Globalização é 11 de setembro da América Latina
Juan Gabriel Tokatlian é um dos analistas mais respeitados no que tange aos debates sobre a realidade da América Latina. Atual professor no Departamento de Humanas da Universidade de San Andrés, em Buenos Aires, este acadêmico tem uma larga trajetória de
Publicado 23/09/2007 14:31
Em conversa com Terra Magazine, ele discordou daqueles que asseguram que as mudanças de liderança na América Latina foram uma resposta ao “esquecimento” norte-americano quanto à região nos últimos anos.
Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, e outros não são o resultado da “falta de atenção de Washington”, mas sim de um excesso de ativismo americano e do forte impacto da globalização econômica. Tokatlian analisa também a vocação de liderança internacional do Brasil, mas afirma que ela ainda não está instalada de modo pleno na região.
O que se segue é um resumo da conversa de Terra Magazine com o acadêmico argentino:
Terra Magazine – Muito se fala de mudança na América Latina, mas é difícil apontar um denominador comum em suas lideranças. Por um lado se pode apontar Hugo Chávez, na Venezuela; Daniel Ortega, na Nicarágua; Evo Morales, na Bolívia, como representantes de uma causa comum. Mas as presidências de Álvaro Uribe, na Colômbia, de Felipe Calderón, no México, e de Alan García, no Peru, indicam coisa diferente. Como interpretar estes dois lados?
J. G. Tokatlian – Um modo de responder seria fazer pelo menos três cortes que permitissem uma melhor observação. Primeiro, creio que a globalização, em sua vertente latino-americana, pode ser, de algum modo, comparável ao 11 de setembro. Uso esse contraste tão brutal porque me parece que ela teve, por toda a região, efeitos muito mais devastadores que os que se presumia no início dos anos 90: deterioração dramática da maioria das economias, aumento da disparidade social em todos os países, inclusive aqueles que se deram bem em termos econômicos; crescimento dos delitos, do crime organizado, até mesmo em países onde tradicionalmente isso não existia; radicalização das demandas sociais…
Portanto, creio que sob um golpe tão violento como o que se produziu nessa última fase da globalização, causando impacto semelhante ao do 11 de setembro nos Estados Unidos, dois retornos resultaram. Um primeiro retorno é o do Estado. E, para o caso da América Latina, Uribe é o mesmo que Chávez, que Kirchner, que Morales e que, inclusive, Calderón. Há uma convicção em toda a região de que este descontrole quanto ao papel do Estado, esta debilitação do Estado, gerou custos imensos para a sociedade; e assim, portanto, com diferentes considerações sociais e políticas, há um retorno do Estado.
Creio que há também a ocorrência de algo que eu não chamaria exatamente de “nacionalismo”, mas sim “nacionismo”. Ou seja: preocupar-se com a nação. Há uma tendência à introspecção que não é somente argentina. É preciso observar a imprensa e as ações de outros países para ver que estão cada vez mais ensimesmados pela dimensão doméstica de seus problemas. Dessa forma, no contexto mencionado, o retorno do Estado e da vontade de proteger a nação me parece surgir por razões que têm mais a ver com os efeitos da globalização.
Ao contrário do que também costuma ser sugerido, não devemos nos confundir quanto ao que está acontecendo nos Estados Unidos, e desatenção não quer dizer “inação”. Em minha opinião, os Estados Unidos em 2000, um ano antes dos atentados, haviam conseguido a aprovação prática da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), fechado acordos comerciais com o Chile e com vários países da América Central, e firmado pactos com o Peru e Colômbia, com o Uruguai. Ou seja, não estiveram inativos. Mantiveram políticas muito ativas quanto à região.
Mas ao que parece a atenção estava voltada em uma direção diferente: os Estados Unidos nunca obtiveram tão pouco apoio como ocorreu com a tentativa de golpe contra Chávez. Além disso, toda a estrutura que armaram, inclusive os acordos com Peru, Colômbia, Uruguai e Chile, hoje atravessa um momento de incerteza. Agora, Bush é praticamente incapaz de impor a aprovação desses acordos ao Congresso.
