Le Monde Diplomatique: A Rússia busca seu lugar no mundo

Quinze anos após o fim da era soviética, o país cresce, recupera sua auto-estima, livra-se dos laços que o prendiam aos EUA e quer ser um ator de destaque no cenário global. Até onde vai o autoritarismo de Putin e quais as “alternativas” da oposição. Arti

Certificado de vitória: no início de 2007, o produto interno bruto (PIB) da Rússia retomou, enfim, seu nível de 1990. Após a depressão dos anos 1990, o país passou por seis anos de crescimento – em média de 6% ao ano. Ao milagre petroleiro juntam-se sucessos em outras áreas (metalurgia, alumínio, armamento, agronegócio), uma forte alta do consumo familiar, o resgate da dívida externa pública e mais: em cinco anos, o dobro de despesas com Educação e o triplo com Saúde. Para surpresa geral, algumas empresas russas ocupam novos espaços no cenário capitalista transnacional.


 


Mas a melhora é frágil. Mais pobre e mais desigual que na era soviética, a Rússia tem fome de investimentos para superar suas fragilidades: fuga de capitais e de cérebros, infra-estruturas obsoletas, atraso tecnológico agudo em relação aos outros países industrializados, diminuição da expectativa de vida e da população. No entanto, o economista Jacques Sapir apresenta 2006 como “o ano da reorientação estratégica” [1] com a emergência de uma política industrial resultante da consciência de que a economia não pode mais depender somente da renda do gás e do petróleo. Conseqüentemente, necessita-se de um Estado mais capaz de intervir, ao contrário do que preconizam as instituições multilaterais e os liberais russos. A controvérsia gira, principalmente, em torno de um Fundo de Estabilização de cerca de 80 bilhões de dólares.


 


Para o novo ministro da Defesa norte-americano, Robert Gates, “Vladimir Putin tenta dar à Rússia seu estatuto de grande potência”, e “fazer renascer o orgulho nacional” [2]. De acordo com as pesquisas, isso lhe garante o apoio de 70% a 80% da população, principalmente da classe média abastada e da aristocracia operária bem remunerada. De acordo com Lilia Ovtcharova, do Instituto de Política Social, os salários reais atingem 80% de seu nível de 1989; e o consumo aumentou 167%. Trata-se obviamente de médias, que não levam em conta variações sociais. Embora a pobreza tenha diminuído, ela continua endêmica e as desigualdades se aprofundam – visto que a lógica mercantil venceu as proteções sociais soviéticas.


 


O balanço de 15 anos de transição merece, então, ser revisto e corrigido com rigor [3], e relativizado por essa enorme “face oculta” constituída pela economia e pela sociedade “informais”.


 


Na prática, desmonta-se a submissão aos EUA



O presidente Putin não tem nada de um Hugo Chávez ou de um Evo Morales: ao contrário dos desejos da maioria popular, ele não colocou em questão as “privatizações criminosas” dos anos 1990, nem renacionalizou os setores-chave do ponto de vista de uma economia social de mercado. Também não perseguiu os oligarcas “ladrões”, com exceção dos que tinham ambições políticas [4].


 


Após ter hesitado entre o ultraliberalismo e o estatismo, optou por um compromisso que tranqüilizou a nova classe de proprietários e o Ocidente: restauração do Estado e da soberania, submetendo os oligarcas, mas respeitando a economia de mercado.


 


Que desenvolvimento deve impulsionar esse crescimento? “A duplicação do PIB sem modernização da economia seria um triste gesto”, explica Léonid Grigoriev, presidente do Instituto de Energia e das Finanças. “Uma parte significativa da população – principalmente a juventude e os círculos de negócios – constatou a nova realidade: um país medianamente desenvolvido, matérias-primas e uma grande desigualdade social. Para a ciência, esses 15 anos foram perdidos, e a geração bem formada do pós-guerra está na idade de se aposentar. (…) O investimento, retomado há cinco anos, representa menos de 20% do PIB e 1/3 dos capitais investidos em 1990” [5].


