Dermeval Saviani: a entrevista que a ''Folha'' distorceu

Em 26 de abril de 2007, Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e pesquisador em Educação, respondeu por e-mail a perguntas formuladas pela repórter Juliana Monachesi, da Folha de S.Paulo. A entrevista teve como pauta o Plano de Desenvo

De tudo o que Saviani escreveu à jornalista, apenas 40% foi publicado – prática que é normal no jornalismo. O problema é que a Folha, ao editar as entrevistas, distorceu a opinião geral expressa pelo pesquisador. Com o consentimento do pesquisador, o Vermelho publica, na íntegra, as respostas que ele enviou à Folha. Em seguida, reproduzimos a edição do jornal paulista.


 


O que Dermeval Saviani falou à Folha


 


Como o PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação) deve reverberar dentro da sala de aula, para professores e alunos? Qual o impacto das medidas para o professor como profissional?
Respondendo diretamente à questão formulada, parece que a manifestação ocorrida ontem em Brasília já dá uma idéia da reação dos professores, como profissionais. Ou seja: o piso salarial de R$.850,00 é claramente insatisfatório e, além do mais, está sujeito a uma implantação progressiva que se estenderá até 2.010. Não bastasse isso, ainda há a idéia do ex-ministro Paulo Renato de vincular o pagamento desse piso ao desempenho dos docentes em exames aplicados pelo MEC.


 


Nesse aspecto assiste razão ao Editorial da Folha de hoje (26/04) ao considerar que não faz sentido vincular o pagamento do piso aos resultados dos exames, exatamente porque se trata de piso, ou seja, aquele mínimo que se deveria pagar aos ingressantes na carreira. Se essa manifestação dos professores é um indicador de que seu ânimo em relação ao Plano se encontra um tanto estremecido e que sua recepção das propostas está marcada por preocupações em relação à sua situação profissional, pode-se concluir que essa negatividade repercutirá no interior das salas de aula contaminando seu trabalho pedagógico e interferindo, também negativamente, no ânimo dos alunos.


 


O Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), novo indicador desenvolvido pelo Ministério da Educação, mostra que apenas 0,8% dos municípios brasileiros já estão no patamar considerado ideal pelo governo federal.O índice aponta que hoje o país tem um Ideb de 3,8 e deve chegar a 6 até 2022, nota equivalente à média dos países desenvolvidos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos). As medidas anunciadas pelo governo – o piso de R$ 850 para os professores de escolas públicas, com ampliação gradual até 2010, aliado à capacitação técnica dos professores em pólos de formação, um acréscimo de 50% nas verbas do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para premiar os estabelecimentos públicos de ensino que melhorarem seu desempenho – são suficientes para que essa meta seja alcançada?
Essa numerologia sugere que o Plano estaria respaldado em estudos técnicos minuciosos, já que chega ao requinte de estabelecer valores com detalhes fracionários e projetando, para um período de quinze anos, a passagem do índice de 3,8 para 6 (note-se que a Folha de hoje dá um número ainda mais preciso, ao informar que ''para as redes municipais, a meta é sair dos atuais 3,4 e chegar a 5,7). Mas não é de estarrecer que se planeje o enfrentamento de questões que vêm se arrastando há dezenas de anos com tal grau de morosidade?


 


Fica-se com a impressão que estamos diante, mais uma vez, dos famosos mecanismos protelatórios. Nós chegamos ao final do século 20 sem resolver um problema que os principais países, inclusive nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai, resolveram na virada do século 19 para o 20: a universalização do ensino fundamental, com a conseqüente erradicação do analfabetismo.


 


Para enfrentar esse problema a Constituição de 1988 previu, nas disposições transitórias, que o Poder Público nas suas três instâncias (a União, os estados e os municípios) deveriam, pelos dez anos seguintes, destinar 50% de seus recursos financeiros para essa dupla finalidade. Isso não foi feito. Quando esse prazo estava vencendo, o governo criou o Fundef com prazo de mais dez anos para essa mesma finalidade; e a LDB, por sua vez, instituiu a década da educação; seguiu-se a aprovação em 2001, do Plano Nacional de Educação, que também se estenderia por dez anos.


