O câmbio “flexível” e o – comprometido – futuro do Brasil

Por Elias Jabbour *
Os arraiais do entreguismo – dentro e fora do governo – estão em festa. A explosão de euforia é amplificada aos quatro ventos. “Viva o Real forte”, “tudo é sinal de aumento de confiança dos 'investidores' no Brasil”, etc. etc. Mais

Como nós que respondemos – ou ao menos procuramos – pelos interesses da nação no sentido latu sensu do conceito, e não “de vez em nunca” como o fazem os senhores do outro lado, também temos opinião própria acerca de uma taxa de câmbio próxima da “verdade”. Afinal a verdade, seja ela qual for, é carregada de conteúdo de classe. Logo, enxergando o mundo como uma fábrica, onde algumas nações buscam se apropriar da riqueza social produzida por outras, a verdade – produzida ou não em alguma universidade do centro do sistema – tende a ser carregada de conteúdo “nacional” ou “antinacional”.


 


Os “custos sociais”, os “custos visíveis” e nossas relações externas de produção


 


O que se convencionou chamar de “câmbio” é o instrumental utilizado por um dado governo que busca aproximar à dada realidade nacional os custos visíveis dos produtos importados ou exportados. Ora, dependendo da forma como se utiliza tal instrumental, ao invés de se aproximar dos custos das mercadorias, muitas vezes o deforma. Tal deformação ou aproximação tem nos custos sociais, ou seja, nos efeitos sob a vida de um determinado povo ou nação, seu mais sério auferidor. Esse é o princípio que qualquer programador “com a cabeça e a consciência no lugar” utiliza para se auferir a aproximação ou não de tal “verdade cambial”.


 


De forma marxista pode-se conceituar o câmbio como um elemento – talvez principal -, no processo mediador das relações externas de produção de um determinado país (1).


 


Sob este ângulo de visão (câmbio = mediação de relações externas de produção), podemos vaticinar que dadas as demandas materiais de uma nação periférica (para quem o comércio exterior é uma variável de caráter principal, em face das condições históricas de sua formação e inclusão na divisão internacional do trabalho), o câmbio neutro ou flexível tende a deformação dos custos sociais em detrimento dos custos visíveis.


 


Em reles palavras: dado o desenvolvimento desigual (sinônimo de diferentes escalas de produção industrial entre centro e periferia) intrínseco ao capitalismo (2), o câmbio flexível e sua utilização como mediador entre os custos sociais e os custos visíveis trás em seu bojo – à nossa periférica realidade – efeitos que na ponta do processo tendem a radicalizar nossa histórica e pré-determinada participação na divisão internacional do trabalho: país exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados.


 


Logo, e apesar do ar “moderno” com que propugna tal verdade cambial (flexível), este processo em curso é parte de um todo que envolve a apostasia (3) no rumo da desindustrialização da nação. No rumo do desmonte do esforço de gerações de brasileiros que transformaram – independente da vontade de nossos cosmopolitas e apologistas de uma certa “modernidade” – uma nação essencialmente agrícola em um dos países mais dinâmicos do mundo no século passado.


 


Expressões da falência


 


O chamado “câmbio flexível”, ou ditado pela “mão invisível do mercado” (4) tem em determinados fatos e/ou processos expressões que ao nosso ver são sinal de sua proscrição como instrumento de mediação de nossas relações externas de produção.


 


Entre os fatos/processos destacamos a desindustrialização (queda de valor agregado na indústria), a queda da participação dos salários na composição do PIB nacional (entre 1993 e 2003, segundo dados do DIEESE, a participação dos salários na composição do PIB nacional teve queda de 50%), a criação de 12 milhões de desempregados na Era FHC, um crescimento econômico pífio (média de 2,5% a. a. desde 1980, contra média de 7,1% entre 1930 e 1980) e um aumento da escalada da violência nas cidades (o importante e central é condenar à cadeia a nossa juventude pobre e não condenar os postulados econômicos reinantes).


 


Outro elemento que expressa a inversão de valores no âmbito de nossa superestrutura está relacionada à diuturna campanha contra a previdência pública no Brasil por conta de um “prejuízo” no ano passado na cifra e R$ 10 bilhões. Por outro lado não se é tratado como “prejuízo”, e sim como “operações de salvamento” as constantes intervenções (em apenas um dia o BC comprou cerca de US$ 2 bilhões) no sentido de conter a queda do dólar. Impressionante.


