Gindre questiona: qual é a do governo Lula em comunicação?

''Qual tem sido a política do do governo Lula com relação à comunicação? No que é importante, mas não é central, o governo avança. […] Mas aí você pergunta ‘qual é o coração desse processo’? É o oligopólio dos radiodifusores. Nesse o governo não toca'',

A conversa foi em Brasília, onde o jornalista participou do Encontro Nacional de Comunicação, promovido pelas Comissões de Direitos Humanos e de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados. Por Mônica Simioni e Gustavo Alves.



Para Gindre, o encontro – que reuniu centenas de lideranças de todo o país na semana passada – foi um importante passo para ampliar a participação da sociedade civil na Conferência. Entretanto, existem muitos desafios. O maior deles é vencer a dicotomia de posições dentro do governo. “É um governo que avança, mas quando discute o que é central, tá entregue aos radiodifusores'', afirma, referindo-se aos donos de canais de TV e rádio. ''O Ministério das Comunicações é um ministério dos radiodifusores. Mais do que um ministério do PMDB ou da bancada do Senado, quem tá lá são os radiodifusores mesmo. O governo vai ser o grande adversário. Resolver essa equação dentro do governo vai ser o grande problema”, avalia.



O ministro das Comunicações, Hélio Costa, anunciou que realizará uma conferência de comunicação em agosto próximo, anulando a participação da sociedade civil no processo. A proposta dos movimentos sociais é que ela ocorra no começo do ano que vem, precedida por conferências municipais e estaduais que discutam o papel do Estado na defesa do direito à comunicação de qualidade, respeitando os direitos humanos, e na ampliação do acesso aos meios.



Para Gindre, fortalecer a disputa contra o ministro Hélio Costa significa envolver mais organizações que não são “naturais” da comunicação. “A Comunicação pode até estar no discurso das entidades, mas isso não se transformou em ação. Enquanto a gente não tiver um movimento de partidos políticos de esquerda, com a CUT, o MST e a Coordenação de Movimentos Populares, e não conseguir ampliar, a gente ainda vai ter problemas”.



Na entrevista, o jornalista ainda avalia que o processo de definição do sistema da TV digital no país foi ''uma catástrofe'' e o da rádio digital caminha para ser pior ainda. E comenta que o governo Lula perdeu uma oportunidade histórica de testar os limites na relação com a imprensa no começo do seu primeiro mandato. “Não tentou e agora, cada vez mais, as coisas ficam mais difíceis”. O problema, diz, é que “o governo é apenas o convidado na festa e não faz parte do grupo de amigos da grande mídia. Não tenho dúvida que se o governo Lula se enfraquecer, amanhã ou depois, a Rede Globo vai para cima”.



Leia a íntegra da entrevista:


Vermelho – A sociedade tem feito um esforço para construir uma Conferência Nacional ouvindo todos os segmentos da sociedade e não de uma forma vertical. Como você avalia o papel deste encontro nesta disputa?



Gustavo Gindre – A gente tá muito no começo ainda desse processo. A gente passou muito tempo pleiteando essa conferência. Agora é que o processo começou a andar em relação a ter uma conferência e temos um monte de questões para resolver. Primeiro, de dentro das entidades mesmo, que se reconhecem como entidades cuja finalidade é a questão da comunicação. A gente precisa construir uma pauta mais social. Ainda tem muita aresta para ser resolvida dentro do movimento de comunicação. E se a gente for com essas arestas para uma conferência vamos ter problemas.



A segunda questão é que precisamos envolver as entidades que não são naturais da comunicação. Na questão da saúde, por exemplo, você vai numa conferência de saúde e encontra um monte de entidades que  não são de médicos, de trabalhadores da área da saúde, de pacientes. Mas que, por “n” questões, participam da conferência. Eu participei da conferência da saúde porque trabalhava numa rádio comunitária dentro de um hospital psiquiátrico e a gente acabou se envolvendo. A saúde é considerada hoje um direito humano tão universalizado que não passa na cabeça de ninguém que essa é uma questão só dos trabalhadores da saúde. É uma questão de todo mundo. Comunicação pode até estar no discurso das entidades, mas isso não se transformou em ação.



