70 anos da UNE: clandestinidade sob o tacão militar

Leia o quinto artigo de Carolina Ruy, jornalista e pesquisadora do Museu da Pessoa, da série exclusiva do Vermelho sobre a história do movimento estudantil. Em seu texto a pesquisadora relembrará os difíceis anos 60 e 70 que passaram pela

Clandestinidade sob o tacão militar


 


Carolina Ruy*


 


Quando os militares derrubaram o presidente João Goulart, em 1o de abril de 1964, uma das primeiras ações da repressão foi a invasão da sede da UNE, na praia do Flamengo 132, Rio de Janeiro e a prisão das lideranças. Na voragem conservadora, o CPC também desapareceu. Em 1965, a ditadura, prenunciando a repressão que viria, usou a violência policial para reprimir uma manifestação em repúdio à Lei Suplicy, em 23 de setembro de 1965 que contava com cerca de 600 estudantes na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Eles não aceitavam a reforma que aquela lei simbolizava e que a ditadura tentava impor. Esta lei, novembro de 1964 previa a substituição da UNE por um Diretório Nacional de Estudantes (DNE), subordinado ao Ministério da Educação, que proibia o livre diálogo entre estudantes e diretórios acadêmicos.


 


Dois anos depois, com o escancaramento da repressão, a UNE é declarada ilegal. Mesmo assim a entidade realizou seu 28º Congresso, que – simbolicamente – reuniu 300 estudantes (entre os quais 30 mulheres) nos porões da Igreja de São Francisco de Assis, em Belo Horizonte e posteriormente chamou uma greve geral que culminou em mais violência policial contra manifestantes na Praia Vermelha.


 


A ditadura tentou acabar com a UNE, mas ela continuou sua atividade, mesmo na clandestinidade e, admitindo o fracasso de suas iniciativas, a ditadura acabou com o Diretório Nacional dos Estudantes, que tinha criado para tentar substituir a UNE.


 


O difícil 1968


 


Os movimentos estudantis europeus de 1968 repercutiram no Brasil elevando o tom das manifestações promovidas pela UNE e também da repressão policial.


 


Em março de 68 se inicia o período mais sangrento da ditadura: a polícia invade, no Rio de Janeiro, o restaurante estudantil, escuro e abafado, apelidado de “calabouço” pelos estudantes, devido a uma manifestação que ocorria pelos excedentes e contra as péssimas condições de alimentação que eram oferecidas aos universitários. No confronto os policiais matam o estudante, então com apenas 17 anos, Edson Luis da Lima Souto. No dia seguinte, o cortejo do estudante foi acompanhado por 50 mil pessoas. A comoção tomava conta do país.


 


Em maio, cerca de 120 estudantes foram presos em uma manifestação na Escola de Medicina de Belo Horizonte; em junho o Exército foi posto de prontidão nas ruas do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que os estudantes ergueram barricadas. Seguiram-se violências e mortes nos conflitos.


 


Marcha dos 100 mil


 


No dia 26 de junho, estudantes e professores saíram em passeata para protestar contra a violência. A famosa “marcha dos cem mil”, foi acompanhada por operários, intelectuais, artistas e padres. Foi até então a maior manifestação de massa contra a ditadura militar, e levaria mais de uma década para ser superada, com a retomada das grandes passeatas pela democracia. Foi tão forte que o próprio general presidente de plantão, Costa e Silva, tentou abrir o diálogo, liberando fundos necessários ao desenvolvimento do Projeto Rondon e recebendo, em julho, uma delegação que reivindicou a libertação dos estudantes presos, a reabertura do restaurante universitário do Calabouço, o fim de toda a repressão policial e a suspensão da censura artística.


 


As exigências foram recusadas e o Ministro da Justiça Luis Antonio da Gama e Silva (que posteriormente anunciou o Ato Institucional nº 5) foi encarregado de tomar as medidas necessárias para reprimir a oposição e proibir qualquer desfile ou manifestação contra o regime dos generais.


 


Ibiúna


 


A ditadura que, desde o início, havia amordaçado o movimento operário, com fechamento e intervenções em sindicatos, e a perseguição implacável aos partidos de esquerda, resultando em prisões e morte de sindicalistas e líderes operários e comunitários, encontrava ainda resistência no movimento estudantil, que por um tempo conseguiu manter o espírito de oposição à ditadura. Neste ano, entretanto, os estudantes foram definitivamente reprimidos no 30º Congresso da UNE, marcado para ocorrer em Ibiúna, São Paulo, em outubro de 1968.


