, do Nação Zumbi, foi uma coisa espantosa. Deu um salto de qualidade, com equipamentos novos e instrumentos melhores. O Mundo Livre S/A, no Banguela, não recebeu dinheiro a mais. Gravamos com os instrumentos alugados e com outros emprestados dos Titãs. Os shows foram feitos com os instrumentos velhos que tínhamos em Recife, sem a menor estrutura de apresentação profissional.


 


Mas foi uma fase ruim?
FZ – Pagamos um preço por não ter assinado com a Sony, mas acho que foi uma boa etapa da banda. Tivemos uma liberdade de gravar o álbum que o próprio Nação Zumbi não teve. Hoje eles admitem que o resultado do álbum da Lama ao Caos teria sido melhor se eles pudessem ter escolhido o produtor. Foi uma etapa importante, tanto pra eles quanto pra gente.


Fizemos um show no Aeroanta [Rio de Janeiro], na época. A Warner propôs um contrato multinacional para nós, contanto que usássemos tambores e que tivéssemos uma linda mulher nos vocais para cantar. A “axé music” estava em decadência e eles esperavam que o Mangue Beat suprisse as tendências do verão. Isso foi em 1994. Entre 1994 e 2000 tivemos uma seqüência de episódios com gravadoras multinacionais que foram hilários.


 


Acabou a ditadura das gravadoras?
FZ – Havia um controle absoluto da programação das rádios e dos festivais. Hoje você vê artistas consagrados tirando a bunda da cadeira para criar estruturas próprias. E nós sabemos que demanda um esforço a mais dos artistas. Nós, por exemplo, apanhamos pra caramba para estruturar esse selo. Mas a recompensa é tamanha que você vê que o processo é irreversível para o Mundo Livre e para a sociedade. Eu cito o Festival de Belém, que para mim foi quase uma revelação em termos de iniciativa independente.


É interessante ver como o próprio público aprende a ter uma relação diferente com os artistas. Aquela coisa de colocar o artista num pedestal está em decadência. A Marisa Monte, por exemplo, tem seu próprio selo, lança disco da Velha Guarda [da Portela]. Vou ver Arnaldo Antunes, na semana que vem, fazendo um pocket show numa livraria de graça. Nós, do Mundo Livre, percebemos que num show é importante autografar os discos, porque cria proximidade com o público e alavanca as vendas.


Quando é seu próprio selo, você pode estar sem dinheiro, mas te dá uma oportunidade. Tem que ser administrador, empresário e artista ao mesmo tempo.


 


O mangue beat contribuiu para essa cena?
FZ – Não só o mangue beat, mas também o funk carioca, os Raimundos, as diferentes cenas musicas em todo o Brasil, o estilo Brega do Pará, que cresceu à margem das gravadoras. Tudo contribuiu para que a indústria multinacional perdesse força.


Eu não mitifico, como alguns antropólogos fazem, essa cultura do Brega e do Calypso, comum no estado do Pará, como se fosse uma revolução e tal. Isso seria fechar os olhos a coisas perversas, afinal existe a exploração dos músicos, que são quase operários trabalhando sete horas seguidas por R$ 40,00. Algo que se estendeu muito em Recife são as músicas sexistas e ofensivas. O Brega não pode ser mitificado porque por trás dele existem exploradores tão grandes quanto os empresários das gravadoras. Conheço uma máfia dessas que detém a propriedade de várias bandas e que arrendaram centenas de rádios do interior em Pernambuco. Ou seja, violaram totalmente a lei da concessão das rádios e ainda são conhecidos por não cumprir nenhum tipo de obrigação trabalhista com os músicos.


 


Experimentar novas mídias, como a internet, e novos conceitos musicais e artísticos é uma característica do Mundo Livre. Vocês vão insistir na experimentação quando lançarem a nova coletânea?
ZQ – Todos os dias surgem novas mídias, novas interações com tecnologia no mundo inteiro. Então o que vamos fazer provavelmente vai repensar a noção de direito autoral e vai depender da articulação entre o consumidor e a indústria.


Agora essa coisa do direito autoral é um paradoxo: nunca se falou tanto em questionar os direitos autorais e nunca houve tantas propostas alternativas, como o copyleft, o creative commons. Mas, pelo menos no meu caso, nunca recebi uma receita tão grande devido a direitos autorais como hoje.


Quase metade da minha receita enquanto músico vem de direitos autorais. E eu acho que há uma tendência de isso se ampliar, porque pela primeira vez eu tenho recebido dinheiro de músicas minhas publicadas na internet. Começou com alguns centavos e hoje já reúne algumas centenas de reais. Isso está avançando de forma muito rápida e eu estou perplexo sobre as alternativas no mundo da tecnologia e da música.


 


Mas vocês estão trilhando um novo caminho, independente, para a música?
ZQ – É engraçado porque há pouco mais de um ano a gente optou em lançar um álbum em formato EP, com um selo próprio e fazer a venda nos shows, a um preço bem mais barato do que no mercado. No começo foi difícil, apanhamos muito, apesar de constatar que havia uma resposta muito grande por parte do público.


 


Foi difícil no sentido de administrar o Ôia Records, administrar o próprio selo musical, que exige disciplina e controle de fluxo. Depois de passar 2006, com quase 50 shows realizados, é que conseguimos fazer uma divulgação em São Paulo, que é o maior mercado consumidor no Brasil.


 


E só agora conseguimos um contrato para distribuir em lojas de todo o Brasil com uma editora. Essa intuição, de ter feito vendas só em shows, pode ter criado uma grande demanda em torno do Bêbadogroove. Ainda precisamos negociar a política de preços, já que vai haver uma cota para venda em shows, para manter o valor de R$ 10,00.


 


Acho que hoje é mais fácil de negociar esse tipo de parceria. Hoje, não há aquela sede de controlar e prender os artistas por dez discos, como era antes com as grandes gravadoras. Pelo contrário, todos querem fazer acordos curtos e passageiros. Todas as gravadoras e distribuidoras estão fragilizadas e com sensação de incerteza, então negociam só um disco.



Acho que entramos numa época em que, quanto mais intuitivo e quanto mais jogo de cintura, melhor será para os grupos encontrarem o seu perfil. Acho que o Mundo Livre S/A é uma banda muito particular, que aparece em mídias como a Revista Cult e a Revista da MTV.


 


N.E.: A segunda parte das três que compõem esta entrevista será publicada no dia 28 de dezembro.


 


Fonte: Agência Carta Maior