 


Uma guinada maior se deu em 2003, com o segundo mandato de Putin, quando confiou aos diretores de empresas estatais, que ele próprio escolheu, o setor decisivo do petróleo e gás – parcialmente retomados dos oligarcas, que o tinham conseguido a “preço de amigo” graças às privatizações da era Yeltsin [6]. Embora a proteção dos bens estratégicos não proíba a participação dos capitais estrangeiros, ela se inscreve – com a ofensiva dos monopólios públicos da energia, Gazprom e Transneft – em uma estratégia destinada a se opor à política de “repressão” da potência russa executada pelos Estados Unidos desde 1991. Foi este o sentido da ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da instituição dos corredores energéticos alternativos às redes russas. Além disso, trata-se de reconstituir um espaço econômico comum euro-asiático, que não exclui a parceria Europa-Rússia.


 


A quem interessariam os atentados de 2006?



Em xeque no sul do Cáucaso, essa estratégia do Kremlin conta pontos na Ucrânia, onde 60% da população se opõem à entrada na OTAN, no Kazaquistão e na Bielorússia. Esta última deverá renunciar a seu regime “anacrônico” e se abrir mais amplamente aos capitais russos. Ao mesmo tempo, Moscou desenvolve sua cooperação com a China, a Índia e o mundo muçulmano. O presidente Putin mantém – como na época da inauguração de um Centro de Ensinos Militares (GRU), em 8 de novembro – um discurso alarmante sobre a situação internacional, inquietando-se com “ações unilaterais” dos Estados Unidos, com os novos sistemas de armamentos estratégicos que exigiriam “respostas apropriadas” e com apoios externos a “ações terroristas” na Rússia.


 


Um grande número de jornalistas explicou de maneira muito simples a série de atentados praticados na Europa, no final de 2006: o Kremlin estaria eliminando seus oponentes. A partir do momento em que os fatos se mostraram mais complexos, o assunto desapareceu da primeira página dos jornais. A imprensa russa continua a explorar pistas obscuras. Observadores salientam certas coincidências. O assassinato da jornalista Anna Politikovskaïa se deu em 7 de outubro, dia do aniversário de Putin, enquanto ele fazia uma viagem importante à Alemanha para tratar das relações euro-russas. Da mesma maneira, a morte, no dia 23 de novembro, por envenenamento, de Alexandre Litvinenko – ex-agente do Serviço Federal de Segurança (FSB) e companheiro de armas do oligarca Boris Berezovski – coincide com a reunião de cúpula russo-européia em Helsinque.


 


Outras mortes atingiram o centro do poder: a do vice-presidente do Banco Central, Alexandre Kozlov, em 13 de setembro, e a de Alexandre Plokhine, diretor do Banco do Comércio Exterior, em meados de outubro. Ambos desempenhavam um papel nevrálgico na estratégia de Putin: o primeiro, na luta contra o crime organizado; o segundo, por sua participação no setor da aeronáutica européia. Em 24 de novembro, o “pai das reformas russas”, Yegor Gaïdar, foi vítima de uma doença em Dublin, que ele mesmo inscreve nessa “série”.


 


O ex-vice-primeiro-ministro Anatoli Tchubaïs enxerga também a possibilidade de um golpe de força contra o Kremlin e suas relações com o Ocidente, que coloca em questão Berezovski – uma hipótese evocada por outras fontes [7]. Uma coisa é certa: à pergunta “a quem beneficia o crime?”, não se pode responder: “a Putin”. Para o especialista italiano Giuletto Chiesa, todos os atentados representam “uma clara tentativa de difamar a Rússia, de colocá-la no banco dos réus. É útil para alguns círculos na Rússia, na União Européia e para alguns membros do governo Bush” [8].


 


A mudança de Putin — e como ela incomoda



Evidentes desde 1993 (e do emprego de tanques contra o Parlamento), os “retrocessos da democracia” somente foram denunciados com firmeza há pouco tempo. Discreto durante as duas guerras da Tchetchnia, o Ocidente começou a protestar… em 2003, durante os processos contra o grupo petroleiro privado Yukos. Segundo uma versão raramente evocada na imprensa, este se apressou em fazer uma fusão com a Sibneft e preparou, com a Exxon-Mobil e a Chevron-Texaco, a entrada maciça de capitais norte-americanos no petróleo da Sibéria, às vésperas da guerra com o Iraque [9].


 


Esse foi o primeiro passo em direção à “renacionalização” da energia, em prejuízo de certos interesses russos e externos estreitamente imbricados. Putin, então, visivelmente deu as costas para a via ultraliberal, “à moda chilena”, proposta por seu assessor Andrei Illarionov – que pediu demissão no final de 2005, disparando: “A Rússia tornou-se outro país, não é mais um país livre [10]]”.