 


Fazendo marcação serrada contra os estudantes, a polícia descobriu o local onde se realizaria o Congresso, e, como resultado, todos os delegados presentes foram presos, inclusive o presidente da UNE, Luis Travassos.


 


Aquele congresso seria marcado por uma forte disputa era entre o ex-deputado federal José Dirceu, que era ligado ao grupo que defendia a luta armada, e o estudante Jean Marc Von Der Weid, da AP, indicado por Travassos. Com a prisão de todos, a eleição acabou não acontecendo, mas o Congresso, que para eleger o presidente ocorre posteriormente através de Congressos estaduais entre novembro de 1968 e abril de 69, empossando Jean Marc, se desenrola no presídio, após o episódio de Ibiúna.


 


AI-5


 


Augusto Petta, diretor do Centro de Estudos Sindicais, e militante estudantil naqueles anos tumultuados, afirma que depois do Congresso de Ibiúna, as dificuldades aumentaram e, mais ainda, em 13 de dezembro de 1968, quando a ditadura decretou o Ato Institucional nº 5, que eliminou as escassas garantias constitucionais que ainda persistiam. “No dia em que ia começar o congresso da UNE de 1968 a polícia entrou dando tiro pra todo lado e fomos presos no presídio Tiradentes, em São Paulo. O que tem de muito interessante é que o Congresso foi realizado dentro do presídio, menos a eleição. Todo mundo sabia já quais seriam as votações e quando saía pra almoçar, dizia pros outros. Assim foram discutidos os pontos todos dentro do próprio presídio”.


 


Depois deste Congresso começou um período nebuloso da história. Numa tentativa de rearticular o movimento estudantil, ainda em 1971 ocorreu o 31º Congresso da UNE na clandestinidade. Segundo o sociólogo da Fundação Perseu Abramo, Carlos Menegozzo, um fato curioso é que este 31º Congresso foi re-convocado seis anos depois, devido à baixa repercussão e ação que a UNE podia ter em 71.


 


Honestino Guimarães, estudante de geologia, da Universidade de Brasília, é eleito presidente em 1971 e neste mesmo ano é preso e assassinado pela polícia do governo. Seu corpo nunca foi encontrado.


 


Fim da UNE


 


Até 1973 a UNE segue tentando se rearticular, mas o grande desgaste promovido pela repressão, com mortes e desaparecimentos, faz com que a diretoria decida dissolver a entidade.


 


O movimento estudantil não demorou a ressurgir. Conforme Menegozzo, logo em 1973, uma nova geração de estudantes, recém ingressos nas universidades, começou reivindicar solução de problemas próprios dos estudantes como: alto preço do restaurante universitário e de mensalidades. Muitos destes estudantes tinham vínculo com grupos de esquerda, mas não tinham optado pela luta armada, como era o caso do estudante de geologia Alexandre Vanucchi Leme. A morte de Vanucchi na prisão, pela polícia, causou grande revolta na população, reforçada, posteriormente, pelo assassinato em condições semelhantes do jornalista Wladimir Herzog, em 1975.


 


A missa de sétimo dia, celebrada por dom Paulo Evaristo Arns, acompanhada por mais de cinco mil pessoas, na Praça da Sé, São Paulo, por ocasição da morte de Alexandre Vanucchi, pode ser considerada a primeira grande manifestação pela volta da democracia.


 


Recontrução


 


Em 1978 estudantes de arquitetura convocam o Congresso da Reconstrução da UNE – o 31º da entidade, que aconteceu, em Salvador. Este é também o ano da revogação do AI-5. “No Congresso, como era costume o comparecimento do presidente que deixa o cargo, eles reservam uma cadeira vazia, e colocam uma grande bandeira com o rosto de Honestino Guimarães, um ato simbólico e uma homenagem ao ex-presidente assassinado”, conta Menegozzo. O Congresso marcou a resistência e os novos tempos que estavam chegando. No fim dos anos 70 havia uma forte base para reconstrução da UNE na legalidade. Esses novos tempos trouxeram novas questões, uma outra parte da história.


 


* Jornalista e pesquisadora do Museu da Pessoa 


 


Leia também:


 


1º Artigo: História do movimento estudantil (ME) do abolicionismo ao Estado Novo


 


2º Artigo: História do ME anos 30 e 40  


 


3º Artigo: Anos 50/60:gestão Aldo Arantes, um marco na história da UNE


 


4º Artigo: UNE: 70 anos fazendo história na cultura popular brasileira