Novo presidente da OAB busca ligação com movimentos sociais
''O meu perfil é o de alguém ligado aos movimentos sociais, que aprendeu que, para mudar o mundo, é preciso dar a sua contribuição'', defendeu o novo presidente nacional OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Cezar Britto, 44 anos, em entrevista publicada n
Publicado 29/01/2007 11:48
Folha – A OAB tem sido bastante crítica em relação ao presidente Lula. Pediu a convocação do Conselho da República e propôs o impeachment. Como será a gestão do sr.?
Cezar Britto – Busato [atual presidente] viveu uma época muito específica do primeiro mandato do governo Lula e respondeu à altura. O segundo mandato ainda é uma incógnita. Não se sabe qual será a opção do presidente Lula, se a cooptação ou a coalização. Essa escolha é que direcionará a nossa administração. A OAB não é partidária, mas é um órgão político. Nossa política é defender a cidadania e a advocacia, independentemente dos governantes. Eu era diretor da Ordem, o que significa que, o que Busato manifestou era o que tinha sido aprovado por nós, era a posição da entidade.
Folha – Qual será a marca da administração do sr.?
Britto – A Ordem tem uma linha histórica comum a todos os presidentes. E essa linha comum avança, tensiona ou recua dependendo também do perfil do presidente. O meu perfil é o de alguém ligado aos movimentos sociais, que aprendeu que, para mudar o mundo, é preciso dar a sua contribuição. Sob a minha presidência, a OAB terá uma função muito ativa no que se refere aos movimentos sociais e à defesa da cidadania.
Folha – O que mudará na prática?
Britto – Vamos fortalecer a presença da OAB nos órgãos de controle de políticas públicas. Uma idéia é reunir várias entidades sociais, num foro de discussões, para que juntas possam ajudar a resolver grande parte da desigualdade do país. Vamos tratar ainda da responsabilização do Judiciário sobre o clima de insegurança e de injustiça no país. Teremos discussão e muita ação para que o Brasil efetivamente melhore.
Folha – Que avaliação o sr. faz da gestão do presidente Lula?
Britto – Embora tenha avançado no campo social, ainda manteve as amarras assistencialistas que vêm de há muitos anos. É preciso fortalecer cada vez mais os mecanismos de participação da sociedade no destino da nação. A OAB propôs, como referendo, as leis de iniciativa popular. Defendemos a criação do ''recall'', que é a possibilidade de o soberano cassar o parlamentar que se mostrou antiético no curso do mandato.
Folha – Como funcionaria o ''recall'' num Congresso com tantas crises, como a do mensalão e a do sanguessuga?
Britto – Como o parlamentar é o representante do soberano, do povo, temos de permitir que esse soberano casse o mandato de quem não correspondeu às expectativas. O exemplo da atual legislativa foi extremamente ruim pelo número de absolvições de pessoas envolvidas em esquemas de cooptação, como o mensalão, ou de desvio de verbas, como o sanguessuga.
É preciso dar mecanismos para que o soberano exerça sua vontade. O projeto do ''recall'' está no Congresso, na chamada reforma política, que, aliás, será o grande divisor de águas do segundo mandato. Por meio desta reforma o governo
Lula vai demonstrar se quer realmente um governo de coalizão ou não.
Folha – Há esperança de os parlamentares aprovarem uma medida que colocará em risco os próprios mandatos?
Britto – Esse é o exemplo que o Congresso tem de dar. Está iniciando uma legislatura, com novos parlamentares que fizeram promessas ao povo. Agora é cada um começar a fazer a sua parte, esquecer um pouco de seus medos e seus interesses pessoais e pensar no Brasil.
Folha – Na Venezuela e na Bolívia, a Constituição tem sido alterada para aumentar os poderes dos presidentes. Como o sr. vê esse momento e que distinção faz com o Brasil?
Britto – O Brasil sempre teve uma postura correta de respeitar a determinação dos povos. Cada pessoa tem direito de escolher a face do seu país e a forma como ele será desenvolvido. Na América Latina, embora se fale da volta do populismo, ele tem nascido com a vontade e a participação expressa do povo, e isso tem de ser respeitado. Esse fenômeno é decorrente da expressão popular, não de golpes militares nem da força, o que é bom para a América e para o mundo. É diferente quando a democracia é imposta, como ocorre no Iraque. Lá, a democracia é por imposição de um país sobre o outro. Então, há uma grande diferença entre as duas situações. A democracia não nasce por imposição, mas pela vontade do povo.
Folha – Não é perigoso para a democracia quando o presidente tem o poder de baixar decretos com força de lei, sem precisar passar pelo Legislativo, como na Venezuela?
Britto – É muito difícil opinar sobre a decisão soberana de um povo. E foi numa decisão soberana que o Congresso aprovou a medida. Não houve nenhuma imposição por meio da força ou de um golpe militar.Trata-se da expressão da vontade do povo, o que deve ser respeitado numa democracia.