 


Na “cúpula anti-russa” de Vilnius, em maio de 2006, o vice-presidente norte-americano, Richard Cheney, denunciou um “desvio autoritário” [11]. Na classificação dos Estados, segundo as liberdades econômicas, a Rússia caiu para o 102º posto (entre 130). A Transparência Internacional a coloca na liderança dos países corruptos. Em matéria de liberdade de imprensa, os Repórteres sem Fronteiras a relegam ao 147º lugar (entre 168), depois do Sudão e do Zimbábue! É verdade que o Estado passou a intervir mais sobre o audivisual e os jornais populares, mas a imprensa da elite continuou muito liberal e parcialmente controlada, até há pouco, por Berezovski – que acaba de renunciar ao famoso grupo Kommersant, ponta de lança da ideologia mercantil nos anos 1990. Com o mesmo espírito, o poder submeteu as organizações não-governamentais (ONGs) russas e estrangeiras a um controle reforçado.


 


“Autoritarismo brando”, diagnostica Gaïdar, que, na era Putin, distingue duas fases. De 2000 a 2002, continuação das reformas, com um Parlamento e meios de comunicação relativamente independentes, sob a influência de poderosas organizações de prestígio de empresários. Em 2003-2004, evolução para a democracia “decorativa” e “dirigida”, em que governadores e presidentes das Repúblicas não são mais eleitos, mas designados. Mais temerário, o enxadrista Garry Kasparov avalia que Putin “com poucas nuances, restabeleceu o sistema soviético” e “realizou o sonho de Gorbatchev: um regime autoritário e com reformas limitadas”. Seria mesmo “Mussolini em Moscou” [12]. Líder do Movimento pelos Direitos do Homem, Lev Ponomarev não exclui a possibilidade de um … “golpe de Estado nazista”.


 


Extrema direita: isolada pelo presidente



O 7 de novembro continua a ser o aniversário (não-oficial) da revolução de outubro de 1917. Em 2006, o desfile comunista foi proibido: os manifestantes do PC de Guennadi Ziuganov tiveram de se contentar com as calçadas, para chegar, sob alta vigilância policial, ao lugar de seu encontro (autorizado). São dezenas de milhares, bem idosos, mas com o reforço de grupos de jovens radicais: Juventude Comunista (RKM), Vanguarda da Juventude Vermelha (AGKM), Partido Nacional Bolchevique (NBP) de Eduard Limonov. De acordo com as pesquisas (liberais), a revolução bolchevique “ganha em popularidade” nas novas gerações.


 


Para substituir a tradição do 7 de novembro, Putin instituiu uma nova festa no dia 4 de novembro, dia da unidade nacional. Ela concentra no Kremlin os representantes dos cultos e da diáspora russa mundial. Entre eles, o príncipe Dmitri Romanov, descendente da dinastia encerrada em 1917. “É a primeira celebração de um acontecimento da era pré-soviética”, especifica seu realizador: o 4 de novembro de 1612 é, ao mesmo tempo, a libertação do Kremlin ocupado pelos poloneses, o fim dos “tempos de revoltas” (1598-1612) e o prelúdio do advento de Mikhaïl I, primeiro czar da dinastia dos Romanov (21 de fevereiro de 1613). Estranho simbolismo: seria preciso novamente “libertar” a Rússia de seus ocupantes e de suas revoltas? Seria preciso lhe dar um czar?


 


Inteiramente diferente é a concepção que os fascistas têm da “libertação”: “A Rússia para os russos!”, gritaram eles no dia 4 de novembro de 2005, entre “Sieg heil!” proferidos em alemão, acompanhados da saudação hitlerista. “Vergonhoso, nunca mais!”, avalia o prefeito de Moscou, Yuri Lujkov, que proibiu essa “Marcha russa” no dia 4 de novembro de 2006. Oito mil policiais mobilizados reprimiram brutalmente os poucos neonazitas nos acessos das estações ferroviárias e de metrô. Os skinheads devem conter sua cólera.