Enquanto a gente não tiver um movimento de partidos políticos de esquerda, da CUT, do MST, da Coordenação de Movimentos Populares, não conseguir ampliar para aqueles caras que não são especificamente da área da comunicação, mas que fazem o conjunto dos movimentos sociais, se eles não comprarem a idéia da conferência, não se envolverem e não participarem, a gente ainda vai ter problemas.



E outro problema é o envolvimento do Estado, garantir que ele seja sério. Esse é um tema espinhoso porque ninguém quer discutir, todo mundo sai meio de banda. De repente você ter um Estado que se compromete com as deliberações da conferência, esse talvez seja o maior desafio.


Vermelho – O governo possui duas facetas muito diferentes. De um lado temos a postura do ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, mais avançada, e de outro a do ministro das Comunicações Hélio Costa…



Gindre – Pois é. Qual tem sido a política do Estado brasileiro, ou melhor, do governo Lula com relação à comunicação? No que é importante, mas não é central, o governo avança. E há coisas que são importantes, como a tevê pública, Aí tem um avanço. As políticas do [ministro da Cultura Gilberto] Gil são um avanço. O processo que se deu no Comitê Gestor [da internet] é um avanço. A questão da Radiobrás. Mas aí você pergunta ‘qual é o coração desse processo’? É o oligopólio dos radiodifusores. Nesse o governo não toca. Então o que o governo fez? Colocou um cara mais avançado no Ministério da Cultura. Coloca o Franklin Martins com umas idéias interessantes na Secretaria de Comunicação. Mas no Ministério das Comunicações eles colocam um radiodifusor.



Então, enquanto vocês estiverem comendo pelas beiradas, tudo bem. Mas na hora que se tenta… é o negócio do Gil. Enquanto o Gil tá comendo pelas beiradas, mudou as regras de financiamento para a cultura, estimulou a produção independente, agora criou a programadora Brasil pra distribuir conteúdo, aí tudo bem. Agora quando o Gil, a única vez que ele tentou ir pro ‘filé minhon’, que é o negócio da Ancinav, caíram matando.



É um governo que avança, mas quando discute o central, o central tá entregue aos radiodifusores. O ministério das Comunicações é um ministério dos radiodifusores. Mais do que um ministério do PMDB, da bancada do Senado, quem tá lá são os radiodifusores mesmo. Por isso que eu digo o governo vai ser o grande adversário. Resolver essa equação dentro do governo vai ser o grande problema.



Vermelho – O Brasil já definiu o sistema de digitalização da tevê e agora caminha para definir a digitalização do rádio. Como você avalia a postura do governo?



Gindre – Acho que foi uma catástrofe. A gestão do Miro sinalizou com algumas coisas que pareciam que iam caminhar bem. Você pega o decreto 4.901, ele pode não ser uma “brastemp”, mas tem linhas. Quais são? Define princípios. Que a TV deveria cumprir o princípio da democratização. Da questão da interatividade como fornecedor de serviços de governo eletrônico, educação à distância, deveria desenvolver ciência e tecnologia nacional. Ou seja, ela tinha um arcabouço de princípios. Depois era estimular a participação da sociedade através de um conselho consultivo. E o artigo 5º do decreto diz que antes de tomar qualquer decisão o governo se comprometia em ouvir o conselho. E apesar de ser um conselho consultivo, o governo se auto-impôs de ouvir o conselho antes de tomar qualquer decisão. E o financiamento de pesquisa em universidades é uma coisa interessante. Tirou aquela discussão de padrão e abriu para uma discussão de sistemas tecnológicos. Então existem várias tecnologias aqui dentro. Algumas a gente vai poder desenvolver, outras não vai. Vamos ter que importar e vamos ter que estudar como vai se importar essa tecnologia. Isso vai mudando.



A inflexão real mesmo ocorreu no momento que o governo começou a se fragilizar com os sucessivos escândalos. Caiu Palocci [ex-ministro da Fazenda], caiu José Dirceu [ex-ministro da Casa Civil], a eleição foi se aproximando, o PSDB numa certa ascensão, que depois acabou não se confirmando. Mas ali o governo parou e disse ‘o que vocês querem para parar um pouquinho’. E tanto é que o decreto vem na véspera da eleição presidencial, no meio da Copa do Mundo, que é o decreto 5.820. Então as conquistas que teriam foram todas pelo ralo.



