A fantástica revolução antiescravista do Haiti

Por Bernardo Joffily
A tragédia do Haiti atual castiga um país que já esteve no primeiro escalão da prosperidade econômica e da ousadia política nas Américas. É o que mostra Os Jabocinos negros, livro clássico de C. L. R. James, escrito em 193

Os Jacobinos atrai a começar pelo estilo: desabrido sem perder o rigor, engajado até a raíz dos cabelos (James escreveu-o visando estimular a luta anticolonialista na África) sem abrir mão do senso crítico, nem do humor cáustico que não poupa nenhuma das facções em confronto.



Haiti do século 18 exportava mais que os EUA



Escrito há quase sete décadas, o livro ganha uma inusitada atualidade à luz dos acontecimentos recentes, no país que é hoje estigmatizado como o mais pobre do continente.



Nem sempre foi assim. James mostra como, ao longo do século 18, a França montou na parte ocidental da ilha Hispaniola o mais rentável empreendimento colonial da época. No fim do século, e na véspera da revolução, as exportações do Haiti (que na época se chamava São Domingos) superavam em valor as dos Estados Unidos.
A prosperidade se baseava no café, algodão e sobretudo na cana-de-açúcar. E seu segredo estava no escravismo colonial, regime inventado no Brasil (muitos o chamavam ''sistema brasileiro''), mas levado às ultimas conseqüências na possessão francesa.



Sob a ótica da luta de classes



James descreve a sociedade haitiana conforme o ponto de vista da luta de classes; para se referir aos negros escravizados, usa com freqüência o termo ''trabalhadores''. Peça por peça, vai desmontando a sociedade colonial na parte francesa da ilha, com território equivalente ao do estado de Alagoas, e uma população que chegava a um terço da brasileira na mesma época.



Primeiro, os africanos escravizados, que somam mais de meio milhão. O texto descreve, com uma crueza indignada que nunca escorrega no pieguismo, como a escravaria era posta para trabalhar até a morte, atirada nas caldeiras dos engenhos ou enterrada viva e lambuzada de melado, para ser devorada pelas formigas (suplício que também foi usado no Brasil a julgar pela lenda do Negrinho do Pastoreio). Mas os escravos também não são uma massa uniforme: o autor distingue a maioria de trabalhadores do eito e a ''pequena casta privilegiada'' dos escravos domésticos.



No pólo oposto, os senhores de engenho franceses, que concentram a opulência da empresa colonial. Abaixo destes, uma camada de brancos pobres. Todos somados, os brancos de São Domingos mal chegam a 30 mil. No meio do caminho entre essa minoria e a massa imensa escravizada, uma camada de mulatos e negros libertos, que também soma seus 30 mil e inclui gente endinheirada, inclusive senhores de engenho e de escravos.



No exterior da sociedade haitiana, a metrópole colonial francesa. Mas também a espanhola, que ocupa a outra parte da ilha, e a britânica, estabelecida na Jamaica e em outros pontos das Antilhas, que tentará se apossar de São Domingos.
Sob o impacto da Revolução



Este precário equilíbrio se espatifará sob o impacto de uma grande transformação na metrópole – a Revolução Francesa de 1789-1799. Esta servirá de estopim para a Revolução Haitiana, de 1791-1804. Na primeira, a burguesia, apoiada nas massas populares, desafia o Antigo Regime feudal-absolutista. Na última, a escravaria em armas enfrentará uma vertiginosa sucessão de alianças e combates, até obter a libertação, referendada pela França revolucionária em 1794, e no final a independência.



Dois gigantes revolucionários



A Revolução Haitiana é o único caso que a história registra de um processo revolucionário anti-escravista que alcança a vitória em toda linha. C. L. R. James acompanha-a passo a passo, em todas as suas complicações, peripécias e reviravoltas, nos planos social, político, militar, diplomático. O fio condutor é sempre a luta de classes. É a partir dela que ele procura interpretar seus personagens: esboça o perfil de dezenas deles, inclusive algumas mulheres, mas se detém em dois que avultam entre todos.



Touissant L'Ouverture — o apelido, que significa textualmente ''o Abertura'', deve-se aos seus dotes de estrategista militar — é um escravo doméstico (trabalha como cocheiro), alfabetizado, dado a ler livros (!) e se aproxima dos 50 anos quando abraça a luta revolucionária. Chegará a general da República francesa, antes de ser atraiçoado, preso, enviado a uma prisão na metrópole, onde é literalmente morto de fome e frio. Quem orquestra a perfídia é o cônul e futuro imperador Napoleão Bonaparte, personagem controversa a dúbia, que planeja restaurar a escravidão no Haiti, como de fato o faz na ilha vizinha de Guadalupe.



Touissant é o principal personagem de Os Jacobinos negros. Ao seu lado, C. L. R. James retrata também Jean-Jacques Dessalines, jovem negro do eito, com as costas lanhadas pelas cicatrizes da chibata, lugar-tenente do ''Espártaco de ébano'', seu sucessor quando este é aprisionado, que derrota um exército napoleônico de 25 mil homens (!), proclama a independência da colônia e batiza-a de Haiti.



Um capítulo final, De Touissant L'Ouverture a Fidel Castro, foi acrescentado pelo autor em 1980. Nele, Os Jacobinos ganha a espessura conferida por quase dois séculos de história, já não mais haitiana e sim do conjunto das Antilhas, inclusive em sua dimensão cultural e literária. E a Revolução Cubana é enaltecida sob a ótica muito especial e fértil de um intelectual antilhano, com anos de vivências britânicas, estadunidenses e africanas.



Por que não ler trotskistas?



Cyril Lionel Robert James tinha 37 anos, morava em Londres e era um dos dirigentes da 4ª Internacional trotskista quando escreveu Os Jacobinos negros. Figura inquieta, também escrevera uma peça teatral sobre Touissant, levada ao palco pelo comunista norte-americano Paul Robeson; era também jornalista esportivo, especializado em cricket, e autor de um livro que até hoje é considerado um topo-de-linha da literatura sobre a modelidade. No fim dos anos 40 afastou-se do trotskismo e teve uma participação importante na luta anticolonial em Gana e outras nações africanas, assim como em sua terra natal, Trinidad e Tobago, onde morreu aos 88 anos.


Os Jacobinos Negros é um bom exemplo do quanto perdem os comunistas que não se aventuram na leitura de textos de outras vertentes do pensamento derivado de Karl Marx, como os trotskistas. É um livro que faz pensar e faz latejar o sangue, em especial nas nossas pátrias marcadas até hoje pelas cicatrizes do escravismo colonial. Claudica quando o autor se atribui o papel de aconselhar seus personagens, mas até aí há que levar em conta o atenuante da paixão.



No momento em que o Haiti é enxergado quase unicamente pela lente dos estereótipos da mídia dominante, Os Jacobinos vale também como um memorial à bravura e inteligência deste povo singular. Clóvis Moura, um divulgador brasileiro da obra de James, recorda que, no Brasil do início do século 19, os brasileiros que abraçavam idéias libertadoras eram chamados de ''haitianos''. A alcunha, infamante aos olhos dos conservadores que a empregavam, mostra que também nós somos devedores de de Tuissant e Dessalines.