O caráter das provocações do latifúndio no Pará
Por Paulo Fonteles Filho*
No domingo, 3 de junho, tomei conhecimento do extemporâneo 1º Grito da Produção, organizada pela representação máxima dos latifundiários paraenses, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Pará (Faepa) que prom
Publicado 22/06/2007 15:16
Calou-me fundo a informação do próprio site da Faepa. A semana que antecedeu o 11 de junho foi marcada por um conjunto de articulações e ameaças. De um lado, os movimentos sociais, indignados pela ousadia dos donos do poder se prepararam para o pior e rapidamente buscaram o caminho da mobilização e politização. Do outro, o dos donos do poder usaram largamente a mídia, ameaçando ocupar a mais alta casa legislativa do Estado, num verdadeiro acinte à memória de todos aqueles que tombaram pelas balas do latifúndio.
Água e óleo não se misturam
É digno de registro que, em meio a esta contenda, a governadora Ana Júlia colocou o seu governo em nosso apoio, sem nenhuma vacilação. Ficou claro para todos que a mandatária principal do Pará tem total consciência de onde veio e a quem deve servir.
Não creio que a atual mesa diretora do legislativo paraense tenha se apercebido desta situação, das ilações da Faepa e do fato de exatamente neste dia abrir aquela casa de leis para os maiores inimigos da atuação de Paulo Fonteles, ou seja, os poderosos e historicamente violentos mandatários dos campos paraenses. Poderiam eles ter escolhido outro dia, porém, escolheram exatamente o 11 de junho.
Alguns, mesmo, poderiam dizer que a Assembléia Legislativa é grande e o é, pela passagem de figuras como Henrique Santiago, Imbiriba da Rocha, Catete Pinheiro, Elias Pinto, Cléo Bernardo, Ruy Barata, Paulo Fonteles, João Batista, Edmilson Rodrigues e mais recentemente, Sandra Batista e Araceli Lemos. Tais parlamentares deram estatura política àquela casa, em tempos diferentes, e o que os uniu foi o caráter popular de seus mandatos. De fato a casa é grande, mas jamais poderia comportar no mesmo dia, em ambientes distintos, aqueles que lutam pela reforma agrária e aqueles que, historicamente, detêm o monopólio da terra e são os principais responsáveis pelo alto índice de violência, seja pelo crime de pistolagem e trabalho escravo no Pará.
Definido horário, local e razão lá estavam, às oito horas da manhã deste 11 de junho de 2007, em frente à Assembléia Legislativa os dois lados desta contenda: a representação do latifúndio, com um poderoso trio elétrico de um lado; e do outro, a militância social das históricas lutas pela reforma agrária e da justiça, com um modesto porém vibrante carro de som.
Diante daquele quadro e da noção de que água e óleo não se misturam, uma questão veio à tona: o que fazer? Alguns, mais afoitos, diziam que devíamos nos retirar e fazer nosso ato fora. Uma voz, entretanto, rasgou a manhã e citando os ensinamentos do comunista Paulo Fonteles, lembrou-nos de que o advogado de posseiros ensinava “que era preciso lutar em todas as trincheiras”.
Antes de adentrarmos na Assembléia Legislativa realizamos um ato de desagravo, onde deixamos bem clara a nossa posição política e denunciamos o caráter das ações dos latifundiários no Pará. Vários oradores se alternaram e para nossa surpresa, grata surpresa, a representação do poder econômico no campo paraense decidiu, depois de muita pressão, adiar as atividades para outra data.
Realizamos, então, uma bela atividade em memória a aqueles que tombaram na luta pela reforma agrária no Pará e no Brasil. A Sessão Especial teve ampla repercussão na mídia do Estado seja pela representatividade, seja pelo intento de retesar a luta contra o latifúndio e contra a impunidade.
Um ciclo inédito na vida política do Pará
Agora, cabe a pergunta: qual o sentido das ações do latifúndio paraense? Quais as suas conexões? Porque escolheram este período, justamente este período para a grita como nos informa o site da Faepa?
Demarcador de campo nesta discussão é o fato de estarmos vivendo o nascedouro de um inédito ciclo da vida política de nosso estado, na qual as forças mudancistas, nucleadas pela esquerda, ocuparam pela primeira vez o comando do Pará. E isso depois de doze anos de governo elitista e pró-latifúndio de Almir Gabriel/Simão Jatene.
A conquista do governo por estas forças e a eleição de Ana Júlia ao posto maior da direção dos destinos do estado tem sentido histórico, singular. Muitos doaram suas generosas vidas para a construção deste projeto, poderia citar centenas, declino porque a consciência social sabe exatamente do que falo. Tal consciência foi inexorável e fez, no coração da Amazônia, a primeira mulher governadora da região norte do Brasil.
E isto tudo num Pará deformado pela corrupção, pela violência, pela miséria, pela impunidade, pelas políticas privatistas de desmonte do estado, pelo reinado das grandes mineradoras e pela autoridade jagunça do latifúndio no patamar do agronegócio.