O conselho consultivo jamais foi ouvido. O governo já vinha antes sabotando as pesquisas na prática porque não adianta apenas você dizer vai ter pesquisa. E você demorar pra mandar recurso, mandar menos… Então teve gente que o prazo pra entregar era dezembro e o sujeito recebeu o recurso em outubro. Tinha gente que tava tirando do bolso. Então a maior parte das pesquisas não conseguiu apresentar os resultados que poderiam. Então o governo sabotou a pesquisa, desrespeitou o processo de escutar a sociedade civil, e principalmente, jogou por terra aquilo que eu acho que eram as três conquistas que a TV digital poderia trazer.



Principalmente o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacional, pra gerar uma indústria nacional que deixe de ser dependente. O Collor [ex-presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992) criou um negócio chamado processo produtivo básico. A empresa se instala em Manaus e o governo define um mínimo de processos produtivos que ele considera que se a empresa realizar no país é considerado produto nacional. Em geral esse processo é uma mera montagem de kit. O cara traz o DVD desmontado e monta aqui. O celular desmontado e monta aqui. E tem uma série de incentivos fiscais, mas gera emprego quase nenhum. O pessoal brinca que hoje em dia essas fábricas estilizadas precisam de apenas dois seres no chão da fábrica: é o cachorro e o funcionário. O funcionário pra dar de comer pro cachorro e o cachorro pra não deixar o funcionário apertar botão nenhum. Ou seja, não gera mão de obra qualificada nenhuma. No final, o Brasil exporta acho que 5 bilhões só de royalties pra uso de chip.


Vermelho – E ainda fechamos o acordo com o padrão japonês e perdemos uma grande oportunidade de estimular a produção da nossa própria tecnologia.



Gindre – A TV Digital mexia em duas tecnologias que estão transversais a quase toda a economia: software e microeletrônica. Desde o sinal de trânsito ao carro popular, tudo tem software e microeletrônica. Se você consegue alavancar a indústria nacional destes dois setores tem um efeito transversal na economia. Pelo menos nos setores brasileiros que já têm uma certa competitividade, como o setor petrolífero e da aeronáutica, tudo se beneficia deste desenvolvimento interno. E o que se fez não foi isso. Se firmou um acordo com o Japão e se adotou indiscriminadamente a tecnologia japonesa.



Vamos supor que se tirasse esse acordo com o Japão, porque não tem nenhuma justificativa por escrito dizendo que a tecnologia japonesa é a melhor. Então, vamos fazer um acordo soberano, que garanta a transferência de tecnologia. A Embraer, por exemplo, já fez isso. A partir de um tanto de patamar tanto de produção que a gente garantir um mercado X, vocês vão transferir tecnologia, vão fazer isso, vão fazer aquilo. De tal forma que no sinal, a Embraer detinha certas tecnologias que no início do processo ela desconhecia. E agora você garante que a Embraer siga caminhos próprios.



Se a TV digital fosse um carro, a modulação seria o motor. Das partes do sistema é a parte mais importante. Isso é o que define se o sistema é americano ou japonês. A PUC-RS fez exatamente com os japoneses o que eles fizeram com a Europa. Pegou a modulação deles e desenvolveu melhorias a partir disso. Então nós poderíamos estar usando uma modulação própria. Ah, aí você fala ‘mas não tem mercado’. Ah, mas vamos pensar no mercado latino-americano. Taí o Chávez [presidente da Venezuela], a Argentina, o Uruguai, Bolívia querendo se integrar. Vamos oferecer essas tecnologias. Não de maneira imperialista. Mas discutir com esses países. A América do Sul é um grande mercado. Pelo menos na América do Sul dá pra resguardar esse mercado. No Caribe e na América Central é mais difícil porque os Estados Unidos estão vindo com muita força.



