Soberania alimentar: A luta dos agricultores do Mali

Produtores rurais de Sélingué, cidade que sediou o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, relatam suas dificuldades para sobreviver no mundo globalizado, que beneficia as transnacionais em detrimento dos pequenos produtores. Por Dafne Melo, para o jornal

A dez minutos a pé da vila de Nyéléni, pela rodovia que corta a pequena cidade de Sélingué – ligando-a à capital do Mali, Bamako –, o conjunto de pequenas casinhas construídas com pedaços de madeira, aglomeradas na beira da estrada, dão espaço a uma placa que avisa a entrada para uma pequena fazenda de produção de leite. À primeira vista, nenhum sinal de gado. No horizonte, apenas a paisagem marrom da vegetação de savana, presente nas áreas próximas ao rio Níger, onde estão as terras mais férteis do Mali.



Antes de explicar o paradeiro dos animais, Sama Sow – um dos produtores que recebeu uma equipe de pouco mais de dez jornalistas, fotógrafos e tradutores – segue os costumes da região e faz uma saudação. “Estamos honrados em receber esta visita. Vocês deixaram a casa de vocês, mas aqui também estão em casa. Ninguém é estrangeiro no Mali”, diz em bambara, a língua mais falada no país, já que o francês é utilizado pela população apenas nas principais cidades ou por aqueles que tiveram acesso ao estudo.



Obstáculos



“Os animais estão no pasto e voltam daqui a umas três horas”, explica Sow. Enquanto isso, Sekou Bah, outro produtor, começa a falar sobre a luta dos produtores de leite de Sélingué. Hoje, no Mali, há duas empresas que fabricam o produto a partir de leite em pó importado da União Européia. Enquanto o litro desse é vendido por 100 CFA (francos africanos), o produzido em Mali custa 250 CFA, em média.



Bah explica que o encarecimento da produção é motivado por inúmeros fatores. “Aqui usamos uma espécie chamada mére que, apesar de resistente é pequena e produz pouco leite”. O maior problema, entretanto, é a alimentação dos animais. Como as terras, pertencentes ao Estado, são compartilhadas, há dificuldade em utilizar os pastos que, mesmo assim, são escassos. A alternativa é o uso de ração, importada a preços muitos altos, isso quando encontradas no país. E seu preço, não pára de subir. Há poucos anos, o preço de 5kg de ração ficava entre 750 e 1750 CFA. Hoje, custa 4500 francos. “Por tudo isso, o preço fica alto e a população recorre ao leite em pó, mais barato, porém menos nutritivo também”, diz o produtor para quem o governo maliense – que assinou uma lei no ano passado definindo a soberania alimentar como princípio – “não está fazendo sua parte em dar suporte aos produtores”.



União Européia



Thierry Kesteloot, representante da Oxfam na Bélgica, explica que a União Européia (UE) produz muito mais leite do que consome, gerando um excedente que é comercializado para a África a um baixo custo. “O leite europeu chega aqui com um preço fixo, garantido pelo acordo, o que é possível porque a produção é subsidiada”, elucida. Quem ganha com isso, entretanto, não são os pequenos produtores europeus, mas as transnacionais que conseguiram abaixar ainda mais o preço do leite nos últimos anos graças à entrada da soja brasileira a preços baixíssimos, usada para alimentar o gado. Para Kesteloot, uma saída seria a UE limitar sua produção, “impedindo que jogue todo seu excedente em outros mercados desprotegidos. Da forma atual, em cinco anos, a produção de leite da UE vai aumentar ainda mais e o preço diminuir. Como conseqüência, os pequenos e médios fazendeiros vão quebrar”, alerta.



Arroz



Vinte minutos de caminhada da fazenda de leite, também pela rodovia, e a paisagem marrom e aparentemente infértil dá lugar a uma grande área de terras alagadas onde cerca de 3 mil famílias produzem arroz. Mais uma vez, os produtores rurais malinenses mostram a difícil luta para sobreviver em um mercado globalizado. Gaoussou Traoré, agricultor e coordenador da entidade que reúne os produtores locais, agradece a presença dos visitantes e se diz honrado em sediar o evento em sua comunidade. Em seguida, começa a mostrar a área e a explicar como se dá o plantio. “Aqui é como se fosse nossa casa. Passamos o dia aqui”, diz.



A área em questão (1.350 hectares), também pertence ao governo malinense. Cada família tem direito a meio hectare (uma família mediana é composta por 16 pessoas, já que homens podem casar-se com até quatro mulheres, de acordo com os costumes locais). Se outra família quiser produzir na área, deve entrar numa lista de espera, e aguardar a liberação de novas áreas pelo governo.



Atualmente, explicou Traoré, o governo do Mali importa arroz do Vietnã e da Tailândia, vendido a 200 CFA o quilo. Mais barato do que o produzido localmente, por 210 CFA. “Não entendo como o arroz, apesar de vir de longe, chega aqui com o preço mais baixo do que o nosso”, questiona o agricultor, que recrimina a atitude do governo. “Nós o requisitamos, mas não temos sido atendidos. Essa é uma das grandes lutas do movimento camponês daqui”, diz.



Dentre as dificuldades dos produtores, somem-se a falta de materiais apropriados para a produção e o alto preço dos fertilizantes.



Explicação



A indiana Shalmali Guttal, pesquisadora da organização Focus On The Global South, dá uma explicação para o baixo preço do arroz vietnamita. “Por que é barato? Porque as pessoas estão sendo pagas muito pouco por ele; e não porque estão recebendo subsídios”, diz a ativista, uma das organizadoras do Fórum. “Os agricultores vietnamitas são muito pobres, vivem com quase nada. Então, os comerciantes internacionais podem comprar o arroz a um preço muito baixo”, completa. Outro motivo é a política do governo vietnamita que fixa o preço do arroz num certo patamar e estimula a exportação. “Quase todos os países que estiveram sob governos socialistas ou comunistas, agora, tornaram-se 'Capitalismo de Estado'”, avalia Shalmali.


 


A tragédia do livre mercado, diz a pesquisadora, é que quem ganha com a miséria – tanto dos produtores vietnamitas como dos malienses – é o grande capital. “As transnacionais ganham muito dinheiro com esse comércio, e não os pequenos produtores do Vietnã ou da Tailândia e, definitivamente, muito menos os do Mali”. Citando o exemplo de seu país, a Índia, Shalmali conta que os próprios agricultores que produzem comida passam fome.


 


Para a pesquisadora indiana, a saída para o conflito não passa pelo repúdio a qualquer tipo de comércio, mas apenas pela afirmação de políticas que garantam um comércio justo. “Não estamos dizendo: 'Não importe' ou 'não exporte'. Mas as políticas internacionais para o comércio têm de ser uma ferramenta para o desenvolvimento e não uma maneira de impedi-lo”, finaliza.