O ano em que o ''fotógrafo'' Che Guevara sofreu clicando o Pan

Meses antes de empunhar um fuzil Garand na selva cubana, Ernesto ''Che'' Guevara portava uma câmara fotográfica Retina pelas ruas da Cidade do México, ganhando um troco fazendo e vendendo retratos dos transeuntes nas praças locais.

Certo dia de janeiro de 1955, o jovem de 26 anos conheceu no bonde um conterrâneo seu, o jornalista argentino Alfonso Pérez Vizcaíno. Da conversa surgiu o convite para Guevara trabalhar como ''correspondente provisório'' na agência de notícias Prensa Latina. Vizcaíno precisava de um funcionário para a cobertura da segunda edição dos Jogos Pan-Americanos, que começaria dia 6 de março.


 


Guevara precisava de dinheiro. Não conseguia emprego fixo em sua profissão — se formara médico dois anos antes em Buenos Aires. O hobby da fotografia acabou virando um bico. As agruras do futuro mito revolucionário trabalhando no Pan estão relatadas em seu diário particular e na correspondência que mantinha com familiares e amigos na Argentina.


 


''Meu trabalho durante os Jogos Pan-Americanos é exaustivo em todo o sentido da palavra, pois tenho de ser o compilador de notícias, redator, fotógrafo e cicerone dos jornalistas enviados que chegam da América do Sul'', queixou-se Guevara em carta para a amiga Tita Infante. ''Minha média de horas de sono não passou de quatro horas, porque eu também fui responsável por revelar e ampliar as fotos.''


 


Sustento difícil
Para piorar a situação, o pagamento demorou a sair. Duas anotações da época: ''Sigo trabalhando, mas sem receber ainda'' e ''Não me pagaram, nem vão me pagar tão cedo porque o dinheiro vem (ou não vem) de Buenos Aires''. Quando os honorários chegaram, dois meses depois da competição, vieram pela metade: três mil pesos (o equivalente a US$ 2.000 atuais). ''Já recebi o primeiro mês e já gastei tudo. Não sei o que vou comer até a próxima remessa'', reclama em seu diário.


 


Em julho, ainda esperando o dinheiro, é que Guevara conheceu o revolucionário cubano Fidel Castro. Nos anos 50, a Cidade do México era sede do ''Pan-Americano dos exilados'', recebendo perseguidos políticos dos países vizinhos. Guevara mesmo se casaria em agosto com uma exilada peruana, Hilda Gadea, que estava grávida dele. As preocupações com o sustento aumentaram.


 


Lentamente, a agência se dissolvia. Seu chefe prometia que iria pagar. Guevara sonhava com o que faria com o dinheiro. ''Eles me devem dois meses de salário, mais uma indenização por demissão… Esse dinheiro viria muito bem, pois com ele posso pagar algumas dívidas, viajar pelo México e ir para a puta que o pariu'', rabiscou em seu caderno.


 


Em setembro, a esperança de receber o restante do dinheiro caiu definitivamente por terra quando o presidente argentino Juan Domingo Perón foi deposto (seis meses após o Pan). A Prensa Latina, criada em 1952, era um instrumento dos peronistas para contrabalançar as hostilidades das agências de notícias norte-americanas em relação ao governo Perón — situação similar a que vive atualmente o venezuelano Hugo Chávez na América Latina.
 


Apesar de ser crítico ao populismo de Perón, Che sofreu com a derrubada do presidente argentino — para além de seu bolso. Escreveu ele em carta para sua tia Beatriz: ''Senti um pouco pela queda de Perón. A Argentina era uma ovelhinha cinza clara, mas se diferenciava das outras. Agora terá a mesma corzinha branca de suas 20 primorosas irmãs.''


 


Argentina x Estados Unidos
Em 1955, Perón usava todos os meios para se manter no poder. Ele quis destacar o Pan nos jornais argentinos para desviar a atenção da opinião pública, mais interessada nas constantes ameaças de golpe militar. Como anfitriã, quatro anos antes, a Argentina tinha vencido o 1º Pan.


 


No México, porém, os Estados Unidos levaram seus melhores atletas, deixando os argentinos bem atrás na segunda colocação. Che Guevara fotografou muitos pódios povoados com norte-americanos, que começariam nesse Pan sua hegemonia na competição. Justo ele que nutria um antiamericanismo, que se viu aumentado por um episódio do ano anterior.


 


Guevara chegou ao México em setembro de 1954 saído da Guatemala, onde viveu sua primeira experiência revolucionária. O país da América Central vivia o governo esquerdista do Jacobo Arbenz, que, em sua política contra os latifúndios, desapropriara uma fazenda da United Fruit, empresa norte-americana que dominava as ''repúblicas das bananas''.


 


A reação não demorou: militares apoiados pelos Estados Unidos bombardearam a capital. Guevara se ofereceu como médico para socorrer os feridos da resistência, mas, como o governo legítimo logo caiu, o argentino acabou tendo de se refugiar na embaixada de seu país. Ele se negou a voltar para Buenos Aires. Dali partiu para a capital mexicana.


 


Decepção
A guinada para a vida de revolucionário aconteceu devido ao cenário social latino-americano que ele viu em suas viagens. Sua decepção profissional, porém, também o empurrou para isso. Guevara chegou a escrever para sua mãe que planejava comprar um estúdio fotográfico no México.


 


Mas tudo isso ficou só nos planos. ''Sigo com a fotografia, mas cada vez com menos vontade'', escreveu em seu diário antes de começar ainda no México o treinamento guerrilheiro com os irmãos Castro — Fidel e Raúl.


 


O resto da história é conhecida. Em 25 de novembro de 1956, ele embarca na lancha Granma em direção à ilha caribenha. De médico da guerrilla, vira um dos líderes. E em janeiro de 1959 entrou em Havana para inaugurar a Revolução Cubana e virar um mito latino-americano.


 


Fonte: Folha Online