Robert Fisk: banalidades e mentiras sobre o Iraque

Chamo a isso de Efeito Alice no País das Maravilhas. Cada vez que viajo pelos Estados Unidos, olho através do espelho para outro lugar, longínqüo, onde vivo e trabalho para o jornal The Independent: O Oriente Médio. E vejo uma paisagem que descon

Comprei o novo livro de Jimmy Carter, intitulado Palestina, paz, não apartheid, no aeroporto de San Francisco, e o li em um dia. É uma obra satisfatória e sólida, escrita pelo único presidente dos EUA (em 1977-1981) que se aproxima da santidade. Carter descreve o atroz tratamento dado aos palestinos, a ocupação israelense, a brutalidade com que se trata essa população submetida e despojada. Refere-se ao que ele chama ''um sistema de apartheid, com dois povos ocupando o mesmo território porém completamente separados um do outro, onde os israelenses impõem seu domínio e violência enquanto negam aos palestinos os direitos humanos básicos''.
''Um governo como o da África do Sul''



Carter cita um israelense que lhe disse: ''Temo que estejamos nos dirigindo para um governo como o da África do Sul (no regime racista pré-1994), com uma sociedade dual, de governantes judeus e súditos árabes com escassos direitos de cidadania…''.
Uma mudança dessa fórmula, já posta, mas que Carter considera inaceitável, é que ''amplas parcelas do território ocupado, e os palestinos, sejam completamente rodeados por muros, cercas e postos de controle, vivendo como prisioneiros nas pequenas áreas que lhes reservarem''.



''Furor contra os judeus''?



Não é preciso dizer que a imprensa e a TV dos EUA ignoraram o lançamento deste livro eminentemente razoável, até que as já conhecidas panelinhas israelenses começaram a lançar insultos contra o pobre e velho Jimmy Carter (82 anos), apesar de ele ser o arquiteto do mais duradouro tratado de paz entre Israel e o vizinho árabe Egito, obtido graças aos famosos acordos de Camp David, em 1978.



O diário The New York Times (''Tobas as notícias pertinentes'', ha-ha-ha) sentiu-se no direito de dizer a seus leitores que Carter despertou ''cólera entre os judeus'' por usar a palavra ''apartheid''. O ex-governante respondeu comedidamente (e com razão) que o lobby israelense gerou, em todas as redações dos EUA, uma ''relutância em criticar o governo de Israel''.



As relações Israel-regime do apartheid



Um exemplo da lama atirada em Carter foi o comentário de Michael Kinsley, do New York Times (claro), assinalando que o ex-presidente ''está comparando Israel com o antigo governo branco racista da África do Sul''. Seguiu-se um mal-intencionado artido de Abe Foxman, da Liga Antidifamação, dizendo que o motivo de Carter para escrever o livro ''é essa cínica e vergonhosa mentira de que os judeus controlam o debate neste país, principalmente na mídia. O que torna isso tão grave é que o autor não é mais um especialista ou analista, é um ex-presidente dos EUA.''



Bem, claro, a questão é exatamente esta, não? Não se trata de um ensaio feito por um professor de Harvard sobre o poder de um lobby. É a apresentação de um homem honesto e honrado, que foi amigo tanto de Israel como dos árabes, e além disso é um ótimo estadista. Por isto o livro de Carter é hoje um bestseller. E aqui desejo aplaudir, de passagem, o grande público estadunidense que comprou a obra em vez de acreditar em Foxman.



Neste contexto, pergunto-me por que o New York Times e os outros covardes jornais do mainstream americano esqueceram de mencionar as íntimas relações que Israel Mantinha com o ultra-racista regime do apartheid sul-africano, as quais supõe-se que Carter não deve mencionar no livro. Não mantinha Israel um lucrativo comércio de diamantes com a sancionada e racista África do Sul? Por acaso estou sonhando, como se estivesse diante do espelho de Alice, quando recordo que em abril de 1976 o primeiro ministro sul-africano, John Vorster, um dos arquitetos desse abjeto e nazista sistema do apartheid, visitou Israel e foi homenageado com uma recepção oficial pelo primeiro ministro Menachem Begin, o herói de guerra Moshe Dayan e o futuro Prêmio Nobel da Paz Yitzhak Rabin?Tudo isso, claro, não fez parte do Grande Debate Americano em torno do livro de Carter.



Tempestade cerebral da direita



No aeroporto de Detroit comprei um livro ainda mais fino, O Relatório do Grupo de Estudos Baker-Hamilton sobre o Iraque, o qual na verdade não estuda a situação dessa nação árabe, mas apresenta várias desalentadas alternativas para George W. Bush escapar do desastre manchando seu terno com um mínimo de sangue. Depois de conversar com os iraquianos da Zona Verde de Bagdá (''Zona dos Sonhos'' seria um nome mais apropriado), eles obtiveram algumas sugestões preciosas, que como era de se esperar foram rejeitadas pelos israelenses: reabertura de conversações de paz sérias entre israelenses e palestinos; uma retirada israelense das Colinas de Golã, etcetera.



Porém tudo isso está escrito no mesmo tom enfastiado das tempestades cerebrais da direita. Na prática, usa-se a mesma linguagem da desmoralizada Instituição Brookings e de meu velho amigo, o messiânico colunista do New York Times Tom Friedman: fodo o discurso está cheio de furos e predições de que ''o tempo está se esgotando''.



Descobri que a chave de toda essa bobajada vem no final do relatório, onde há uma lista de ''especialistas'' consultados por Baker e Hamilton. Muitos deles são pilares da Instituição Brookings e ali está também Thomas Friedman, do New York Times.



Turbulências sobre o Colorado



Mas nada supera o debate, que se seguiu ao informe Baker, entre os grandiosos e magnânimos personagens que arrastaram os EUA para essa catástrofe. O general Peter Pace, o peculiaríssimo chefe dos chefes de staff, assegurou que ''não estamos ganhando mas sim perdendo'' a guerra estadunidense no Iraque. O novo secretário da Defesa de Bush, Robert Gates, disse concordar com Pace no sentido de que ''não estamos ganhando mas sim perdendo''. O mesmo Baker saltou na piscina do absurdo ao asseverar: ''Não creio que se possa dizer que estamos perdendo. Mas, pela mesma razão (sic), não estou seguro de que a estejamos ganhando''. Neste ponto, Bush proclamou que, ''se não estamos ganhando, não estamos perdendo''. Que pena para os iraquianos.



Refleti sobre essa loucura enquanto meu avião atravessava turbulências ao sobrevoar o Colorado. Então, de repende, entendi que o resultado final desse round único da Guerra do Iraque entre os EUA e as forças do mal… é empate!



* Intertítulos do Vermelho