Mas aí dependemos da política interna dos Estados Unidos. Diferentes fatores devem ser levados em consideração: a envergadura do plano Colômbia – US$ 4,5 bilhões em assistência, o que converte o Estado liderado por Uribe no quarto maior recipiente mundial de assistência americana, com a segunda maior embaixada norte-americana depois de Bagdá e a presença permanente de 800 militares, bem como de 700 especialistas civis em segurança terceirizados; o sistema de bases arrendadas e modernizadas no Caribe e na América Central; a intenção de se projetar no Paraguai…
Esses fatores demonstram que os Estados Unidos continuam, talvez muito intensamente, isso sim, atentos à região. Por isso, me parece que começa a haver na área uma rejeição às políticas de Bush. Não é que a região tenha mudado de signo político porque os Estados Unidos deixaram de prestar atenção a ela. Ao contrário: mudou de rumo político porque os Estados Unidos prestam atenção demais, e isso gera a presença, frente aos governos, de atores sociais que reclamam ações cada vez mais mobilizadas. Então, esse é um segundo elemento que temos que levar em conta.
E o terceiro é que os Estados Unidos seguem sendo a principal potência internacional e, claro, a grande potência hegemônica da região. Mas me parece que tampouco disponham de tantas opções como era o caso nos tempos da Guerra Fria. Por exemplo, há uma convicção de que estimular golpes de Estado hoje em dia está fora dos limites. Creio que insistir em que o populismo radical seja o substituto do comunismo não convence muito, e que a política de contenção por meio de associados latino-americanos que utilizem métodos sujos é algo que ninguém deseje utilizar contra qualquer país.
E não há possibilidade de demonizar um inimigo? Por exemplo Chávez, porque é amigo de Fidel Castro…
Chávez nem mesmo ataca os interesses dos Estados Unidos. Que se tenha construído uma ameaça em torno dele é compreensível. Mas o conjunto de repertórios que os Estados Unidos sempre teve à sua disposição alcance hoje não está dando resultados, não funciona, ou não é admissível.
Além disso, toda a região é resistente a Bush.
Isso abre perspectivas a toda a região; essa possibilidade de que muitas das políticas dos Estados Unidos já não sejam aplicáveis permite a adoção de políticas alternativas. O processo de democratização da região não me parece diminuído. Não seria fácil encontrar um momento em que tenhamos um indígena presidente de um país, um trabalhador presidente do maior país da América Latina e uma presidente socialista em ainda outro país. Este é um sinal de que vivemos uma época em que os Estados Unidos não estão consolidados. E me parece que a existência de governos socialistas na América Latina é um progresso. Ainda que não seja um tsunami vermelho, isso representa pelo menos uma onda rosa.
É evidente que não estamos falando dos anos 60 — Cuba, a experiência peruana de Velazco Alvarado etc — e nem dos 90 — com o “Primeiro Mundo” de Carlos Menem ou Fernando Collor de Melo. Será que isso permite supor uma nova divisão na América Latina, entre os regimes que seguem a orientação de Chávez e outros mais conservadores, como o de Lula, no Brasil, e o de Michelle Bachelet, no Chile?
O que temos de contemplar com mais cuidado é se o nosso modelo de desenvolvimento efetivamente mudou ou não. E eu diria que não mudou. Trata-se de um eixo que estrutura todas as experiências históricas, do norte ao sul da América Latina. E não mudou porque ocorreram alguns desdobramentos, os quais, se o observador quiser ser perversamente nostálgico, poderiam até ser atribuídos ao consenso de Washington. Hoje em dia, até mesmo os governos mais progressistas admitem que é preciso existir superávit.
