RCTV, papagaios e disputa hegemônica

O presidente Hugo Chávez fez um duro pronunciamento ontem ao saber que o Senado brasileiro havia aprovado o requerimento do tucano mineiro Eduardo Azeredo em que se apela para que o governo venezuelano permita que a RCTV continue a transmitir. O líder

Chávez ficou “triste” com a posição dos senadores. Na Venezuela, a decisão de não renovar a concessão da RCTV se tornou motivo de mais manifestações de protesto contra seu governo, que têm repercutido com destaque em toda grande mídia internacional. Mais uma vez, o presidente é acusado de ser antidemocrático e cercear a liberdade de imprensa.


 


A verdade é que o governo venezuelano tomou uma corajosa decisão e meteu a mão na temível caixa preta das concessões para emissoras em sinal aberto, que, como no Brasil, têm sido renovadas automaticamente. O Estado cumpriu uma prerrogativa garantida pela Constituição e pela lei Resorte.


 


E isso não tem nada a ver com censura, liberdade de imprensa e muito menos de expressão. É saudável e positivo uma lei reguladora. Assim como é danosa a libertinagem na atuação dos meios de comunicação.


 


Evidentemente que qualquer canal pode, e deve, pensar diferente que um governo. E a tendência é que essa relação seja sempre delicada, tensa e ao mesmo tênue já que a esfera do que é governo é ampla e envolve muitas instâncias e atores políticos. Mas que isso não signifique forjar situações, mentir aos telespectadores, inventar fatos, etc.


 


No Brasil, por exemplo, algumas concessões vencerão neste segundo semestre. E que aprendizado podemos tirar desse debate? No Brasil não acredito que precisemos ser radicais a ponto de não renovar concessões. Mas sem dúvida podemos fortalecer ou criar melhores mecanismos para acompanharmos e analisarmos a produção dos nossos meios de comunicação.


 


Ruído


 


O próprio presidente Lula ponderou hoje (1) em Londres, “não posso comentar o discurso de um chefe de Estado porque você está fazendo esta pergunta”, disse. “Numa situação dessas, não sei se o Chávez falou isso mesmo”.


 


O questionamento é correto. Muitas vezes o que sai no Brasil sobre a Venezuela são leituras enviesadas. E este pode ser mais um caso. Segundo o site do Ministério da Informação e Comunicação venezuelano, Chávez não se referiu ao Senado como papagaio, que foi o termo que mais irritou os parlamentares e representantes do governo. Fez sim sua crítica ao pronunciamento do Senado.


 


Por outro lado, Senado, Câmara e governo brasileiros reagiram à posição de Chávez também com razão. Os presidentes da Câmara e do Senado foram alguns que se pronunciaram contra os comentários de Chávez. “Manifestação do Senado foi democrática”, disse Renan Calheiros. “É evidente que é uma afirmação desrespeitosa e acima de tudo desinformada. O Congresso Nacional é eleito pelo povo brasileiro e, portanto, nós só devemos prestar contas ao povo brasileiro”, disse Arlindo Chinaglia.


 


Ainda ontem, com o secretário geral do Partido Comunista do Vietnã que acaba de nos visitar, Chávez chegou a dizer que “digna foi a postura de Lula, quando disse há alguns dias e falou a verdade, com grande contundência, que esse é um problema dos venezuelanos”.


 


Na Venezuela permanentemente polarizada, ser contrário à não renovação da concessão do canal pode significar se aliar ao império norte-americano que vem há anos investindo contra o governo bolivariano, que procura marcar como “antidemocrático”, “ditatorial” e líder da versão latina do “Eixo do mal”, junto com os presidentes boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa.


 


“O Congresso do Brasil deveria se preocupar com os problemas do Brasil. O Congresso é dominado pelos movimentos e partidos da direita, que estão tentando que a Venezuela não entre no Mercosul”, disse Chávez.


 


Não é exatamente assim, mas é verdade que no dia da votação do requerimento, o único senador que se pronunciou contra sua aprovação foi o comunista Inácio Arruda (CE), que avaliou – com a propriedade de quem teve fechado seu principal jornal (o Jornal A Classe Operária) por diversas vezes nestes 85 anos de  história, e não apenas em períodos em que vigorava a ditadura militar: “Na Venezuela se impôs, pela vontade soberana do povo, um governo democrático e popular do campo da esquerda. Essa é que a questão central e é isso que incomoda uma elite minoritária na Venezuela e na América do Sul”.


 


Ou seja, o debate passa longe da tal questão da liberdade de imprensa. Ou havia liberdade de imprensa antes do governo Chávez? Nos governos antes de 1998, que fizeram parte do chamado Pacto de Punto Fijo, no qual apenas dois partidos das oligarquias se alternavam no poder (AD e Copei), os jornalistas aí sim eram perseguidos, demitidos e até mesmo presos.


 


São exemplos os episódios citados pelo jornalista Aléxis Rosas em sua publicação “Objectivo Chávez, el periodismo como arma”, como o fechamento da mesma Rádio Caracas Televisão (RCTV), no primeiro governo de Carlos Andrés Pérez (1974-1979); processos contra jornalistas de RCTV e do Diário de Caracas em 1982 no governo de Luis Herrera Campíns (1979-1984); bombas colocadas nos jornais El Vigilante (Mérida) e Región (Sucre) no governo de Jaime Lusinchi (1984-1989); e os empastelamentos das redações de jornais, emissoras de rádio e de televisão no segundo governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992.


 


Comunicação


 


A Venezuela vem radicalizando seu processo de intensificação da revolução e de avanço ao socialismo do século 21. Ruídos diplomáticos não se comparam aos importantes passos dados na consolidação do importante processo de integração nos marcos da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba):  Banco Sul, Telesul, acordos energéticos e nas esferas da saúde e da cultura.


 


Tudo isso interfere nos interesses do império norte-americano, que vem perdendo espaço político no continente sul-americano. Com o pretexto de lutar contra o terrorismo, realiza uma campanha internacional de desprestígio voltada a isolar a Venezuela, procurando desestabilizar o país e preparar novas condições para tirar Chávez do poder.


 


Com o caso RCTV, a Venezuela bolivariana experimenta, baseada em lei, aumentar a democracia no espectro do sinal aberto de televisão. Disputar com o poder hegemônico é fogo e pode queimar. Mas vale a pena tentar.