Então aqui foi adotada a tecnologia japonesa. Chega a dar vergonha porque tem normas que são meramente tradução. E às vezes nem traduzidas são. E aí vem a desculpa de que houve realmente uma única vitória brasileira. O principal software que vai habitar a caixinha dos adaptadores é brasileiro e isso é uma conquista importante e aí vem gente dizer que o sistema é nipo-brasileiro. Mas não, a tecnologia é importada. Então nós perdemos esse pilar.



E perdemos outro que era o de abrir o espectro. O espectro vai continuar o mesmo. Vai comprimir o sinal. E o canal vai continuar o mesmo. Hoje um canal de televisão ocupa um espaço de 6 MHZ, como se fosse uma régua. Qual a diferença? É que no digital ocupa um espaço muito menor. Então no mundo analógico, programação e canal eram sinônimos. Trocar da Globo para a Bandeirantes, saia de um canal para ir pra outro canal. No mundo digital, você pode ficar dentro de um mesmo canal e ter várias programações diferentes colocadas ao mesmo tempo.



Vermelho – Só que da forma como foi acordado serão os mesmos proprietários…



Gindre – Exato. Então a gente propunha o que a Europa fez, que não tem nada a ver com a tecnologia européia. Era uma escolha político-administrativa. Porque a gente aqui já tem a TV paga, onde você tem duas figuras diferentes: um é o operador e outro é o programador. O sinal da HBO ou da Telecine, por exemplo, não chega na sua casa. Tem alguém que reúne esses sinais e distribui de uma única vez. Então no cabo cabem 80 canais. Aí digitalizou e passou a caber uns 500 canais. O espaço que sobrou não pertence a HBO. A operadora vai dizer que esse excedente vai permitir mais programações. Então você coloca alguém no meio do caminho entre quem faz o conteúdo e o espectador, que é o operador de rede. Então, em Paris, por exemplo, todo os sinais saem do mesmo lugar: a Torre Eiffel. Todas emissoras entregam para esse operador que reúne essas programações. Ele vai alocar dentro dos canais com uma regra de melhor administração do espectro. Se possível que seja público pra ter tratamento isonômico. E ele distribui o sinal.



Isso permite várias coisas. Primeiro você dá isonomia de sinal. Hoje você tem várias cidades do Brasil onde a Globo pega muito bem, a TV Educativa é uma porcaria e a Bandeirantes mais ou menos. A partir daí você dá a mesma qualidade pra todo mundo. Permite que se gerencie melhor os espectros. O que se fez é que não tem operador, cada canal continua transmitindo por conta própria. A gente se viu obrigado a entregar um canal inteiro para cada radiodifusor. Isso significa que dentro do período de transição vai continuar havendo a transmissão analógica e a digital. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, entre VHF e UHF existem 14 emissoras funcionando. Cada uma vai receber um canal novo. Aí você já tem 28 canais ocupados, 14 analógicos e 14 digitais. Aí você tem que descontar que existe interferência de canais analógicos.


 


Então tem determinados canais que enquanto houver transmissão analógica, que deve ser por uns dez anos, não poderão ser usados. Aí, bota o fato do canal 37 ser pra rádio astronomia, que o 60/69 o governo diz que vai usar pra TV mas até hoje não é usado. São uma série de questões. O fato é que se mantiver o espectro como está hoje na cidade do Rio durante o período de transição só vai ficar um canal sobrando. São 514 que poderiam estar ocupando três, quatro canais ao invés de 14 e aí sobraria oito, dez canais pra ocupar. Então, na verdade, o governo fez política deliberada de manter restrito o número de emissoras.



A terceira grande perda deste processo é que a TV digital é o começo do namoro entre TV e a internet. Eles iriam ao cinema, iriam trocar uns beijinhos e em algum momento lá na frente eles teriam um filho que a gente não chamaria nem de TV nem de internet. Isso só é possível se a TV digital tiver interação própria. Quem tem SKY já tem um nível de interatividade com o conteúdo que está no seu box. A TV digital, com canal de retorno, se essa caixinha fosse plugada no serviço banda larga, permitiria, primeiro, ter interatividade com a programação. Segundo, ia acrescentar serviços que não são típicos de televisão como e-mail, educação a distância, governo eletrônico, pagamentos de taxas e acesso a informações, e até, no limite, acessar a internet.