Pedido de desculpas por Eldorado dos Carajás
Na quadra histórica atual é preciso sempre lembrar de que ainda estamos em terra arrasada e de que, no essencial, é preciso dar o passo adiante no sentido do progresso social e do desenvolvimento equânime do Pará.
Destaco o fundamental passo, realizado pela governadora, de reconhecimento a enorme divida social e política que tem o Governo do Pará, com os marginalizados do campo. Refiro-me da presença de Ana Júlia no ato pela passagem do décimo primeiro ano da chacina de Eldorado dos Carajás. Suas palavras de retratação, não por ela ou pelo seu governo, mas por quem a antecedeu, revelam que a “banda” toca diferente. A distinção de sua atitude com relação ao passado recente foi ter se dirigido à massa dos sofridos lavradores do sul do Pará, com a voz embargada pela irrevogável missão histórica das forças que sabe representar e dizer na plenitude de sua consciência: “Hoje (terça-feira, 17 de abril) num momento de muita emoção para mim, por poder estar aqui como governadora, venho pedir desculpas ao povo do Pará”.
A atitude da governadora pode explicar o ódio das elites até então entranhadas no poder e a atitude caluniosa para com o seu governo. Algumas criticas sérias proferidas por jornalistas sérios devem ser levadas em consideração e corrigidas. Porém, a reconstrução do Pará e a realização do progresso social será tarefa árdua, o que exige convicção e nitidez de projeto. Soma-se a isto o fato de que a base social do novo governo, a imensa maioria do povo, deve estar mobilizada, consciente de seu papel, no sentido de dar as tintas à caneta da governadora. Sem mobilização popular a mudança será apenas um reino encantado conforme nos ensina os contos dos irmãos Grimm.
O momento é inédito também para eles
A repercussão da atitude do novo governo em Eldorado dos Carajás calou fundo nos setores avançados de nosso estado e provocou a ira das oligarquias e do latifúndio.
Cabe ressaltar as informações do blog de Hiroshi Bogea, em 15 de abril, quando afirmava que: “A Faepa está revoltada com a presença efetiva do governo nos atos que lembrarão os onze anos do massacre ocorrido na curva do “S”. Ainda, o jornalista afirmara que: “Nunca uma ação de governo provocou tanta indignação em setores do agronegócio”. Cita até que um dirigente de uma entidade patronal do setor rural afirmou que “um governante não pode misturar-se aquela laia”.
Para os arautos do agronegócio, o governante deve ter a régua e o compasso dos interesses máximos do latifúndio. Esqueceram, porém, de lembrar que não foi Almir Gabriel quem venceu a contenda eleitoral do ano passado. O momento é inédito também para eles: até então, o tempo político andava junto ao tempo econômico.
É por essas e por outras que a Faepa provoca, busca o caminho da instabilidade. Inaugura o Risco-Pará e atua no sentido de afugentar investimentos de outras praças econômicas. Faz pressão no novo governo e conta, para isso, com os velhos aliados no Tribunal de Justiça do Estado. Vozes daquele Tribunal chegam ao disparate de incentivar a utilização de milícias armadas. No dia 13 de junho a organização dos latifundiários anuncia, inclusive, que realizará, no escopo do 1º Grito da Produção, uma Sessão no TJE. E tudo isso quando o advogado de posseiros do sul do Pará, Paulo Fonteles, completa vinte anos de assassinado e os mandantes permanecem impunes!
O que diz o Relatório Conflitos no Campo
Aliás, toda sorte de violências se abate sobre os camponeses no Brasil e no Pará. Segundo os dados do Relatório: Conflitos no Campo do Brasil de 2006, lançado há dois meses atrás, em abril, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e atualizado anualmente, comprovam a manutenção das estruturas do domínio político e econômico do latifúndio e das transnacionais e, conseqüentemente, a impunidade de quem as mantêm.
No ano passado foi registrado o aumento de 176,92% nas tentativas de assassinato em relação a 2005. O crime também cresceu em quase 3% e foram registrados 39 assassinatos.
No Pará, estado brasileiro com maiores índices de violações aos direitos humanos dos trabalhadores rurais sem-terra ou com pouca terra para trabalhar, foram registradas 325 ocorrências de atentados contra a pessoa humana, 118 ameaças de morte e 28 assassinatos. É isso mesmo: dos 39 assassinatos ocorridos no Brasil em 2006, 28 foram no Pará!
Do ponto de vista a conflitos relacionados ao uso, à posse, resistência e luta pela terra – que considera ocupações, acampamentos e despejos – 19.449 famílias foram despejadas judicialmente e 1.809 expulsas por milícias armadas de segurança privada. Ainda, do ponto de vista do trabalho escravo foram levantadas 262 ocorrências com 3633 trabalhadores libertados.
Tais dados nos fazem comprovar, mais uma vez, que é o latifúndio quem engendra a violência no campo, atuando de forma criminosa e concentrando as riquezas do país.