 


Essa esfera reagrupa o Movimento contra a Imigração Ilegal (DPNI), de Alexandre Belov, o Partido da Força Nacional da Rússia (NDPR), de Alexandre Sevastianov, a União Eslava (SS, sigla ferozmente reivindicada) e a Unidade Nacional Russa (RNE), que, desta vez, recebeu ordem de não exibir uma suástica. Esses grupos beneficiam-se do apoio de movimentos religiosos ortodoxos (condenados pela Igreja) e de grupos cossacos. Outro apoio vem de Dimitri Rogozin, o líder do Partido Social-Nacionalista Rodina (Pátria), uma formação eleitoral pluralista, criada em 2003, abandonada por sua ala de esquerda, que denunciou seu desvio xenófobo. O diretor de redação do jornal semanal Zavtra, Alexandre Prokhanov, escritor influente ligado à nova direita européia, demanda a caça aos “mafiosos” azerbaijanos [13]. Quantos são? No máximo 3.000…


 


O grande risco de uma descaída xenófoba



Em um país de 143 milhões de habitantes, estima-se que o número de simpatizantes fascistas e de skinheads seja de aproximadamente 50 mil pessoas. O que preocupa, sobretudo, é a violência de suas ações, freqüentemente assassinas, e o eco de sua demagogia anti-imigrantes. Todavia, segundo uma fonte ligada ao Kremlin, “a metade” dos manifestantes do 4 de novembro era composta de… “agentes dos serviços de segurança”. E alguns dirigentes policiais sonham, como seus predecessores czaristas, em utilizar ou suscitar “movimentos populares” para conter os “revolucionários terroristas”.


 


Da celebração do dia 7 para a do dia 4, assiste-se de fato a uma substituição dos patriotismos. Embora o Partido Comunista e sua União Nacional-Patriótica professem a nostalgia da União Soviética (URSS), foram superados pela maré alta de uma nova geração, formada na escola do capitalismo de choque, em regiões catastróficas, com suas estratégias de sobrevivência e a clássica busca de bodes expiatórios.


 


Choque revelador, o motim anticaucasiano do dia 1º de setembro de 2006, em Konopoga, uma cidade de Carélia. Pogrom racista? Uma pesquisa do politicólogo Maxim Grigoriev sugere que a crise foi mais social do que “inter-étnica”. Os habitantes dizem preocupar-se com a pauperização (24%), a criminalidade (19%), o desemprego (16%), o terrorismo (13%), os problemas de educação, saúde e habitação (13%) e a corrupção dos funcionários (9%). Os conflitos entre nacionalidades chegam por último, com 2%!


 


E no entanto, esses últimos são os mais divulgados pela mídia. “Porque é fácil qualificar todos os outros como ’questão nacional’”, declara o Izvestia [14]. Mas as autoridades querem também “substituir a população autóctone” no comércio. Sob o pretexto de modernização e de higiene, elas impõem uma nova divisão dos mercados atacadista e varejista, que estão nas mãos dos caucasianos. Além disso, o discurso dos serviços de segurança associa “grupos étnicos” (não-russos) ao mercado e à criminalidade. Como evitar novos desvios xenófobos, alimentados pela recente expulsão de centenas de georgianos? Oficialmente, o presidente se refere sempre a uma Federação multinacional e multiconfessional. Todavia, a integridade do território russo e os interesses geopolíticos de Moscou justificam “operações antiterroristas” de uma selvageria contagiosa, da qual a Tchetchnia continua a ser o arquétipo.


 


No alvo, a oligarquia que surfou na crise pós-1990



Em um país onde um quinto dos habitantes é muçulmano, “o perigo do extremismo nacionalista existe”, martela o presidente do Tataristão, Mintimer Chamïev. “Para um Estado multinacional como esse, é extremamente perigoso. É preciso reagir à menor manifestação chauvinista”. E o ex-primeiro-ministro, Eugueny Primakov, confirma que os muçulmanos russos “não são imigrantes, como em muitos países ocidentais, mas uma população autóctone. Não se trata de outro Estado cuja população de origem seja majoritariamente cristã e minoritariamente muçulmana (…) que tenha coexistido como na Rússia, seja culturalmente interpenetrada, que tenha formado uma comunidade original. Ao mesmo tempo, é uma situação única para a Rússia, enquanto ponte entre a Europa e a Ásia”. [15]. A nova identidade da Rússia será rossiikaïa, isso é russa no sentido cidadão e multinacional, ou rousskaïa, no sentido étnico e exclusivo? A questão continua aberta, e a perspectiva de uma imigração em massa a põe em termos inéditos.