Hoje no Brasil, segundo dados de 2006, só 20% tinha computador em casa. Só 6% acessava banda larga. Então existe uma base de acesso à internet muito restrita. Em compensação, 90 e poucos porcento da população têm acesso à televisão. Se você garante que essa televisão será de serviço interativo você faz um processo de inclusão digital massivo. Pra isso, precisa vencer duas barreiras que o governo não demonstrou interesse nem tentou convencer os radiodifusores disso. O radiodifusor disse ‘peraí, você vai colocar interatividade, o cara vai começar a acessar serviços que concorrem com a minha audiência. Daqui a pouco esse cara tá baixando vídeo no Youtube da televisão e tá deixando de ver minha programação’. Então eu até brinco com os radiodifusores: vocês devem pensar assim: ‘interatividade, um dia vai virar, que bom que não seja hoje’. Enquanto eles puderem empurrar isso com a barriga e manter esse modelo de negócios deles, melhor para eles.



Outra questão é garantir o acesso banda larga. Era preciso ter um plano nacional de banda larga que massificasse o acesso. Hoje tem tecnologia sem fio que é muito mais barata. Mesmo a fibra ótica já caiu de preço. Hoje o governo deve ter em caixa mais de 5 bilhões de reais. Daria pra botar acesso no Brasil inteiro. Então você tem tecnologia, tem dinheiro, mas não tem política.



Vermelho – E o atual processo de definição da rádio digital, como você o está vendo?



Gindre – O processo da rádio digital consegue ser pior que o da TV digital porque você jamais teve as vitórias iniciais da TV digital. Na TV você tinha um conselho, no rádio este conselho surgiu agora. Vamos ver no que vai dar. E ele não está amparado num decreto. Na TV pelo menos ele estava previsto no decreto. Na rádio você tem um conselho feito pela deliberação do ministro Hélio Costa que a qualquer momento pode dizer ‘cansei desta brincadeira, encerra isto’. Você não tem o estímulo a pesquisa nacional, você não tem o desenvolvimento tecnológico nacional. Então já se sinaliza ‘vamos adotar a tecnologia norte-americana e encerrou’.



Existem algumas transmissões experimentais, para tentar criar a política do fato consumado. Só que a tecnologia norte-americana tem três grandes problemas. O primeiro é a sintonia, principalmente à noite, os EUA enfrentam este problema. Inclusive algumas rádios não se digitalizaram por conta disso. Eu estava lendo um texto em uma revista norte-americana com o título ''Rádio Digital é ótima, quando pega''. O segundo problema é que o IBOC [padrão norte-americano de Rádio Digital] foi uma demanda das rádios norte-americanas de um padrão que mude pouco, este IB de IBOC significa In Band. Ele é dentro da banda e isso para a emissora é ótimo. Ela continua transmitindo em FM ou AM na mesma freqüência, passa a ocupar o dobro de espaço na faixa de transmissão e então dentro desta máscara toda ela continua transmitindo em analógico e passa a transmitir em digital.


 


Então, na verdade, você está dando mais espaço para as emissoras. Ninguém garante que no final do processo de transição elas irão devolver o espaço utilizado para transmitir o sinal analógico. O sinal digital fica nas bordas da freqüência e o analógico fica no meio. E quem garante que no futuro elas aleguem que já que ocupam este espaço no espectro elas, ao invés de devolver, passem a produzir programações segmentadas como uma rádio jazz, uma rádio ópera, etc? Ao contrário da TV Digital, no rádio diminuiu o espaço para novas emissoras. Cada emissora ocupa mais espaço.



E é uma tecnologia muito cara, trabalha com a lógica do software. Hoje você compra um transmissor e usa um transmissor. Este não, você licencia. Tem que pagar uma licença de uso anualmente com uma escala progressiva. E pode estar pagando no final do ano 25 mil dólares de licença por ano. Isto é absolutamente proibitivo para as emissoras. O ministro Hélio Costa anunciou que negociou que não haverá o pagamento dos royalties. Eu perguntei: mas ministro está no papel. Tem um acordo. Eles vão assinar um acordo. E ele me disse ‘não, isto é uma relação a ser construída’.


