O ocaso de um ditador e a verdade que não morre

O jornalista e pesquisador da cultura latino-americana, Enilton Grill Jr, neste artigo, fala da queda de um dos mais sanguinários ditadores da américa latina: Augusto Pinochet. Enilton lembra do compositor e cantador Victor Jara, que representou, com a

Em outubro de 98, o destino pregou uma peça e derrubou um dos homens de ferro dos anos de chumbo na América Latina. O General Augusto Pinochet, ex-presidente do Chile, ex-comandante-em-chefe e capitão-general do Exército chileno e um dos principais responsáveis pela barbárie e o genocídio que assolou o Cone Sul nos anos 60 e 70, pareceu, por alguns instantes, ter esquecido suas façanhas. Naquele outubro de 98, o então senador vitalício pelo Chile, sai de seu país sem os devidos resguardos judiciais e acaba preso num hospital de Londres, onde se recuperava de uma cirurgia de hérnia de disco. Após 530 dias de prisão domiciliar em Londres, Pinochet volta ao Chile, dias depois de o governo britânico ter afirmado que ele não estava em condições de enfrentar um julgamento por razões de saúde, e de ter negado sua extradição para a Espanha. Em agosto de 200, a Suprema Corte do Chile retira o foro privilegiado de Pinochet como senador vitalício para que possa ser julgado pela Caravana da Morte, que teve 75 homicídios cometidos depois do golpe. Quatro anos depois, um jornal norte-americano revela um documento do governo dos EUA segundo o qual Pinochet e sua mulher mantêm contas secretas com até 8 milhões de dólares no banco Riggs. O juiz Sergio Muñoz é nomeado para investigar o caso no Chile. O Estado chileno processa Pinochet por fraude fiscal. O presidente Ricardo Lagos divulga um levantamento em que 28 mil casos de tortura são detalhados e o juiz Juan Guzmán processa Pinochet por nove seqüestros e um homicídio na Operação Condor. Hoje, sem o poder da farda o ex- ditador encontra-se preso e responde por inúmeros crimes contra a humanidade. Entre os anos de 1973 e 1989, Pinochet comandou uma das mais sangrentas ditaduras militares do continente. Conforme os dados da Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, durante estes anos, foram computados 1.102 desaparecidos e 2.095 mortos. Além disso, ele foi um dos mentores da nefasta Operação Condor – a união dos aparatos repressivos dos países do Cone Sul na perseguição a oponentes políticos, durante os anos 70 e início dos 80. Dessa Operação resultaram, segundo grupos de direitos humanos, cerca de 35, 8 mil cadáveres. Após todas essas barbáries, era dizimada uma das mais bem sucedidas e promissoras experiências socialistas. O Palácio La Moneda era bombardeado pelas forças do general Augusto Pinochet. Morria Salvador Allende, presidente do Chile. Era calada a voz de uma multidão. Assustados e com medo, para fugir ao genocídio do regime dos coturnos, muitos chilenos partiam para o exílio em países como França, Espanha e Itália.


 



Anos depois, cidadãos perambulavam livres pelas ruas de Santiago do Chile, enquanto o ex-ditador agonizava seus últimos dias assustado e preso sobre o chão regado com o sangue de suas vítimas.


 


Yo pisaré las calles nuevamente


De lo que fué Santiago ensangrentada


Y en una hermosa plaza liberada


Me detendre a llorar por los ausentes…


Mas temprano que tarde sin reposo…


Renacerá mi pueblo de su ruína


Y pagarón su culpa los traidores…


Pablo Milanés(compositor cubano)


 


Hoje, o tempo revisa a história e faz justiça ao povo chileno. Dia 10 de dezembro de 2006 morre Augusto Pinochet. Foi-se o tirano.O antigo ditador chileno morreu vítima de infarto do miocárdio e edema pulmonar. Isabel Allende, filha de Salvador Allende, afirmou que não há nenhuma razão para que ele seja merecedor de honras de Estado. Já o poeta uruguaio Mário Benedetti escreveu que ''os canalhas vivem muito, mas algum dia morrem. E disse mais o poeta:


 



''la muerte


no borra nada


quedan


siempre las cicatrices


hurra


murió el cretino!!!''


 


Os povos uruguaio e argentino e também o chileno, quando questionados e incitados a falar sobre os anos de chumbo, costumam encerrar a conversa com um definitivo e sonoro: no perdono…no olvido. Pinochet que nunca teve como virtude ouvir o clamor das ruas, por alguns instantes esqueceu seus feitos e se descuidou ao sair de seu país, onde gozava de imunidade como senador vitalício. Agora, a história parece que não está disposta a esquecê-lo. E, menos ainda, perdoá-lo.


