Os americanos e o direito de matar

Por Bernardo Joffily
Depois da carnificina na Universidade Universidade Técnica da Virgínia, em Blacksburg, com 32 mortos, os Estados Unidos voltam a se confrontar com um debate inevitável: faz sentido permitir que qualquer um, por um punhado de dól

O tema está imbricado com o elevado grau de violência da sociedade americana, com seu extraordinário número de ''mass murderers'' (assassinos em massa) e seus congêneres, os ''serial killers'' (matadores em série).



Os ''mass murderers'' em escolas formam um subgênero de macabra proliferação. A matança desta segunda-feira (16) em Blacksburg é uma em uma série de dezenas, algumas perpetradas por alunos, outras por estranhos. E nem é a mais mortífera: o troféu ainda pertence ao ''Desastre de Bath School'', no Michigan, em 1927: foram 45 mortos, dos quais 38 crianças.



Uma patologia social



''Mass murderers'' e ''serial killers'' são manifestações extremas de uma patologia social que banaliza a violência. Esta se manifesta também em outros sintomas. Por exemplo a temática de Hollywood e outros componentes da indústria cultural americana; ou os 5,2 milhões de delitos violentos ocorridos no país em 2005; ou os 2,2 milhões de presos, conforme o Departamento de Justiça anunciou em 30 de novembro passado; ou o número de cidadãos em liberdade condicional, que pela primeira vez superou 7 milhões; ou ainda ao fato de que há mais de um século o país salta de guerra em guerra.



O modo como os Estados Unidos e os estadunidenses tratam o uso de armas de fogo faz parte dessa sintomatologia. Ele tem a mesma direção da campanha de direita que, no Brasil, levou à derrota da proposta de desarmamento no referendo de 2005. Mas é incomparavelmente mais enraizado, mais radicalizado e mais letal.



Nos EUA a compra e venda de armas e munições de uso pessoal é livre e irrestrita, mesmo no caso, por exemplo, de um fuzil automático. ''Os americanos andam com armas debaixo do braço como nós, franceses, andamos com uma bisnaga de pão'', horrorizava-se hoje uma internauta francesa.



O peso da Segunda Emenda



A liberdade para carregar instrumentos de morte é alegadamente protegida pela Segunda Emenda à Constituição dos EUA: ''Sendo uma milícia bem preparada necessária para a segurança de um Estado livre,  o direito de possuir uma arma não deve ser violado'', diz o texto de 1791, aprovado pelos ''Pais Fundadores''.
O que primitivamente era um dispositivo de defesa popular do Estado saído da Revolução Americana transformou-se com o tempo no seu contrário. Nunca mais os EUA recorreram a uma milícia como na Guerra de Independência. Mas diariamente assistem ao derramamento de sangue inocente, como hoje em Blacksburg.



Das batalhas legais à luta armada



Em torno do direito de matar formou-se uma opinião pública conservadora e ultraconservadora, que se declara disposta a ir desde as batalhas legais até a luta armada para defendê-lo. A NRA (National Rifle Association), criada em 1871 para defendê-lo, diz ter 4,3 milhões de associados e ser a mais forte entidade civil do país. Mas é acusada de ''conciliação'' por sua rival, a GOA (Gun Owners of America, Proprietários de Armas da América), que entre 1998 e 2004 gastou US$ 18 milhões em lobbies pró-armamento.



Em 1994 esses movimentos se levantaram contra uma lei federal que proibia o uso de certos tipos de fuzis semi-automáticos. Dez anos depois conseguiram sua não renovação. Sua ira voltou-se contra leis estaduais de restrição ao uso de armas de fogo, como as existentes em Chicago, Washington e São Francisco. Em junho passado, um tribunal superior deu-lhes razão.



A Coalizão Stop Gun e a Marcha das Mamães



Porém essa opinião pública de direita enfrenta um também considerável movimento de sentido contrário. Muitos norte-americanos simpatizam com entidades como a Coalizão Parem com a Violência Armada (Stop Gun Violence) ou a MMM. Esta última é a sigla da Million Mom March (Marcha do Milhão de Mamães), que entrou em atividade no Dia das Mães de 2000, reunindo não 1 milhão mas pelo menos 750 mil pessoas em Washington.



Os dois lados são politizados. A NRA e a GOA fizeram em 2000 e 2004 campanha para eleger George W. Bush. Em campanha, o vice-presidente da primeira, Kayne Robinson, declarou que ''se vencermos, teremos um presidente''.



Já os adeptos da restrição à posse e uso de armas tendem a ser ''liberais'', como se chama na política local a a tendência democrática e/ou esquerdizante. Contam também com a indignação que um assassinato em massa como o da Virginia Tech University.