Tas: Meu encontro com Robert Fisk, o “animal furioso”

Por Marcelo Tas
O celular toca enquanto entro na Pousada do Ouro, britanicamente no horário combinado, para o encontro com o jornalista e escritor inglês Robert Fisk. É a funcionária da editora que o publica no Brasil impaciente com a minha ausência. R

Ele já vai descer, ela diz, foi trocar de camisa. Confesso um certo receio da missão de entrevistar o “correspondente internacional britânico mais famoso do mundo”, conforme sentenciou o The New York Times, jornal com o qual Fisk já travou brigas homéricas.


 


O próprio Times já o descreveu como um “animal furioso”. Fisk não tem filhos e vive em Beirute, onde é correspondente do jornal inglês The Independent. Há 30 anos, acompanha conflitos pelo mundo. Já cobriu a revolução islâmica no Irã, o conflito Irã-Iraque, a guerra do Golfo, do Kosovo, a invasão do Iraque e o recente conflito entre Israel e Líbano.


 


Estava ainda inquieto buscando com os olhos um lugar tranqüilo para gravar a entrevista quando surge às minhas costas o velhinho espevitado, olhos faiscantes azuis e com um gesto rápido tira o chapéu de palha que estou usando na Flip para proteger minha careca.


 


– Nice hat!
– Thank you, Mr. Fisk.


 


Coloca meu chapéu em sua cabeça, mas não permite que eu o fotografe naquele figurino de caiçara. Comenta que tem o mesmo problema que eu – é cabeçudo. Por isso sabe o valor de se encontrar um bom chapéu.


 


Conversamos durante uma hora sem interrupções. A não ser por algumas gargalhadas compartilhadas na tranqüilidade da manhã de sol no jardim interno da pousada. Apesar de conviver diariamente com a morte e a tragédia, Fisk cultiva com disciplina o discreto e cortante humor inglês sempre afiado.


 


Segue-se o resumo da conversa:


 


Nelson Rodrigues, escritor brasileiro homenageado na Flip, dizia: “As manchetes dos jornais não dão conta de reconhecer a catástrofe do mundo atual”. Você concorda com ele?
Os jornais geralmente tratam os assuntos, especialmente a guerra, como um jogo de futebol. Concedem 50% do tempo para cada adversário. Mas a guerra não é um jogo de futebol. Se eu fosse contar a história do tráfico de escravos africanos para o Brasil deveria dar 50% de espaço para os traficantes de escravos expressar suas opiniões? E também outro tanto para os nazistas?


 


Uma guerra é pura dor. Já estive num corredor de hospital em Bagdá com o chão “inundado” por três centímetros de sangue. Vi uma criança sem perna com sua mãe ao lado segurando seu braço decepado. Junto delas, um soldado iraquiano com o olho perfurado. Era um soldado do exército que defendia Saddam Hussein. A guerra é o fracasso da civilização.


 


Por isso não acredito em jornalismo de manchetes. Não se pode brincar com a guerra. A imprensa numa hora dessas pode ser uma arma letal. Como foi o The New York Times que apoiou a invasão do Iraque por George Bush. O mesmo jornal disse que no Independent cobrimos o Oriente Médio como animais furiosos. Fiquei muito feliz com essa condecoração (risos).


 


Você está conseguindo desfrutar do seu tempo livre em Paraty? Como compara esses dias aqui com sua rotina em sua casa em Beirute, no Líbano?
(Um pouco ríspido) Eu não estou em férias em Paraty. Trabalho o tempo todo, como se estivesse em qualquer outro lugar do mundo, como correspondente do Independent no Oriente Médio. Saio muito pouco do quarto. Trouxe na bagagem caixas com documentos que uso para este trabalho.


 


Você carrega papéis ao invés de tê-los no computador ou buscá-los na internet?
Eu não uso internet.


 


O que você está dizendo?
Nem internet, nem e-mail. Uso intensamente apenas o celular. As pessoas me acham qualquer hora em qualquer parte do mundo. É um celular da companhia telefônica de Beirute. O Líbano tem um excelente sistema de comunicação. A internet atrapalha o jornalista. Com o Google, ao invés de ir direto a fonte, você lê o que fulano escreveu sobre o que sicrano disse que alguém disse. É um jornalismo digressivo.


 


Um amigo jornalista já me criticou dizendo que abria pela manhã a internet. E depois de três horas já tinha lido o The New York Times, Corriere de la Sera, El País, The Guardian… Eu disse, meu querido, enquanto você lia eu já realizei três entrevistas com pessoas diferentes e sei muito mais sobre o que está acontecendo no mundo que você.


 


Como você encontra equilíbrio para viver o tempo todo viajando entre países em guerra?
Tenho mais horas de vôo por ano que muitos pilotos internacionais. Não sei mais o que é jet leg. Vivo permanentemente nele. O segredo é usar sempre os mesmos hotéis e a mesma companhia aérea. Assim você vai formando uma certa família de conhecidos que está sempre em movimento. Por exemplo, eu decidi que se possível eu só uso a Air France. Os caras tem a melhor comida de bordo do mundo. Conheço todas as tripulações. Mal sento na poltrona e a chefe de cabine já vem soprar no meu ouvido: Mr. Fisk, não se preocupe, após a decolagem, já sirvo o seu gin tônica (risos).


 


Onde estava você no dia 11 de Setembro?
Justamente dentro de um avião embarcando para os Estados Unidos. O chefe do vôo me chamou e perguntou: Robert, o que está acontecendo? Fiquei o vôo inteiro, usando o telefone via satélite da cabine, apurando os fatos. Desde o primeiro minuto, eu disse. É o ataque. Ditei o artigo para o The Independent da cabine da Air France.


 


Você já esteve com Bin Laden. Conseguiu enxergar algum traço de amor e compaixão nos olhos dele?
Você quer um lado bom em Bin Laden? É complicado. Ele vive no deserto de sua mente. Literalmente. Vive dentro de uma caverna. E é importante que se diga, lendo livros muito importantes. Apresentou-me seus principais auxiliares e o local onde vive com suas três mulheres.


 


É extremamente autoconfiante e dono da verdade, o que não o deixa muito distante de Bush ou Blair (risos). Um dos líderes da Al Qaeda me perguntou: por que eu quis ser jornalista? Eu disse: porque eu me interesso pela verdade. Ele disse: então você não quer ser jornalista; quer é ser muçulmano (risos).


 


PS: seus mais recentes livros lançados no Brasil são A Grande Guerra pela Civilização e Pobre Nação, sobre as guerras do Líbano.


 


Fonte: Blog do Tas