 


 Isto pode ser comparado tranqüilamente à estratégia do traficante. No início não se cobra nada e depois que todas as emissoras convertem o equipamento, ela passa a cobrar. A Monsanto fez isso com a soja transgênica, no início todo mundo saiu plantando soja transgênica e chegou num patamar que o sujeito já estava dependente da tecnologia transgênica e a Monsanto disse 'agora eu cobro'. Isto significaria a ruína das rádios comunitárias e muitas rádios de municípios de médio e pequeno porte. Hoje no Brasil, de cada 100 reais investido em publicidade, o rádio fica com quatro reais. É baixíssimo. Temos rádios do interior que não tem estrutura nenhuma e se ela tiver que pagar uma taxa deste porte, só pelo uso da tecnologia, já era.


Vermelho – Essa grande convergência tecnológica tem gerado uma forte disputa entre os radiodifusores e as empresas de telecomunicações que passam a mirar os mesmos mercados. Quem tem mais chances de ganhar?


Gindre – Em um mundo ideal você teria uma regulação por camadas: infra-estrutura-estrutura e conteúdo, e teria marcos regulatórios diferentes para cada um. Eu não vejo nenhum problema que uma grande operadora de telecomunicações ofereça uma estrutura de TV a cabo. Hoje elas estão proibidas por lei, mas eu não vejo nenhum problema. Acho que até seria bom que entrasse. Mas você precisaria garantir muito bem esta definição porque eu entendo o medo da Globo, embora não concorde. É que o dia que o sujeito tiver toda a infra-estrutura, com o capital que as teles tem, irão começar a oferecer conteúdo. Você não assina infra-estrutura para ter esta estrutura. Você assina para ter acesso ao conteúdo. Quem tem toda a infra-estrutura vai se sentir tentado a se jogar no mundo do conteúdo como a Globo faz. A Globo tem toda a infra-estrutura e produz o seu conteúdo. Neste mundo ideal, a Globo deixaria de ser radiodifusor. Produziria o seu conteúdo e entregaria para o operador de rede transmitir. Assim como eu acho que a Globo deveria sair desta estrutura e ficar focada no conteúdo, as teles deveriam ficar proibidas de avançar sobre o conteúdo.



Na verdade, é só uma questão de tempo. O Reino Unido regulou desta forma. Dividiu a British Telecom em duas empresas diferentes: a Open British e a British Telecom. O que é a Open? Ela é dona de toda a infra-estrutura, só não pode vender o serviço para o usuário. E ela vende para quem queira usar a rede dela para vender ao usuário final. É como se a Brasiltelecom, Telemar ou Telefônica fosse dona da rede instalada mas não pudesse te oferecer telefone. Agora a Open quer mais é que se tenha concorrência. Então começou a oferecer mais serviços. Isso só se tornou realidade porque se reconheceu que infra-estrutura/estrutura é monopólio. A regulação passou a ser feita em cima de um monopólio, as contas da empresa passaram a ser publicadas na internet, o governo obteve as golden share [ações preferenciais com direito a veto nas decisões da empresa].



No Brasil, o risco que se tem é de ao não regular esta questão você ter dois oligopólios entrando em choque. Pode ter um processo de composição. É até bem provável que se tenha. Mas também pode haver um processo pior de um engolindo o outro por total falta de regulação. Eu acho que em algum momento você pode ter. Eu brinco de fazer uma aliança tática com as teles porque interessa bater nos radiodifusores. Mas sem ilusão nenhuma, são grandes empresas transnacionais com tendências oligopolistas que virão tentar dominar o mercado de conteúdo mesmo. Entre teles e radiodifusores, teremos é que regular os dois.



Vermelho – Entre o primeiro e o segundo mandato temos assistido a uma mudança na linha editorial da Rede Globo com relação ao governo Lula. O que está em jogo?



Gindre – Eu vou chutar aqui algumas coisas. A Globo tem uma vocação governista. Ela trabalhou anos contra o Lula mas quando sentiu que a vitória do Lula era inevitável, tentou compor. E deve ter tido algum nível de composição ali. E seguiu assim: o governo avançava um pouco na sua direção, ela batia. E o governo recuava e ela amainava a cobertura.