 


No final do ano passado foi instituído o Fundeb, com prazo de 14 anos, ou seja, até 2020. Agora, quando mais da metade do tempo do PNE já passou, vem um novo Plano estabelecer um novo prazo, desta vez de quinze anos. Nesse diapasão, já podemos conjecturar sobre um novo Plano que será lançado em 2022 prevendo, quem sabe, mais 20 anos para resolver o mesmo problema.


 


E a conjectura acima não é mera ironia ou a visão cáustica de quem é irremediavelmente pessimista. Vejamos:


 



a) Não basta fixar um piso salarial mais elevado. A questão principal que, ao que parece, o Plano não teria contemplado, diz respeito à carreira profissional dos professores. Essa carreira teria que estabelecer a jornada integral em uma única escola, de modo que se pudesse fixar os professores nas escolas, tendo presença diária e se identificando com elas. E a jornada integral, de 40 horas semanais, teria que ser distribuída de maneira que se destinasse 50% para as aulas, deixando-se o tempo restante para as demais atividades.


 


Com isso os professores poderiam participar da gestão da escola; da elaboração do projeto político-pedagógico da escola; das reuniões de colegiado; do atendimento às demandas da comunidade; e, principalmente, além da preparação das aulas e correção de trabalhos, estariam acompanhando os alunos, orientando-os em seus estudos e realizando atividades de reforço para aqueles que necessitassem. Os recursos financeiros para se instituir essa carreira, contrariamente ao que constantemente se apregoa, não seriam difíceis de obter, como demonstrarei no item seguinte.


 


b) Aquilo que o Plano prevê para 15 anos, deveria ser programado como uma medida de impacto que permitisse imediatamente mudar a situação das escolas e levantar o ânimo dos professores que passariam a desenvolver suas atividades com entusiasmo e dedicação. Para viabilizar essa mudança propus, em 1997, para o Plano Nacional de Educação, que se dobrasse imediatamente o percentual do PIB investido em educação passando, dos atuais cerca de 4%, para 8%. Essa proposta foi considerada inexeqüível, no entanto, ela apenas nos situaria entre os países que mais investem em educação, como eram os casos dos Estados Unidos, da Suécia, Dinamarca e Austrália, segundo dados do próprio MEC em sua proposta de PNE, divulgada naquele ano.


 


Ora, nesse PDE apresentado pelo MEC, os recursos, quando referidos, pois essa questão parece ainda um tanto nebulosa no Plano, estão claramente aquém do que já estaria disponível, mesmo não se aumentando o percentual do PIB para a educação. Explico-me: num quadro montado pelo MEC mostrando o avanço representado pelo Fundeb mostra-se que, enquanto o Fundef previa um montante total de 35, 5 bilhões de reais, o Fundeb chegaria, no terceiro ano de vigência, a 55, 2 bilhões. No entanto, deve-se observar que, sem dúvida, os valores indicados no quadro, se efetivamente aplicados, melhorariam sensivelmente o financiamento da educação comparativamente à situação atual. Mas não teriam força para alterar o status quo vigente.


 


Ou seja: a ampliação dos recursos permitirá atender a um número maior de alunos, porém em condições não muito menos precárias do que as atuais, isto é, com professores em regime de hora-aula; com classes numerosas; e sendo obrigados a ministrar grande número de aulas semanais para compensar os baixos salários que ainda vigoram nos estados e municípios. Calculado pela nova metodologia do IBGE, o PIB brasileiro em 2006 foi de 2 trilhões e 322 bilhões de reais. Isso significa que, levando-se em conta a informação do próprio MEC de que o Brasil gasta em educação, atualmente, 4,3% do PIB, os gastos para 2007 deveriam ser da ordem de 99 bilhões e 846 milhões de reais.


 


Assim, mesmo descontando-se os gastos com ensino superior, que não chegam a 1% do PIB, o total de 43 bilhões e 100 milhões previstos para o Fundeb no corrente ano está muito aquém do que corresponderia a 2007. Com efeito, mesmo que fossem destinados 23 bilhões (1% do PIB de 2006) ao ensino superior, o montante a ser destinado à educação básica seria de 76 bilhões e 800 milhões, muito superior, portanto, ao valor de 43 bilhões e 100 milhões mencionado no quadro do MEC. Está aí, me parece, o grande furo do PDE.