 


Sobre a desindustrialização, lembremos que o Brasil, na década de 1970, construiu o metrô mais moderno do mundo (em São Paulo) com equipamentos, trilhos e locomotivas fabricadas no Brasil, ao mesmo tempo em que exportamos técnicos e tecnologia para a China na construção da usina hidrelétrica de Três Gargantas (5). Hoje, em nome do “combate à inflação” pela via da abertura comercial indiscriminada e da repressão da demanda pela via de altas taxas de juros, nosso país exporta minério de ferro para a China e importa trilhos, exporta minério de ferro para a Coréia e importa escadas rolantes.


 


Câmbio, PAC e desnacionalização


 


Neste processo que envolve um contínuo dumping sobre nosso mercado interno em nome de uma economia de livre-mercado (que me assaltam dúvidas sobre sua existência no mundo), podemos nos perguntar se o PAC ao invés de abrir um novo ciclo de desenvolvimento, não poderá aprofundar um ciclo de desnacionalização iniciado na década de 1990.


 


Historicamente, a manipulação da taxa de câmbio foi um poderoso instrumento que viabilizou o rápido processo de industrialização de nosso país (Segundo Prebish, um processo interno de substituição de importações) no século passado. Processo este somente comparado com o verificado na URSS e no Japão. Ora e enfim, na medida em que o governo prevê mais de R$ 500 bilhões de investimentos, cabe perguntar, dada a atual política monetária e cambial, quem serão beneficiadas, as cadeias produtivas nacionais ou internacionais (6)? As encomendas de equipamentos serão feitas aonde? Os empregos gerados no Brasil serão restritos a atividades como a construção civil, atividade esta que em muitas regiões do país beira à semi-escravidão?


 


Afora os elementos já expostos de “substituição externa de importações” (dumping sob o nosso mercado interno), vale salientar que segundo dados da Associação Brasileira de Indústrias de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), as capacidades ociosas nos setores relacionados às atividades industriais inerentes têm variado em torno de 40% e 50% (7).


 


Portanto o PAC pode significar – em virtude do câmbio vigente – uma grande janela de transferência monetária ao exterior. As virtudes do PAC não podem ser expostas somente no âmbito do que a literatura econômica nomeia de Formação Bruta de Capital Intensivo. Um projeto desta monta deve levar em consideração que os investimentos em infra-estruturas não são um fim em si mesmo, mas parte de um todo que envolve o adensamento de cadeias produtivas nacionais inteiras, ou seja: com capacidade de se incutir “efeitos multiplicadores” em toda atividade econômica nacional.


 


Somente um câmbio que atenda aos interesses nacionais pode possibilitar uma transformação no conjunto da economia em virtude da PAC, caso contrário ao que assistiremos será o maior caso de desnacionalização de uma reserva de mercado já verificada na história econômica brasileira.


 


Por fim, não creio ser suficiente “mexer” na taxa de juros para que o Brasil possa crescer com consistência. Este movimento pode levar a uma queda acentuada na ação especulatória de determinados 'investidores' (hedge funds). Mas será insuficiente ao adensamento de cadeias produtivas nacionais sem que o câmbio seja remodelado num movimento duplo com a queda da taxa de juros. Atacar somente o problema dos juros não solucionará a questão que envolve o processo de desnacionalização. Por quê? Porque sem manipular o câmbio a favor de nossos próprios interesses, a oferta externa de bens de produção e equipamentos continuará em vantagem em comparação com o produtor nacional.


 


Visão de conjunto é uma qualidade que deve ser buscada em qualquer análise econômica da mais simples à mais complexa realidade.


 


Do “país do futuro” ao “país da próxima encarnação”


 


Diante do exposto e da cambaleante realidade nacional, vale retomar uma interessante frase de Rangel para expor a atual situação de nosso país e de seus condutores em política econômica: “É cego conduzindo cego no rumo do abismo”.