 


No dia 30 de novembro de 2006, o partido Rússia Unida (ER) reuniu-se num congresso em Ekaterinburg. Posicionado no centro-direita, espera obter a maioria absoluta dos votos. Seu presidente, Boris Gryzlov o declara “partido dirigente” e o vê na direção do país durante vinte anos. Ele adoraria uma “ideologia de consenso liberal-conservador” e de “democracia soberana [16]”. Trata-se, de fato, de uma espécie de união heterogênea “para a maioria presidencial”.


 


Em uma mensagem à Assembléia Federal, em abril de 2005, Putin propôs uma análise da transição pós-soviética que escandalizou o Ocidente. Retomando-a: “É preciso reconhecer que a queda da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século. Dezenas de milhões de nossos cidadãos e compatriotas encontravam-se fora dos limites do território da Rússia. A epidemia do deslocamento propagou-se na Rússia. O patrimônio dos cidadãos foi desvalorizado, os velhos ideais destruídos, inúmeras instituições dispersadas ou reformadas rapidamente e sem o menor cuidado. A integridade do país foi atingida por intervenções terroristas e pela capitulação que se seguiu ao Khassaviurt [o cessar-fogo de 1996, que legalizou a vitória dos independentistas tchetchnos]. Os grupos oligárquicos, que tinham conquistado um poder sem limites sobre os fluxos de informações, serviam apenas a seus próprios interesses corporativos. Aceitou-se como “norma” a miséria das massas. Tudo isso aconteceu tendo como pano de fundo a queda da economia, a instabilidade financeira, a paralisia da esfera social”. [17]]


 


Avalia-se que essa análise revelou um “espírito de força” (derjavnost). Seu ideólogo, Vladislav Sourkov, zomba dos que gostariam de fazer da Rússia uma “reserva natural etnográfica” e apresenta a “democracia soberana” como o advento da “justiça para cada um, e para a Rússia no mundo”. Seriam os mesmos que, a pretexto de se opor à “sociedade fechada, estilo soviético-coreana”, desejam transformar o país em “reserva de matérias-primas para as corporações transnacionais”. Com violência, incrimina-se a “aristocracia off shore”, que teria organizado a “lipoaspiração da economia”: uma fuga dos capitais da ordem de 800 bilhões a 1 trilhão de dólares, transferidos discretamente para umas 60 mil sociedades russas em paraísos fiscais. Ao contrário das elites norte-americanas, as da Rússia, acrescenta Surkov, não têm senso nacional: “Vivem no exterior, onde estudam seus filhos, e gerenciam seus domínios na Rússia, como se fossem plantations”. [18]


 


O que consterna a elite pró-EUA


No último 16 de dezembro , o partido União das Forças de Direita (SPS) organizou suas bases. Seus novos dirigentes, Leonid Guzman e Nikita Bely, revelaram otimismo: “Estamos nos dirigindo à realização do capitalismo na Rússia, à continuação das reformas dos anos 1990, de interesse de todos os cidadãos”. [19] Mas, desde as eleições de 2003, o SPS e o partido Yabloko (igualmente liberal) não têm mais deputados na Duma. Em compensação, liberais moderados conservam postos-chave no governo – German Gref na Economia e nas Reformas e Alexei Kudrine, nas Finanças.


 


Em meados de novembro de 2006, a base do SPS, Rússia Liberal, reuniu-se … em um banco. Participou desse encontro a fina flor dos intelectuais democratas e dos movimentos pelos direitos humanos: Liudmila Alexeiva, presidente do Grupo Helsinque; Alexei Simonov, da Fundação Glasnost; o historiador Iuri Afanasiev, ex-líder do movimento muito “yeltsiano” Rússia Democrática; os sociólogos Tatiana Zaslavskaïa, precursora da perestroïka, Lev Gudkov e Mark Urnov; os politicólogos Igor Kliamkin e Tatiana Kutkovetz; o médico Georgui Satarov, presidente da Fundação Indem, associada às fundações norte-americanas e campeão da ’luta anticorrupção’; os economistas Evgueny Lasin e Andréi Illarianov. Na mesa da biblioteca encontravam-se, além dos livros dos autores locais, os de dois estrangeiros: Milton Friedman e Friedrich Hayek… [20]


 