 


Na verdade, fica demonstrado que, se dobrássemos o percentual do PIB, haveria recursos mais do que suficientes para tratar a educação com a devida seriedade e de acordo com a prioridade que é proclamada nos discursos, mas nunca efetivamente considerada. Procedendo da forma como estou propondo nós estaríamos, de fato, provendo os recursos suficientes para dar o salto de qualidade necessário para colocar a educação brasileira num patamar civilizado, condizente com a magnitude de seu território, de sua população e de sua economia.


 


Em termos de política pública para a educação, o PDE traz avanços para solucionar a situação crítica de inúmeras escolas públicas e leva a educação a desempenhar melhor o seu sentido de instrumento de transformação social; e como o PDE pode ser lido do ponto de vista da ''pedagogia histórico-crítica''?Em matéria na Folha On-line de hoje, foi veiculada a seguinte avaliação de Creso Franco, pesquisador da PUC-RJ, sobre a união de um indicador de fluxo escolar com outro de qualidade: ''Isso sinaliza que de nada adianta reprovar vários alunos para ter desempenho melhor no final da avaliação ou aprovar todos em detrimento da qualidade. Os dois fatores têm que andar juntos''. É notória a sua posição contrária à progressão continuada. O sr. vê nessa união de um indicador de fluxo escolar com outro de qualidade um avanço nesse aspecto?
Sendo breve, porque tanto o tempo como o espaço escasseiam, eu diria que, do ponto de vista da pedagogia histórico-crítica, o questionamento ao PDE se dirige à própria lógica que o embasa. Com efeito, essa lógica poderia ser traduzida como uma espécie de ''pedagogia de resultados''. Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação dos produtos forçando, com isso, que o processo se ajuste a essa demanda. É, pois, uma lógica de mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas ''pedagogia das competências'' e da ''qualidade total''.


 


Esta, assim como nas empresas visa obter a satisfação total dos clientes e, para isso, induz os trabalhadores a vestirem a camisa da empresa, competindo acirradamente para obter ganhos crescentes de produtividade, interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço, os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável.


 


No entanto, de fato, sob a égide da qualidade total, o verdadeiro cliente das escolas é a empresa ou a sociedade e os alunos são produtos que os estabelecimentos de ensino fornecem a seus clientes. Para que esse produto se revista de alta qualidade lança-se mão do ''método da qualidade total'' que, tendo em vista a satisfação dos clientes, engaja na tarefa todos os participantes do processo conjugando suas ações, melhorando continuamente suas formas de organização, seus procedimentos e seus produtos. Pelo que foi divulgado, é isto o que se pretende com o lançamento do PDE.


 


A visão da pedagogia histórico-crítica é inteiramente diversa. Em lugar de aplicar provas nacionais em crianças de 6 a 8 anos, o que caberia ao Estado fazer é equipar adequadamente as escolas e dotá-las de professores com formação obtida em cursos de longa duração, com salários gratificantes, compatíveis com seu alto valor social.


 


Isso permitiria transformar as escolas em ambientes estimulantes nos quais as crianças, nelas permanecendo em jornada de tempo integral, não teriam como fracassar; não teriam como não aprender. Seu êxito seria resultado de um trabalho pedagógico desenvolvido seriamente, próprio de profissionais bem preparados e que acreditam na relevância do papel que desempenham na sociedade, sendo remunerados à altura de sua importância social. 


 


O que o jornal publicou


 


O ensino de resultados
Para Dermeval Saviani, Programa de Desenvolvimento da Educação, lançado na terça, segue lógica do mercado


 


Por Juliana Monachesi


 


O professor emérito da Universidade Estadual de Campinas Dermeval Saviani afirma, em entrevista à Folha, que o Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE), anunciado na terça-feira, está embasado em uma ''pedagogia de resultados''.
Para ele, está subentendido no programa a lógica de mercado, de busca da ''qualidade total''.


 


Como o PDE deve reverberar dentro da sala de aula? Qual o impacto das medidas para o professor como profissional?
A manifestação ocorrida quarta-feira em Brasília já dá uma idéia da reação dos professores, como profissionais. Ou seja: o piso salarial de R$ 850 é claramente insatisfatório e, além disso, está sujeito a uma implantação progressiva que se estenderá até 2010.