 


Pois bem, não fica bem para um ministro da Fazenda, um acadêmico tido de “esquerda” expressar opiniões absurdas como a feita na última semana, em tom irônico, como se lê: “Muita gente tem saudade do câmbio de R$ 3,50, de R$ 2,90… aquele câmbio é de um tempo que a economia era fraca. A moeda era fraca porque a economia era fraca. Hoje temos um quadro completamente diferente, a economia é mais forte” (8). Uma visão fiel à história econômica brasileira e mundial é suficiente para demonstrar ao nosso ministro simplesmente o contrário. O abismo é logo ali…


 


Por outro lado, afirmações como a do novo ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, dando conta de um aumento de competitividade de nossas empresas por conta da taxa de câmbio beira o absurdo. Pesquisemos os exemplos das transnacionais, chinesas, coreanas e japonesas, para quem a manutenção de uma taxa de câmbio desvalorizada foi certamente o fôlego que transformou, não somente suas empresas, mas tais países em grandes agentes nos assuntos internacionais. Pelo jeito, ao gosto dos absurdos que tem sido ditos na maior tranqüilidade ultimamente, nosso país vai deixar de ser o “país do futuro” para ser o “país da próxima encarnação”.


 


Evidente que só para a “próxima encarnação”, pois que empresa brasileira terá ganhos de produtividade por conta de uma liberalização cambial em tempos de “salve-se quem puder” acelerado pelo crescente processo de fusões e aquisições no mundo de hoje?


 


Esperar o aumento de ganho de competitividade de nossas empresas para termos uma “economia forte” é um processo nada rentoso. É menos custoso investir em grandes velórios de nossas empresas. Um dia, quem sabe seremos competitivos. Repetindo, na “próxima encarnação”.


 


Taxa de câmbio e planificação do comércio exterior


 


Qual a taxa de câmbio ideal? Qual a taxa de câmbio em consonância com o nível de desenvolvimento das forças produtivas alcançadas pelo Brasil? Resumindo, qual é a nossa verdade cambial?


 


A nossa verdade cambial é pautada pela adoção de um câmbio – nada neutro – com capacidade de promoção do desenvolvimento econômico. Um câmbio que conduza ao mais completo emprego possível dos potenciais ociosos de nossa economia. Um câmbio como instrumento de planejamento econômico e não como expressão da ação especulativa. Um câmbio que nos aproxime não dos custos visíveis e sim dos custos sociais. Pois, reportando-se ao exposto no início deste artigo, é pelos custos sociais que podemos “enxergar” formas de se solucionar – a partir do câmbio – os problemas mais profundos que afligem a realidade do povo brasileiro.


 


A verdade cambial em favor dos interesses nacionais e populares deve estar em concordância com o nível de desenvolvimento das forças produtivas alcançado pelo nosso país. Neste sentido, chegou o momento de superar o comércio de tipo tradicional correspondente a uma anarquia da produção intrínseca de uma forma de produção para outra, de novo tipo e já praticada pelos países do centro do sistema, além de China, Índia, Rússia, Argentina e Venezuela: um comércio planificado, cujo câmbio seria o elemento institucional com capacidade de abrir ou fechar nossa economia planificadamente (9). Trata-se da transição ao que Lênin convencionou chamar de “Capitalismo Monopolista de Estado”


 


Esta proposta de superação do “bacanal” reinante não compromete a manutenção do liberalismo no plano interno, muito pelo contrário serviria como um elemento protetor do sistema interno de preços que ultimamente tem sido vítima da ação perturbadora de uma taxa de câmbio flexibilizada.


 


Acreditamos que a incorporação de um sistema cambial como mediador de um comércio exterior planificado é elemento nodal para qualquer projeto nacional digno deste nome. Deve ser um patrimônio programático do campo nacional-popular, atualmente muito carente de propostas aos impasses brasileiros.


 


As articulações políticas são muito importantes neste processo que visa superar o atual impasse nacional. Mas não é tudo. Lembremos que sem uma boa política econômica, não podemos ir muito longe em matéria de prática política. E o governo Lula tem demonstrado isso. Infelizmente, para a esquerda brasileira e principalmente para o Brasil e seu comprometido futuro.


 


Um retrocesso nacional intolerável


 


A atual política cambial, dada a desindustrialização que dela deriva, é expressão da momentânea vitória dos agraristas – outrora ancorados na propriedade da terra, em oposição aos industrialistas, vitoriosos no Brasil entre 1930 e 1990.


 


Hoje, ancorados sob o monopólio do poder da finança, os agraristas da década de 1920 tornaram-se “monetaristas”, que sob o acicate da “modernização”, do livre-cambismo, do fascismo intelectual (pensamento único) e com uso de sofisticados verbetes e jogos de palavras de impacto vão impondo à nossa nação seu secular objetivo: a perpetuação do Jeca Tatu e seu modo de vida.