“Uma elite de 5% é determinante para o resto da população”, explicou Satarov. O pior é que os liberais não fazem mais parte disso… Estamos assistindo, segundo ele, a uma volta da consciência autoritária mitológica do povo russo. A agressividade e a procura de inimigos externos representariam uma “reação neurótica da consciência autoritária a uma situação que não se controla”, e que os dirigentes estimulariam a fim de fazer alastrar no país uma “poderosa onda antiliberal”. Agindo assim, Putin desempenharia o papel de aprendiz de feiticeiro, apoiando-se “na força de inércia do internacionalismo soviético” com o risco de ser atropelado. A crítica liberal visa também os “desvios” da política externa: distâncias em relação à guerra democrática no Iraque, “complacências” em relação ao Irã e à Síria, “traição” no que diz respeito a Israel (convite do Hamas a Moscou), cumplicidade com o socialista Chávez e outros “anti-norte-americanos”.


 


Democratas mais radicais passam à ação: os “orangistas”, de Garry Kasparov. Uma curiosa união se formou em torno de sua Frente Cívica Unida (OGF), que inclui os jovens liberais de Iabloko, os de Grigori Iavlinski, os nacionais-bolchevistas (natsbody) e os stalinistas do Rússia Trabalhadora de Viktor Anpilov, sem esquecer das ONGs humanitárias reunidas no Congresso Cívico Pan-russo. Direitas liberais e esquerdas diversas orientam-se para uma união sagrada contra o regime de Putin. No dia 16 de dezembro de 2006, conseguiram, todos juntos, reunir 2 mil pessoas numa manifestação…


 


Pós-Putin: a grande questão em aberto



À margem do G8, em agosto de 2006, esses liberais de direita e esses “esquerdistas”, reunidos no centro do Fórum Uma Outra Rússia, generosamente financiado pela fundação norte-americana National Endowment for Democracy (NED), chegaram até a reivindicar… a exclusão de seu próprio Estado do clube dos grandes: “Politicamente, a Rússia não pode pertencer ao G8 pois, ao contrário dos outros membros, ela não é uma democracia. Economicamente, ela não responde sequer aos critérios, pois está longe do sistema liberal e transparente adaptado pelos outros países. Aqui, o Estado não cessa de aumentar por toda parte seu papel! [21]” afirmou Kasparov. O Fórum teve até direito a uma visita da secretária de Estado, Condoleeza Rice e do embaixador britânico, Tony Brenton, muito ativo no apoio aos “dissidentes”.


 


Pelo que diz Illarionov, foi “Putin (que) declarou a guerra (fria) ao Ocidente”. O dirigente do Kremlin deveria ter aceitado a “oferta de amizade e de parceria estratégica”, formulada pelo vice-presidente Cheney em Vilnius, e reconhecido o papel benéfico das fundações norte-americanas na ex-URSS. Para o Rússia Liberal, os donos do poder “não podem compreender que o sistema de Estado ocidental é essencialmente democrático enquanto o sistema russo é autocrático. (…) Os países ocidentais jamais dissimularam que visam promover à democracia para assegurar seus interesses nacionais. Para eles, é uma única e mesma coisa. A democracia não é somente o melhor meio de desenvolvimento, mas uma garantia de paz e um instrumento de segurança para a aliança democrática dos Estados” [22] …


 


Eleições regionais em março de 2007, legislativas em 2 de dezembro, presidencial em 2 de março de 2008: a vitória das forças favoráveis a Putin é previsível. Do mesmo modo que a contestação dos resultados por seus adversários, na Rússia e no Ocidente. Berezovski anunciou o tom: “O atual regime jamais permitirá eleições honestas, e é por isso que só há uma saída: a tomada do poder pela força”. [23] Esse ilustre militante da “revolução democrática” beneficia-se, em Londres, onde reside, do estatuto de refugiado político.


 


Uma incógnita permanece. Dois terços dos russos desejariam o que a Constituição não permite: que Putin ambicione um terceiro mandato. Considera-se ruim sua saída, uma vez que os pretendentes à sua sucessão continuam pouco conhecidos [24]. Especula-se sobre as novas funções que o “pai da estabilização” poderia exercer – fala-se da presidência do partido ER ou do Gazprom. Para encaminhar alguma política face aos desafios que representam a crise demográfica, a entrada da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o pós-petróleo? A União para a Maioria Presidencial ainda não tem bússola nem um verdadeiro projeto de sociedade. O que acontecerá com essa tripulação sem o atual presidente no leme?