 


Mas a história já teimava em condenar o ex-ditador bem antes. Num dia 14 de setembro de 73 o General pensou ter calado a voz do povo com o assassinato de um poeta popular.Mas entre gritos angustiantes e desesperados, uma voz falou mais alto. Era a voz de Victor Jara. Victor Jara era torturado até a morte para daí emergir como símbolo de toda uma geração. Ali a história já desautorizava o General.  Victor Jara jamais se calou e sua voz ecoa, mais forte ainda, após a sua morte. Diretor e professor teatral, Victor Jara fez parte dos grupos “Cuncumén” e “Quillapayun”, mas sobretudo ele foi um dos mais importantes compositores da “Nueva Canción Chilena”. Victor Jara foi torturado até a morte. Morreu gritando de dor e cantando por amor. Amor ao seu povo e aos seus princípios. Princípios de justiça e igualdade.


 


“líbranos de aquel que nos domina


en la miseria,


tráenos tu reino  de justicia


y igualdad”


(Victor Jara)


 


 


A vida de Victor Jara foi todo um símbolo de um processo de busca de identidade de uma classe social. Entre outras conquistas, ele buscou dotar sua verve de uma autonomia e uma personalidade integrada ao desenvolvimento de seu país e do continente. A presença da mensagem política nas suas poesias e nas canções foi resultante de uma contemplação atenta da realidade e da necessidade de expressá-la.


 


“Yo no canto por cantar


ni por tener buena voz


Canto porque la guitarra


tiene sentido y razón”


(Victor Jara)


 


 


Na obra do poeta, fica claro o enfoque político, propondo através da música, denunciar os dramas de seu povo e suas mazelas. Após um período de pesquisas, feitas com o grupo Quillapayun, Victor Jara fundou a Dicap – Discoteca del Canto Popular – mostrando aos próprios chilenos, os valores culturais dos camponeses, dos mineiros e a realidade do país, propondo assim uma unidade popular.


 


O poeta costumava afirmar: “Se um autor ou intérprete for um trabalhador revolucionário, projetará sua obra sem elitismo, misturando-se constantemente com a classe trabalhadora. Entre autor e massas populares deve haver um diálogo permanente. E esse diálogo enriquecerá a ambos”.


 


“Yo no quiero mi pátria dividida,


Cabemos todos en la tierra mia.


Yo me quedo a cantar con los obreros


en esta nueva historia y geografia”


(Pablo Neruda/Victor Jara)


 


 


Enfim, o povo não esquece e não perdoa porque foi atingido no que há de mais caro ao ser humano: Liberdade. Liberdade de expressão. Liberdade de ir e vir. Liberdade de decidir. O povo foi feito massa de manobra. Uma geração inteira foi forjada a mão de ferro. O povo não perdoa e não esquece porque o povo se perdeu. Pais, mães, filhos, maridos, mulheres e amigos jamais se encontraram. Se perderam. Uns dos outros. As Mães da Praça de Maio, na Argentina, dizem que não perdoam e não esquecem porque gritar, todos os dias, por seus filhos desaparecidos é questão de sobrevivência. É o que alimenta suas almas. É o que traz sentido às suas vidas. 


 



No final dos anos noventa, Joan Jara, viúva de Victor Jara, esteve em Porto Alegre lançando seu livro Canção Inacabada – A vida e a obra de Victor Jara, no qual descrê sua experiência ao lado do poeta. No livro, Joan afirma que é impossível viver com ódio, mas argumenta que não pode perdoar a quem jamais mostrou arrependimento. Quando indagada sobre que castigo consideraria adequado a Pinochet, hesitou, mas confessou: “ – Gosto do fato de que ele esteja se sentindo vulnerável.”


 


Antes de ser levado para o Estádio Nacional do Chile, Victor Jara ainda trocou algumas palavras com sua esposa. “ Ele só dizia que no momento não poderia chegar em cãs por causa do toque de recolher. Que tentaria chegar no dia seguinte. Não me disse, mas depois eu soube, que a Universidade estava rodeada pelos militares. Me disse que me cuidasse…que me queria…que cuidasse das meninas…que me amava…que amava as meninas.”


 


Sua mulher e suas duas filhas, Manuela e Amanda, lhe esperaram no outro dia…Não chegou. No dia do seu regresso era um corpo a mais crivado de tiros. Um corpo de mãos despedaçadas. Um frio exemplo da luta popular nos anos de chumbo.


