Ruy Castro: Biografados precisam estar mortos

Em sua coluna publicada na edição desta segunda-feira da Folha de S.Paulo, o escritor e jornalista Ruy Castro defende a necessidade de potenciais personagens biografados estarem mortos para que uma obra sobre sua vida possa ser feita sem qualquer

Autor de biografias de brasileiros ilustres como Nelson Rodrigues, Carmem Miranda e Mané Garrincha, Ruy Castro falou sobre o assunto em Paraty, durante a 5ª Flip. Veja abaixo o texto em que ele trata do assunto:



Biografáveis



Nos últimos anos, fui sondado por pessoas que admiro e que gostariam que eu lhes escrevesse a biografia: um ator, três atrizes, vários músicos, um estilista, um banqueiro, um empresário e uma família inteira. Fui sondado também por pessoas que não admiro, como um famoso político. Agradeci muito e recusei.



Primeiro, porque se tratavam de encomendas, e deve ser difícil trabalhar numa biografia com o biografado espiando por cima do ombro do biógrafo. E, mesmo que não fossem, todas essas celebridades, que merecem boas biografias, têm o defeito de estar vivas.



Uma pessoa que seja tão importante para merecer em vida uma biografia será também poderosa o bastante para atrapalhar o trabalho do biógrafo. Ao ser inevitavelmente usada como fonte (caso “autorize” ou apenas aceite a biografia), ela se dedicará a mentir sobre si mesma para o biógrafo. E, pior, poderá induzir amigos a também mentir ou, no mínimo, omitir fatos. Não dá pé.



Para mim, o único biografado possível precisa estar morto. E não pode ser um morto recente, porque a morte transforma, de saída, qualquer um em santo. Leva tempo para que os defeitos voltem a assentar sobre o cadáver e, para isso, ele precisa estar mais que geladinho. Eu diria que 10 anos de morte são o mínimo para que alguém se torne um biografável confiável.



O fato de o biografado estar morto não livra o biógrafo de problemas. Há toda uma plêiade de filhos, netos, irmãos, sobrinhos e até genros do biografado, prontos a se ofender com qualquer coisa e a jogar advogados contra o biógrafo.



Donde costumo dizer que, para sossego do biógrafo, o biografado ideal seria aquele que, em vida, foi órfão, filho único, solteirão, estéril e, com todo respeito, brocha. Pena que esse biografado não exista.