Wagner Gomes: falácias do governo sobre o direito de greve

Por Wagner Gomes, vice- presidente nacional da CUT


O avanço da idéia do governo de criar restrição ao direito de greve obriga o movimento sindical a se desdobrar em ações políticas e de mobilizações para impedir um retrocesso histórico em termo

Voltou a fazer parte das conversas nestes dias, como acontece de tempos em tempos, a “questão” social. Entende-se, quando se fala em “questão” social, a combinação de manifestações de rua, greves e movimentos de massa — ou pelo menos de estudantes e trabalhadores para bloquear qualquer mudança na legislação trabalhista, nos direitos adquiridos e no papel social do Estado. E a ordem é desqualificar ou marginalizar esses movimentos. O pior de tudo é a sistemática predominância, dentro do governo, dos compromissos com a agenda liberal. O tratamento dado à questão do direito de greve é um clássico do gênero.


 


Não chega a ser novidade a postura do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, que acredita, sinceramente, que o direito de greve sem restrições é uma desgraça para o Brasil. O problema é a facilidade com que o governo deixa esse tipo de postura ganhar um peso decisivo em suas ações, a ponto de acabar fazendo exatamente o oposto do que pretendia. Se o projeto de restrição ao direito de greve vingar, na prática teremos a tentativa de repetição da famosa fórmula do ex- presidente Washington Luis: “A questão social é caso de polícia.” Há um problema? Chame-se a polícia, invoque-se o Código Civil e o Código Penal. Em certa medida, já é o que acontece.


 


Defesa do “modelo liberal”


 


Um vislumbre das matérias relativas ao tema no Jornal Nacional, da TV Globo, mostra que o carro-chefe do jornalismo global tem tratado sistematicamente os movimentos sociais como organizações raivosas e criminosas. O MST, por exemplo, aparece sempre como um grupo de invasores que comete crimes. A arte que ilustra as chamadas de Willian Bonner e Fátima Bernardes mostra a sombra de homens de boné sobre uma cerca arrebentada. Fica impossível qualquer identificação do público com tal estirpe de “bárbaros”.


 


O pano de fundo é a defesa do “modelo liberal” — um sistema de regras que torna o trabalho cada vez mais desprotegido, a demanda por benefícios sociais cada vez mais marginalizada e os privilégios de uma minúscula minoria da sociedade cada vez mais acintosos. A idéia-chave, nesse “modelo liberal”, é a tentativa de eliminar as legislações sociais para acabar com as “incertezas da liberdade econômica” por meio da total eliminação da intervenção do Estado e da ação sindical em todas as áreas sociais em que possam agir.


 


Descaso do governo


 


O último espetáculo oferecido pelo “modelo liberal” foi a decisão do governo federal de endurecer com os servidores públicos que estão em greve, determinando o corte do ponto dos dias parados. A decisão ocorre num momento em que o Planalto estuda a criação de leis para punir greves dos servidores. Pela proposta que está sendo estudada, seriam criadas categorias especiais que jamais poderiam parar.


 


Não surpreende, assim, que a área escolhida pelo governo para começar a impor o autoritarismo liberal é aquela em que o Estado tem reais condições de transformar os desejos conservadores em realidade: o trabalho no serviço público. A sustentar essa visão, existe a crença de que a solução preferencial para as dificuldades do país, da economia e da vida em geral está em atos de repressão aos trabalhadores. Essa idéia, evidentemente, é partilhada de bom grado pelo patronato interassado na “liberdade” de contratar e demitir como bem entender, sem custo ou obstáculo legal.


 


A ordem seria atribuir o máximo de responsabilidades e decisões aos dirigentes sindicais e o mínimo de deveres às empresas e ao Estado. “Setores consideráveis do governo pararam de pensar com a cabeça de trabalhador”, diz um dirigente sindical ligado ao setor público. A declaração pode soar forte, mas a recusa de admitir a impertinência dessas idéias demonstra descaso do governo diante das realidades nacionais nas quais estão inseridos a imensa maioria dos brasileiros e todos os trabalhadores — realidades tão bem expressas na reeleição do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.


 


O combate ideológico


 


Em outras ocasiões, quando governos conservadores — principalmente os de Fernando Henrique Cardoso (FHC) — tentaram criar leis semelhantes os trabalhadores foram às ruas, brigaram e impediram o retrocesso. Agora, trata-se de um caso raro em que um grupo de pessoas egressas do meio sindical consegue ignorar esses fatos para ressuscitar esta velha bandeira liberal. Tudo isso, naturalmente, provoca avaria grossa na base social de apoio ao governo.


 


Mas não basta ficar apenas na constatação. O movimento sindical precisa se mobilizar, organizar os trabalhadores e travar o combate ideológico — hoje completamente monopolizado pela mídia e seus métodos fascistas. A direita não cansa de mostrar que não vai sossegar enquanto não colocar de pé alguma coisa que lhe permita jogar os trabalhadores para fora da arena política. Essa gente passou o último século tentando fazer isso, com uma sucessão de projetos que tinham em comum o fato de serem cada vez piores, e que foram sendo largados pelo caminho à espera de novas chances para reencarnar um dia.


 


Embalagem para o projeto


 


O sonho final é ter no país algo parecido com o que existiu por aqui durante a ditadura militar ou mesmo na “era FHC” — um sistema, para resumir as coisas, no qual quem manda é quem está no controle do movimento de capitais, e no qual se publica o que o patronato quer e não se publica o que o povo não quer. Como não tem dado, na prática, para chegar lá de uma vez só, tenta-se ir pelas beiradas. É o caso, agora, desse projeto de restrição ao direito de greve. Não existe nada que preste nessa idéia, nem qualquer elemento que possa ter alguma utilidade para a imensa maioria dos brasileiros.


 


O que se quer fazer de verdade, por trás das piedosas e altruístas lorotas que servem de embalagem para o projeto, é uma coisa só: ter um instrumento para fazer os trabalhadores se limitar ao trabalho cruciante, sem direito a voz e a reivindicar direitos. Quem acredita, a sério, que uma lei desse porte possa ser capaz de fornecer regras decentes para a greve no serviço público, quando quem vai operá-la é gente da base aliada do capital? O ministro Paulo Bernardo ainda diz que ela se fundamenta em “preceitos democráticos”. É de matar de rir — ou de chorar.


 


Paixão pela forma


 


A verdade é uma só: por mais que se façam, se escrevam e se divulguem leis em favor da repressão popular, mais aumenta, em vez de diminuir, a quantidade de gente que se dispõe a lutar por igualdade e justiça. Está aí uma boa constatação que esses setores do governo deviam anotar. “O Brasil não é um país europeu”, disse o ministro Paulo Bernardo, defendendo a necessidade de “regulamentar” o direito de greve.


 


Essa paixão pela forma em lugar da essência, pela palavra em lugar da ação, está bem longe de se limitar à questão do direito de greve. A lista poderia continuar e continuar, mas a alma do problema não muda: enquanto insistir na crença de que seu papel é vender ilusões em vez de entregar soluções, o governo estará condenado a fazer muito pouca coisa útil para os trabalhadores. Ao movimento sindical, a lição que fica é a de que ainda temos de comer muito arroz e feijão para pelo menos equilibrarmos a correlação de forças dentro do governo Lula.