 


Há ainda a idéia de vincular o pagamento desse piso ao desempenho dos docentes em exames feitos pelo Ministério da Educação. Se essa manifestação dos professores for um indicador de seu ânimo em relação ao PDE, pode-se concluir que essa negatividade repercutirá no interior das salas de aula, contaminando seu trabalho pedagógico e interferindo, também negativamente, no ânimo dos alunos.


 


As medidas anunciadas possibilitam alcançar a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica de 6 -hoje o país tem um Ideb de 3,8- até 2022?
Fica-se com a impressão de que estamos diante, mais uma vez, dos famosos mecanismos protelatórios.


 


Nós chegamos ao final do século 20 sem resolver um problema que os principais países, inclusive nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai, resolveram na virada do século 19 para o 20: a universalização do ensino fundamental, com a conseqüente erradicação do analfabetismo.


 


Para enfrentar esse problema, a Constituição de 1988 previu que o poder público nas suas três instâncias deveria, pelos dez anos seguintes, destinar 50% de seus recursos financeiros para essa dupla finalidade. Isso não foi feito. E planos se sucederam, um protelando a meta do anterior.


 


No final do ano passado, por exemplo, foi instituído o Fundeb, com prazo de 14 anos. Agora vem um novo prazo. Nesse diapasão, já podemos conjecturar sobre um plano que será lançado em 2022 prevendo mais 20 anos para resolver o mesmo problema.


 


Não basta fixar um piso salarial mais elevado. A questão principal que, ao que parece, o PDE não contemplou, diz respeito à carreira profissional dos professores. Essa carreira teria que estabelecer a jornada integral em uma única escola, o que permitiria fixar os professores nas escolas, tendo presença diária e se identificando com elas.


 


E a jornada integral, de 40 horas semanais, teria que ser distribuída de maneira que se destinassem 50% para as aulas, deixando-se o tempo restante para as demais atividades, ou seja, os professores poderiam também participar da gestão da escola, da elaboração de seu projeto político-pedagógico, das reuniões de colegiado, do atendimento às demandas da comunidade, além de orientar os alunos em seus estudos e realizar atividades de reforço.


 


Os recursos financeiros para instituir essa carreira, contrariamente ao que constantemente se apregoa, não seriam difíceis de obter. Pela nova metodologia do IBGE, o PIB brasileiro em 2006 foi de R$ 2,3 trilhões.


 


Levando em conta que, segundo o próprio MEC, o Brasil gasta, atualmente, 4,3% do PIB em educação, o montante a ser destinado à educação básica deveria, ser, neste ano, de R$ 76,8 bilhões, muito superior ao valor de R$ 43,1 bilhões previstos para o Fundeb. Está aí, me parece, o grande furo do PDE.


 


Em termos de política pública para a educação, como o PDE pode ser lido do ponto de vista da ''pedagogia histórico-crítica'', teoria que o sr.desenvolveu?
O questionamento do PDE se dirige à própria lógica que o embasa. Com efeito, essa lógica poderia ser traduzida como uma espécie de ''pedagogia de resultados''. Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação de produtos, forçando, com isso, que o processo se ajuste a essa demanda.


 


É, pois, uma lógica de mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas ''pedagogia das competências'' e da ''qualidade total''. Esta, assim como nas empresas, visa a obter a satisfação total dos clientes e interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço, os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável.


 


No entanto, de fato, sob a égide da qualidade total, o verdadeiro cliente das escolas é a empresa ou a sociedade, e os alunos são produtos que os estabelecimentos de ensino fornecem a seus clientes.


 


A visão da pedagogia histórico-crítica é inteiramente diversa. Em lugar de aplicar provas nacionais em crianças de 6 a 8 anos, o que caberia ao Estado seria equipar adequadamente as escolas e dotá-las de professores com formação em cursos de longa duração e salários compatíveis com seu alto valor social.


 


Isso permitiria transformar as escolas em ambientes estimulantes, nos quais as crianças, nelas permanecendo em jornada de tempo integral, não teriam como não aprender.


 


Seus êxitos seriam o resultado de um trabalho pedagógico desenvolvido seriamente, próprio de profissionais bem preparados e que acreditam na relevância do papel que desempenham na sociedade, sendo remunerados à altura de sua importância social.