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Moacyr Scliar: Médicos nas barricadas

“Como aconteceu com Che Guevara, seu corpo, crivado de balas, foi exposto na Delegacia de Xambioá, as mãos amarradas, uma perna estraçalhada pelas balas, o ventre costurado com cipó”. Assim o escritor Moacyr Scliar lembra os 35 anos da morte de João Carlo

A recente greve dos médicos no Nordeste provocou muita controvérsia, sobretudo porque se choca contra a tradicional concepção da medicina como sacerdócio: o doutor seria uma pessoa que se dedica exclusivamente aos outros, esquecendo de si próprio, inclusive no que se refere ao salário. Quando os médicos reivindicam da mesma forma como o fazem outras profissões, o espanto é geral.


 


 


Mas deve-se dizer que médicos não raro participam, sim, em movimentos sociais, inclusive em movimentos de caráter francamente revolucionário. Jean Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa, era médico, um dos pioneiros no uso da eletricidade em medicina. Abandonou suas pesquisas para dedicar-se à política, o que, aliás, lhe custou a vida: foi assassinado pela filha de um adversário que mandara à guilhotina (inventada por um médico, o dr. Guillotin). Rudolf Virchow, o pai da patologia, lutou nas barricadas da revolução de 1848 na Alemanha e fez também carreira política. E temos a história de Ernesto Che Guevara que abandonou a profissão para tornar-se guerrilheiro, primeiro em Cuba, depois em outros países, terminando na Bolívia, onde foi executado.


 


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Aqui em Porto Alegre tivemos um exemplo de médico revolucionário: João Carlos Haas Sobrinho. Nascido (1941) em São Leopoldo, João Carlos foi um aluno brilhante dos colégios São Luiz, de São Leopoldo, São Jacó, de Novo Hamburgo, Anchieta, de Porto Alegre. Em 1959 ingressou na Faculdade de Medicina da UFRGS. Lembro dele como um colega sério, digno e muito atuante. Presidiu o Centro Acadêmico Sarmento Leite e formou-se em 1964, o ano do golpe militar, que mudou sua vida. Membro do Partido Comunista do Brasil, João Carlos viajou para a China e, ao regressar, exerceu a medicina por algum tempo, antes de aderir à luta armada. Participou na guerrilha do Araguaia e acabou sendo morto em combate, a 30 de setembro de 1972, na localidade de Piçarra, próxima a Xambioá. Como aconteceu com Che Guevara, seu corpo, crivado de balas, foi exposto na Delegacia de Xambioá, as mãos amarradas, uma perna estraçalhada pelas balas, o ventre costurado com cipó. O objetivo era, segundo uma autoridade da época, ''advertir'' a população.


 


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Pergunta: o que leva médicos a deixar consultórios, postos de saúde, hospitais para participar numa luta mais ampla? Os motivos são vários e complexos, mas podem estar em parte ligados à própria opção profissional. O médico é alguém que trata do corpo do paciente. O político e o revolucionário querem curar o corpo social. E curar o corpo social pode, em determinadas circunstâncias, incluir a luta armada. Durante um confronto com o exército, em Sierra Maestra, Guevara largou sua mochila com material médico para pegar uma caixa de munições que um companheiro deixara cair; algo que ele viu como um símbolo de transformação: o médico agora era um combatente. Mais tarde, porém, reconheceria que luta armada não é tudo, que a medicina social é um componente importante na transformação da sociedade. Como realizar esta transformação de forma sábia e equilibrada é o problema. Para o qual os livros de terapêutica não têm nenhuma resposta.