 


Nada garante o cenário de uma sucessão tranqüila. Novos “cadáveres extraordinários”, as tensões com o Oeste, as explorações dos Estados Unidos para “democratizar o grande Oriente Médio”, um possível conflito no sul do Cáucaso, o pós-Bush em Washington poderiam mudar o jogo. As características do regime e de seu lugar no mundo vão se tornar mais precisas: uma segunda “Nova Rússia” está em gestação.


 


 



[1] Jacques Sapir, “La situation économique de la Russie en 2006”, em “Tableau de bord des pays d’Europe centrale et orientale”,Etudes du CERI, nº 132, Paris, dezembro 2006


[2] Izvestia, Moscou, 15 de dezembro de 2006


[3] Ler Jean-Pierre Page e Julien Vercueil, De la Chute du Mur à la nouvelle Europe, L’Harmattan, coleção “Pays de l’Est”, Paris, 2004


[4] Vladimir Goussinski, Boris Berezovski, Leonid Nevzlin e outros oligarcas “em fuga” como Mikhail Khodorkovski, preso, foram perseguidos por seus “proveitos” ilegais ou indelicados, mas acima de tudo foram suas ambições políticas que contrariam Putin


[5] Izvestia, Moscou, 15 de março de 2006


[6] O Estado não “renacionaliza”. Ele assegura, por meio de empresas públicas, mistas ou privadas (inclusive estrangeiras) o controle de setores estratégicos (mais de 30% do petróleo, ao invés de 10% em 2003; 51% da Gazprom, em vez de 48%; a totalidade dos oleodutos geridos pela Transneft) e outros terrenos em que a Rússia considera dispor de grandes competências (energia nuclear, aeronáutica, armamento e, no momento, bancos). Também resiste a abrir mais amplamente, aos capitais externos, as telecomunicações, a produção de automóveis, o agronegócio e outros setores em que, de qualquer modo, a Rússia não seria competitiva segundo os parâmetros da Organização Mundial do Comércio (OMC)


[7] Cf. artigo de Jacques Sapir em Le Figaro de 5 de dezembro de 2006. Proprietário da rede pública ORT, vice-presidente do Conselho de Segurança e secretário da Confederação dos Estados Independentes (CEI), Berezovski foi a eminência parda do Kremlin até o verão nórdico de 1999, e um dos artífices da ascensão de Putin. Antes que este o descartasse…


[8] Vlast nº 48, Moscou, dezembro de 2006


[9] Cf. Gérard Chaliana e Annie Jafalian (organizadora), La Dépendance pétrolière. Mythes et réalités d’un enjeu stratégique, coleção “Le tour du sujet”, Universalis, Paris, 2005


[10] Ver – http://www.orangerevolution.us/blog


[11] The Wall Street Journal, Nova York, 27 de dezembro de 2005


[12] Respectivamente em Politique internationale, nº 110, Paris, inverno de 2006; e The Wall Street Journal, Nova York, 21 de dezembro de 2004


[13] Zavtra, nº 44, Moscou, novembro de 2006


[14] 22 de dezembro de 2006


[15] Eugueni Primakov, Blijnii Vostok na stsene i za kulisami, edições da Rossiiskaia Gazeta, Moscou, 2006


[16] Andranik Migranian, Izvestia, Moscou, 13 de dezembro de 2006


[17] [Ver – www.kremlin.ru/eng


[18] Argumenti i fakti, nº 33, Moscou, 2006, e Moskovkie Novosti, nº 21, Moscou, 2006


[19] Moskovkie Novosti, 8 de dezembro de 2006


[20] Milton Friedman (1912-2006): economista norte-americano, líder da “escola de Chicago”, grande defensor do liberalismo, morto em 16 de novembro de 2006. Friedrick Haiek (1899-1992): filósofo e economista da “escola austríaca”, promotor do liberalismo contra o socialismo e o estatismo


[21] Le Soir, Bruxelas, 14 de julho de 2006


[22] “Kremliovskaia chkola politologi”, Liberalnaia Missiia, Moscou, 2006


[23] Argumenti i fakti nº 49, Moscou, dezembro de 2006


[24] Citam-se, entre outros, os nomes de Dimitri Medvedev, chefe do gabinete presidencial e administrador da Gazprom, et de Serguei Ivanov, ministro da Defesa