Reforma agrária: falta força ou convicção
Segundo a CPT, a ligação da violência no campo e impunidade é direta e permanece inalterada. Entre 1985 e 2006, 1.104 pessoas foram assassinadas. Destas ocorrências apenas 85 foram levadas a julgamento e apenas 19 mandantes foram condenados.
A origem do quadro crescente de violência no campo está no fato de o Brasil não ter realizado a reforma agrária. O governo Lula, mesmo sensibilizado pelas péssimas condições de vida no campo, instituiu políticas assistencialistas, mas não teve força ou convicção de enfrentar o poder do latifúndio.
A prioridade política e financeira que os governos dão, há tempos, ao modelo convencionado por “agronegócio” – baseado na grande propriedade, que não gera empregos e produz apenas para a exportação – beneficia cerca de 30 mil proprietários rurais, num universo de 4,9 milhões de donos de terras existentes no país.
O agronegócio não é outra coisa senão a ação do capital financeiro internacional na agricultura. Por trás de empresas como a Aracruz Celulose estão bancos como a Safra, Votorantim e fundos de investimentos internacionais como o Lorenz, da Noruega. E não estamos falando apenas da substituição do carcomido latifundiário por empresas privadas no campo.
O porto ilegal da Cargill no Tapajós
O redesenho do sistema econômico internacional, na quadra histórica de ofensiva do neoliberalismo, engendrou um modelo agrícola mundial cuja sua afirmação política está baseada na ação guerreira e belicista estadunidense, porque é a expressão dos interesses dos milhardarios em nível planetário. Tal modelo agrícola é modernizado do ponto de vista tecnológico, de altíssimo desenvolvimento dos meios de produção, baseado na exploração exacerbada da natureza e da biodiversidade, na homogeneização dos produtos agrícolas, com a estratégia de produzir monocultura para a exportação. Estamos, portanto, diante da formação de complexos empresariais oligopolistas que garantiriam o domínio dos recursos naturais, da oferta de matérias-primas para a produção de agrocombustíveis, das usinas de produção de açúcar e etanol, óleo vegetal e biodiesel e, indiretamente, o mercado mundial do etanol.
O modelo monocultor para a exportação e com uso extensivo de venenos é implementado nas Regiões Sul e Centro-Oeste do país com a soja. A cana-de-açúcar simboliza o modelo no Sudeste e Nordeste. A soja é também o principal responsável pela destruição ambiental na Amazônia, onde 1,2 milhões de hectares de mata nativa foram convertidas em lavoura até 2004. Grande parte da produção destas áreas é exportada através do porto construído ilegalmente pela multinacional Cargill. A empresa, inclusive, é acusada pelo Ministério Público Federal de ter privatizado parte do Rio Tapajós e de ter construído o porto sem licença ambiental.
Mesmo sendo dirigido por grandes empresas – a Cargill, por exemplo, tem receitas superiores à US$ 63 bilhões – este modelo tem uma mão amiga para a sua aplicação: os recursos públicos. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está entre os investidores da Aracruz Celulose e destinou ao setor no ano passado mais de R$ 2 bilhões. Além disso, apenas em renegociação de dividas, o agronegócio já faturou de mão beijada pelo menos R$ 80 bilhões do governo federal.
Tamanha bondade estatal foi capaz de ressuscitar os antigos senhores de engenho. Graças ao recente acordo com os Estados Unidos para a exportação do etanol, os velhos usineiros, atraem o interesse de empresários como Bill Gates, presidente da Microsoft, e George Soros, bilionário especulador financeiro. Mais ágil, o Deustsche Bank já atua na área de agrocombustíveis sob o nome de Brasil Ecodiesel.
A memória de Fonteles, uma lâmina afiada
O desenvolvimento do agronegócio no país é absolutamente perigoso porque todo o nosso território rural e a economia agrária nacional irão se tornar objetos de manipulação nas mãos dos interesses dos grandes capitalistas estrangeiros.
O resultado deste modelo agrícola baseado na monocultura e na exportação é mais concentração de renda e de terras, promovendo o êxodo rural e a agricultura brasileira se vergará apenas a atender os interesses do mercado externo.
O sentido das ações do latifúndio no Pará, através da Faepa, é de transformar cada vez mais a Amazônia paraense em área de expansão para os interesses alienígenas, promovendo, em certa medida, uma internacionalização “branca” e o seu reforçamento estenderá cada vez mais violência, injustiças e degradação ambiental.
Nestes dias em que lembramos da figura heróica de Paulo Fonteles, a sua memória é uma lâmina afiada no sentido de fortalecer a luta pela reforma agrária e punição aos verdadeiros criminosos do campo, colocando na agenda pública um novo modelo agrícola baseado na justiça social, na soberania alimentar e no progresso popular.
* Advogado, vereador em Belém (PCdoB); paulofontelesfilho@hotmail.com; intertítulos do Vermelho