 


Victor Jara foi assassinado nos camarins do Estádio Nacional do Chile. Os militares destroçaram suas mãos a golpes de coronha. Enquanto suas mãos eram destroçadas, ele animava os presos cantando e batendo palmas até não agüentar mais. Antes de cair morto, em meio aos seus companheiros, no centro da violência, o poeta fez ouvir sua voz. E a sua voz era a voz de um punhado de vencidos. Ele cantava, sem cair, para que o espírito de seus companheiros também não caísse. Apesar das mãos destroçadas, Victor Jara continuou cantando…até que os militares, se dando por vencidos…lo tirotearon en las piernas y lo dejaron desangrar-se: “canta ahora…” – lhe diziam –  “a ver si ahora cantas huevón…”Somente o silêncio de sua morte fez calar sua voz…e seu silêncio fez-se símbolo.


 


 



“Te recuerdo Amanda,


La calle mojada


Corriendo a la fábrica


donde trabajaba Manuel


La sonrisa ancha


La lluvia en el pelo


No importaba nada,


Ibas a encontrarte con él


Con él, con él


Que partió a al sierra


Y en cinco minutos


Quedó destrozado.


Suena la sirena,


De vuelta al trabajo.


Muchos no volvieron.


Tampoco Manuel


(Victor Jara)


 


Quando torturou o poeta até a morte, o regime ditatorial do General Pinochet imaginou ter calado a voz popular. Enganou-se o tirano. A veracidade do canto de Victor Jara transcende sua própria natureza de indivíduo. Ela conta toda uma história. Uma história que se pretendeu afogar em sangue. Enganou-se o tirano. E de uma história afogada em sangue emerge a encarnação do mito. É que seja afogado ou soterrado um mito sempre sobrevive. Felizmente os mitos sobrevivem. Viva Victor Jara! Victor Jara vive!


 



Entenda o caso Pinochet


Março de 1991 — A Comissão de Verdade e Reconciliação determina que mais de 3.000 pessoas foram mortas ou desapareceram vítimas da violência política durante a ditadura chilena, entre 1973 e 1990.


Agosto de 1996 – O juiz espanhol Manuel García Castellón dá início à investigação sobre os desaparecidos, mas transfere o caso ao juiz Baltasar Garzón.


Janeiro de 1998 – O Partido Comunista impetra a primeira ação no Chile contra Pinochet, por genocídio, seqüestro e homicídio de integrantes da cúpula da organização.


Outubro de 1998 – Pinochet é detido em um hospital particular de Londres, onde se recuperava de uma cirurgia, a pedido do juiz espanhol Garzón, que pretende extraditá-lo para a Espanha, a fim de que seja julgado lá por genocídio e tortura.


Dezembro de 2000 – O juiz chileno Juan Guzmán processa Pinochet pela Caravana da Morte e determina sua prisão domiciliar, que dura 42 dias.


Julho de 2002 – A Corte Suprema arquiva as denúncias declarando que o réu sofre de ''loucura ou demência''. Um dia depois, Pinochet renuncia ao Senado, mas mantém o foro privilegiado por ser ex-governante.


Novembro de 2003 – Pinochet concede entrevista a uma emissora norte-americana, nega as acusações e afirma que se sente ''um anjo''.


Agosto de 2004 – A Corte Suprema retira a imunidade de ex-governante para que Pinochet seja investigado pelo desaparecimento de opositores na Operação Condor, uma rede de repressão armada pelas ditaduras sul-americanas na década de 1970.


Setembro de 2005 – A Corte Suprema tira a imunidade de Pinochet no caso Colombo, a matança de 119 opositores esquerdistas.


Novembro de 2005 – O juiz Victor Montiglio ordena sua prisão domiciliar pelo seqüestro qualificado de três detidos desaparecidos, na Operação Colombo. Pinochet cancela sua festa de 90 anos.


Janeiro de 2006 – A Corte de Apelações de Santiago outorga a liberdade a Pinochet, sob pagamento de fiança, no caso da Operação Colombo.


Setembro de 2006 – A Corte Suprema retira a imunidade de Pinochet para que, pela primeira vez, seja investigado por crimes de tortura, seqüestro e homicídio de mais de 50 opositores esquerdistas na Casa de Detenção de Vila Grimaldi.


Outubro de 2006 – O juiz Alejandro Solís determina a prisão de Pinochet devido aos crimes de Villa Grimaldi.


Dia 10 de dezembro de 2006 morre Augusto Pinochet.
Pinochet e Victor Jara: no perdono, no olvido!


 



Enilton Grill Jr. é jornalista e pesquisador da cultura latino-americana. Apresenta o programa ''Américas'' na Radiocom 104.5 FM de Pelotas/RS. Já realizou inúmeros programas-reportagem para o rádio, com entrevistas com expoentes da música da AL como Mercedes Sosa, Dorival Caimi, Pepe Guerra, Daniel Viglietti, Chico Buarque entre outros.
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