Cinema: Americanos põem “Cidadão Kane” e Spielberg no topo

Por Amir Labaki*


O topo da lista não trouxe surpresa: Cidadão Kane, de Orson Welles, mais uma vez. Mas não faltam novidades na nova relação dos cem maiores filmes americanos de todos os tempos do American Film Institute (AFI), revelada

Antes, um esclarecimento: como no processo de escolha de dez anos atrás, a eleição limita-se a longas-metragens de ficção produzidos nos Estados Unidos, escolhidos por 1.500 personalidades numa lista inicial de 400 títulos, reunidos pelo AFI a partir de critérios como reconhecimento crítico, popularidade, premiações e impacto cultural.


 


Mesmo quando americanos, os documentários, filmes curtos e experimentais eram inelegíveis. Nada, assim, de Robert Flaherty, Maya Deren, Stan Brakage, Jonas Mekas, Frederick Wiseman, Robert Drew, Barbara Kopple, Errol Morris ou mesmo Michael Moore, para ficar em alguns poucos exemplos de mestres excluídos.


 


Kane foi sucedido por O Poderoso Chefão, Casablanca, Touro Indomável, Cantando na Chuva, E o Vento Levou, Lawrence da Arábia, A Lista de Schindler, Um Corpo que Cai e O Mágico de Oz. Saíram dos dez mais A Primeira Noite de um Homem (antes, 7º, agora 17º) e Sindicato de Ladrões (de 8º para 19º).


 


Oscilações


 


As quedas se devem a duas espetaculares reavaliações. Touro Indomável, a história do boxeador Jack LaMotta por Martin Scorsese, subiu 20 posições. Mais impressionante ainda foi a escalada de Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock: ganhou nada menos que 52 colocações.


 


O estudo máximo da obsessão e do fetiche por Hitch foi, contudo, apenas o terceiro filme com maior oscilação positiva. O lírico Luzes da Cidade, de Charles Chaplin, galgou impressionantes 65 postos, passando a ser o 11º filme preferido pela lista do AFI. Mas revolução mesmo foi protagonizada por Rastros de Ódio, de John Ford. Saiu da rabeira da relação de 1998 (96º lugar) para bem perto do alto da nova lista (12º).


 


A ascensão do melancólico faroeste de Ford não representou, infelizmente, o começo da merecida revalorização do conjunto de sua obra. Apenas mais um filme de Ford se manteve entre os 100 mais, As Vinhas da Ira (23º, dois a menos que em 1998), e caiu fora No Tempo das Diligências (antes, 63º).


 


Chaplin deu-se um pouco melhor que Ford. Permaneceu com três filmes na lista e, além do sucesso de Luzes da Cidade, viu A Corrida do Ouro ascender 16 posições (de 74º a 58º) e Tempos Modernos, três (de 81º a 78º).


 


A velha e a nova Hollywood


 


Steven Spielberg repetiu a liderança entre os cineastas com maior numero de títulos destacados. Manteve cinco filmes na lista, com a substituição de Contatos Imediatos de Terceiro Grau por O Resgate do Soldado Ryan. Alfred Hitchcock e Billy Wilder, com quatro filmes cada um, dividem agora o segundo posto com – finalmente – Stanley Kubrick.


 


Francis Ford Coppola, Frank Capra, Martin Scorsese e Michael Curtiz vêm a seguir, com três títulos indicados, mantendo assim certo equilíbrio entre a era dos estúdios e a nova Hollywood dos anos 1970.


 


De fato, o período entre 1950 e 1979, da decadência do chamado “gênio do sistema” à ascensão e queda dos jovens talentos da década de 1970 (Altman, Coppola, DePalma, Lucas, Scorsese, Spielberg etc.), mais uma vez domina a votação, com a exata metade da centena predileta. Os anos 1970, em particular, roubam a cena, com 20 filmes.


 


O cinema mudo, por sua vez, conheceu progresso quase insignificante, saltando de quatro para seis títulos lembrados. O mais antigo é agora Intolerância (1916), de David W. Griffith, substituindo o clássico racista Nascimento de uma Nação (1915), do mesmo diretor. Duas obras-primas de 1927, o drama Aurora, de Murnau, e a comédia A General, de Buster Keaton, vieram reforçar a presença do filme silencioso.


 


Injustiças


 


A lista sofreu uma significativa renovação de 23 títulos. Quatro dos novatos foram realizados após a realização da pesquisa anterior, que incluiu títulos apenas até 1996: Titanic (1997), O Resgate do Soldado Ryan (1998), O Sexto Sentido (1999) e, como o mais recente de todos, a primeira parte da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel.


 


Tudo somado, o cinema contemporâneo (pós-1980) ampliou sua presença, passando de 14 para 17 filmes.


 


Algumas das mais sérias injustiças anteriores foram superadas, com a inclusão de ao menos um título com Fred Astaire & Ginger Rogers (Ritmo Louco), um do impagável roteirista e diretor Preston Sturges (o metacinematográfico Contrastes Humanos), um, como citado, de Buster Keaton (A General) e Faça a Coisa Certa, de Spike Lee.


 


Mas tudo se passa ainda como se fosse possível contar a história do cinema americano pulando Eric von Stroheim, Ernst Lubitsch, Greta Garbo, John Cassavetes e David Lynch, ao lado agora de, creia, James Dean.


 


Oscar em baixa


 


Mais do que qualquer outra coisa, é novamente o Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, o grande perdedor com o novo cânone nacionalista do AFI. Das 79 produções vencedoras do prêmio de melhor filme, só 27 (34,2%) conquistaram uma vaga entre os 100 mais.


 


Há dez anos, o resultado era um pouco menos decepcionante (33 dos 69 premiados, 47,8%). Pode ser apenas mais um cutucão entre instituições primas. Ou, às vésperas de se tornar octagenário, o principal termômetro da indústria fílmica americana pode estar mesmo avariado.


 


* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários


 


Do Valor Econômico, com intertítulos do Vermelho