O grande erro do governo Lula é que o governo é convidado na festa, não faz parte do grupo de amigos da grande mídia. Na hora que a Globo sentir, como sentiu na véspera da eleição de 2006, que era possível tirar o governo, apostou nisso. Ali o governo Lula deveria ter feito uma avaliação de que entregou tudo o que os radiodifusores queriam. Entregou a TV digital, jogou a Ancinav para as calendas, não renovou o marco regulatório e, mesmo assim, quando o grande radiodifusor sentiu que o governo estava fraco, eles avançaram.



Eu não tenho dúvida que se o governo Lula enfraquecer, amanhã ou depois, a Rede Globo vai para cima. Ela tolera o governo Lula. Aceita o governo Lula. Do tipo ‘foi inevitável, não tinha jeito, então eu vou compor com este caras’. Mas ela não vai dizer ‘este é o meu candidato’. No segundo turno isso foi claro. Quando ela tirou o acidente da Gol da pauta para pautar aquela coisa do dossiê, indicou claramente quais eram suas intenções. Eu até fiz um texto dizendo que o Hélio Costa prometeu que iria garantir a vitória do Lula em Minas e o Lula perdeu. Prometeu que iria trazer o PMDB todo com Lula e não trouxe. Prometeu que iria trazer o apoio dos radiodifusores para o Lula e não trouxe. Então para que serve o Hélio Costa?



O governo Lula tinha no início do mandato a faca e o queijo na mão. A Globo vinha de um período de ‘default’ na sua dívida, não conseguia pagar a dívida. A Globo virou para seus credores e disse que não tinha como pagá-los. E deu a TV Globo em garantia. Em nenhum país do mundo existe uma TV com os índices de audiência da Globo. Nos EUA, uma TV aberta que faça 15 pontos está soltando fogos. Por isso ela criou um patamar de exigência para ela mesma tão alto que ela precisa fazer tudo, quebrar a concorrência, etc. Para você ter uma idéia, ela sabotou a sua própria TV a Cabo. A penetração da TV paga no Brasil é baixíssima, menos de 10% dos espectadores assistem a TV paga porque o espectador da TV paga deixa de ser espectador da TV Globo, então ela não pode permitir a concorrência nem dela mesma. Ainda mais agora que quando ela renegociou suas dívidas deu em garantia a própria TV Globo. E ela está desesperada com o crescimento da Record. No caso das transmissões esportivas, a Record está comprando as transmissões dos campeonatos estaduais por valores que a Globo não consegue cobrir. Então a Globo não consegue pagar o que a concorrente paga e também não pode perder audiência pois todo o seu império está alicerçado na audiência. Precisa ter um ratting de 60 pontos de Ibope porque o anúncio está lá em cima e é este anúncio que sustenta todo o império. Se a Rede Globo perde a liderança, se ela passa a conviver com índices de audiência europeus ou norte-americanos, o império todo rui. Então a Globo estava fazendo água naquele momento, estava renegociando dívidas, e o governo Lula era um governo recém chegado, com um enorme prestígio, com 53 milhões de votos. Aquele momento era o momento da paulada.



Não peço que tivesse chegado para arrebentar, mas acho que pelo menos poderia se testar os limites. Ver até onde dava para ir. Não tentou e agora, cada vez mais, as coisas ficam mais difíceis. Acho que se perdeu uma chance histórica.



Vermelho – Uma pergunta inevitável: você é leitor do portal Vermelho?



Gindre – Sim. A entrevista do Franklin Martins, por exemplo, eu li no Vermelho. O problema é que o uso da internet no Brasil ainda é baixo. É muito limitador. A internet hoje rivaliza com os grandes meios de comunicação. Você tem espaços como o Vermelho e Carta Maior que para o formador de opinião traz uma informação mais qualificada que os meios tradicionais. Eu gostaria que a penetração fosse muito maior, para que se alcançasse muito mais gente. Mas já se tem um conteúdo diferenciado. Com o lançamento de uma experiência comercial de IPTV, o Joost, que o Skype está lançando, embora com os limites de uma experiência comercial, acredito que a internet tende a dar mais um salto. Acho que daqui a 30 ou 40 anos aquilo que a gente conhece como TV vai estar totalmente sepultado.