 


Notas


 


(1) Ignácio Rangel em “Economia: Milagre e Antimilagre” (Obras Reunidas de Ignácio Rangel, Contraponto, 2005, Vol 1.), faz – partindo de premissas marxistas – um panorama histórico do processo histórico de desenvolvimento econômico do Brasil, onde recorrentemente relaciona a taxa de câmbio vigente (em cada período histórico) com o nível de desenvolvimento (soberana ou subserviente) com nossas relações externas de produção;


 


(2) Sobre os rumos atuais da economia global e sua relação com esta lógica do desenvolvimento desigual, sugiro – e é indispensável – a leitura da série escrita por Sérgio Barroso e publicada em três partes no Vermelho: “Leninismo e antileninismo. E os novos fenômenos na economia mundial”;


 


(3) O termo “apostasia” foi alcunhado por Ignácio Rangel para caracterizar o significado do fim da União Soviética e a eleição de Fernando Collor no Brasil. Trata-se de uma alusão ao imperador romano Juliano II, o Apóstata, que dada sua formação grega, propôs um retorno aos princípios gregos, ou seja, um retorno ao passado com relação ao cristianismo já consolidado no império;


 


(4) A falácia que envolve a supervalorização do real como expressão da ação da “mão invisível” do mercado é desmentida por Delfim Netto em artigo publicado no último dia 15/05 no Valor Econômico intitulado “Brasil 2025”. Nosso ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento demonstra rapidamente a inverdade da desta premissa, afirmando, sarcasticamente, que tal fenômeno é engendrado pelo efeito do “carry trade” que significa a ação, nada invisível, de agentes (os chamados “hedge funds” ou “investidores” para nossos escribas de aluguel) em operações que envolvem a tomada de empréstimos em determinadas moedas (como o yen japonês) com baixíssimas taxas de juros e a busca de retornos em moedas supervalorizadas como o Real, onde a taxa de juros interno é discrepante com a taxa de juros média praticada externamente. Esta anomalia que levou a Argentina literalmente para o buraco é a principal fonte de “confiança” dos “investidores estrangeiros” nos “fundamentos” da economia brasileira. Vale lembrar que o “Risco Argentina” era um dos menores do mundo um pouco antes da crise econômica que varreu o país. Sobre esta anomalia sugiro, também, a leitura de “Juros e câmbio: a farra da especulação”, de Sérgio Barroso (Vermelho, 16/05);


 


(5) Durante o governo de Ernesto Geisel, no bojo do 2° Plano Nacional de Desenvolvimento, o Brasil completou seu processo de industrialização com a implantação do novo Departamento 1 da economia (indústria mecânica pesada). Esta implantação significou a criação de condições ao enfrentamento do estrangulamento verificado em nossas infra-estruturas. O passo seguinte seria a fusão deste capital industrial completo com o nascente sistema bancário brasileiro (surgimento do capitalismo financeiro brasileiro). As políticas “estabilizadoras” de nossa economia obstruíram (e obstruem) esta necessária fusão. Obstruem o nosso progresso no rumo de uma nação não mais dependente do capital financeiro internacional.


 


(6) Dada a abertura de uma janela de oportunidades com o PAC, a Alemanha e a França já trataram de abrir escritórios de interesse no Brasil com vistas a abocanhar a maior parcela possível da reserva de mercado verificada nas infra-estruturas estranguladas brasileiras. Cabe perguntar ao governo brasileiro: quem responde pelos interesses das empresas nacionais?


 


(7) Esta informação foi-nos passada em reunião ocorrida em Brasília no mês de outubro do ano passado entre este que vos escreve na qualidade de assessor da Presidência da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, então presidente da Câmara dos Deputados e a diretoria da Abimaq. Vale lembrar que daquele período até hoje, a taxa de câmbio valorizou-se em mais de 10%.


 


(8) “Câmbio e demanda podem atrapalhar o PAC, dizem ministros”. Vermelho, 15/03/2007.


 


(9) Esta proposta revolucionária, no sentido nacional do termo, foi proposta por Ignácio Rangel. Aos interessados sugiro a leitura de: RANGEL, I.: “A história da dualidade brasileira”. In, Revista de Economia Política, Vol 1, n° 4, Out-Dez – 1981. Disponível em arquivo PDF (clique aqui)


 


* Elias Jabbour é membro do conselho editorial da revista Princípios, colunista do Vermelho e autor de China – Infra-estruturas e Crescimento Econômico