Folha – Se o presidente Lula, eleito numa democracia, tentasse um terceiro mandato, o sr. seria favorável?
Britto – A OAB é contra qualquer tipo de reeleição, seja na esfera federal, estadual ou municipal. A reeleição não fez bem ao país desde a sua origem, quando houve denúncias de compra de votos. O que nasce viciado, continuará viciado no futuro. A nossa experiência com uma reeleição não é boa. Imagine com duas.
Folha – Nesta semana o presidente falou que o Brasil tem uma democracia consolidada. O sr. concorda?
Britto – Está parcialmente consolidada. É claro que avançou muito. As crises que ocorreram nos últimos anos não implicaram nenhum abalo institucional. Ao contrário, as instituições funcionaram corretamente, o Ministério Público trabalhou, a polícia trabalhou, os advogados trabalharam. Mas não está consolidada porque há ainda uma grande desigualdade. O Brasil ainda é o campeão de concentração de renda, com uma exclusão social e racial muito forte. Grande parte da população não goza de seus direitos, apesar de vivermos numa democracia.
Folha – O Poder Judiciário tem responsabilidade sobre esse cenário?
Britto – O Judiciário é o poder mais fechado do Brasil. Nós, os advogados, que fazemos parte do Judiciário, precisamos contribuir para que ele cumpra a sua função de ser o responsável pela aplicação da justiça. Se temos hoje um Brasil desigual e injusto, o Judiciário tem que assumir sua responsabilidade. Nós temos de fazer a nossa parte. Por isso, na minha gestão, vamos aprofundar o diálogo, assumir as nossas próprias culpas nessa sensação de ineficiência e de impunidade, nessa sensação de que somente pobre vai para a cadeia.
Folha – Isso não é uma verdade?
Britto – No Brasil os pobres vão muito mais para a cadeia. E é preciso descobrir e avaliar o motivo de tal fenômeno. Não se pode socializar o crime, que tem de ser apurado e julgado de forma igual para todos. Esse é um dos pontos que faz com que o Brasil não seja democrático, uns têm mais direitos do que outros, uns têm mais mecanismos de defesa do que outros.
Folha – O sr. concorda com a tentativa do Judiciário e de outros poderes de elevar seus salários acima do teto constitucional?
Britto – É preciso que se tenha um teto que regule o serviço público. Certa vez o ministro Ayres Britto [do STF] disse uma frase que serve de parâmetro sobre a importância da definição do teto. Ele disse: ''O serviço público não pode ser um voto de pobreza, mas ele é um veto à riqueza''. Ou seja, não pode, por meio do serviço público, ter um ganho fácil. A partir do momento em que o Congresso e o presidente da República dizem, quando sancionam o salário mínimo, que um trabalhador sobreviveria com R$ 350, não podem cair na contradição de achar que R$ 24 mil é pouco. Ou a regra da igualdade vale ou ela faz do Brasil uma democracia do faz-de-conta.
Folha – O sr. tem propostas para a reforma trabalhista, que é a sua especialidade?
Britto – A reforma trabalhista, assim como a sindical, é extremamente necessária. Porém, tem de ser compreendida dentro de sua função social, de que o trabalho, como disse Gonzaguinha [compositor], é fator de felicidade para o homem. Não se pode pensar em reforma trabalhista para reduzir salários, mas para ampliar o poder de compra e a forma de negociação do trabalhador com o empregador. A reforma não deve reduzir o custo Brasil para que possamos competir em iguais condições com países que desrespeitam os direitos do trabalhador, como a China, nem reduzir os direitos do trabalhador, que já são mínimos. Já temos uma legislação de direitos mínimos. Quando se fala em reforma é para permitir o crescimento e o desenvolvimento social. Quem pensa no trabalho como custo de produção não vê nele um fator de desenvolvimento social.
Folha – O sr. concorda com o uso do FGTS em infra-estrutura? Isso fere o direito do trabalhador?
Britto – A primeira leitura que fiz desta medida é que simboliza um desvio de finalidade. Não está clara a proteção do patrimônio do trabalhador em caso de má aplicação do fundo, ainda mais quando se sabe que o Estado brasileiro não é um bom gerente de recursos. É preciso ter uma garantia maior para que o trabalhador não seja mais uma vez punido.
Folha – Será possível manter uma relação de independência com o ministro do STF Ayres Britto (que é tio de Cezar Britto e ministro do STF, Supremo Tribunal Federal)?
Britto – Tenho com ele uma relação extremamente fraterna, como costuma acontecer com as famílias unidas. Não há nenhuma interferência da relação de afetividade com as nossas atividades profissionais. A minha relação com o Supremo será a mesma que tenho com todos os magistrados, harmoniosa porém independente.
Fonte: Folha de S. Paulo