Como isso aconteceu, já que ser de centro-esquerda ou populista no passado implicava acreditar em governar com déficit? O que vemos são graus de heterodoxia na fronteira. Nesse sentido, Kirchner é muito mais heterodoxo do que Bachelet, Lula ou Tabaré Vázquez. Mas tudo isso dentro de um modelo que ninguém deseja abandonar, porque não existe uma coalizão reformista que tenha chegado ao poder. Não houve uma mudança substantiva de modelo; estamos apenas brincando nos limites do modelo existente. E, se não temos uma coalizão radical ou reformista que tenha assumido, ressalvados casos como o de Chávez ou Morales na Bolívia, o que temos é algo que não representa nem os anos 60, nem os 90, mas que tampouco pode ser considerado como grande novidade.
Uma demonstração disso, me parece, no campo do pensamento, é a ausência de idéias alternativas para a América Latina. Não dispomos de uma nova Cepal, que proponha: “Vamos fomentar uma idéia alternativa”. Pouco se faz. Essa é uma missão ainda em aberto, que demonstrará os limites das tentativas relativamente progressistas de avanço político.
Nos países mais ortodoxos (Peru, México e Colômbia), vimos nos últimos anos um aprofundamento do modelo neoliberal. E creio que, neles, ninguém deseje mudar esse receituário de maneira drástica. São países que sofrem um fenômeno muito específico, o da criminalidade, o do tráfico de drogas, o do crime organizado. Sergio Aguayo, um observador mexicano muito respeitado, publicou dois meses atrás no jornal espanhol “País” um artigo que me causou sobressalto. Ele afirmava que, em 40% do território do México, é o crime organizado que impõe a lei.
O que aconteceu, portanto, com a qualidade das instituições?
Quando, no começo dos anos 90, acreditávamos que estivessem instalados governos progressistas levados ao poder pelo voto popular, esses governos decidiram aproveitar a legitimidade de que desfrutavam para promover uma virada drástica e ceder aos ditames do capital internacional, aos interesses de Washington e da globalização.
Parece-me que, na América Latina, estamos vendo processos eleitorais nos quais o núcleo de legitimidade sofre forte questionamento, nos últimos anos. Temos presidentes que chegam ao poder muito debilitados, como por exemplo Néstor Kirchner. Eles não podem trair suas promessas, porque isso custaria demais, e precisam avançar em direção à heterodoxia, assumir mais riscos do que seu volume de votos inicial permitiria.
Na Colômbia, Uribe chegou ao poder em meio a um forte questionamento do poder político eleitoral, e precisa adotar uma política de combate firme à insurgência, mas não pode abandonar suas bases políticas. E o México também compartilha dessa tendência. Creio que a agenda social, política e internacional condicionará a política de Calderón. Temos mandatos conquistados com número limitado de votos, e políticos que podem se ver abandonados por seus eleitores. O momento mudou.
O caso de Uribe é emblemático. Ele não pode abandonar seu discurso de combate à guerrilha por motivos de realismo político, mas tampouco pode consumar uma vitória político-militar. Ou seja, ele deve perceber que não será capaz de realizar seus sonhos, e assim pode terminar se associando a grupos paramilitares, o que o prenderia em uma armadilhas, já que ele estaria fazendo por vias escusas o que gostaria de fazer como política do governo.
O caso da Colômbia é ainda mais dramático. Na reeleição de Uribe, apenas 46% dos eleitores votaram. Ele venceu, mas sua gestão, de 2006 até agora, enfrenta inconvenientes de toda espécie, porque aquilo que parecia um processo de negociação com as forças paramilitares se converteu em processo de legitimação do paramilitarismo e de submissão do Estado aos grupos paramilitares.
A Colômbia enfrenta um dilema especial: ou bem Uribe domestica os grupos paramilitares, ou bem os grupos paramilitares domesticam não só Uribe como todo o Estado colombiano.
Nesse sentido, paradoxalmente, como resultado do insucesso de sua agenda política, ele decidiu reformular sua postura internacional. Um exemplo disso é o bom relacionamento que mantém com Hugo Chávez, depois de muito tempo sendo visto como um presidente submisso às políticas de Washington. O Departamento de Estado norte-americano todo ano publica um relatório sobre os resultados das votações nas Nações Unidas, a pedido do Congresso, porque o Congresso, antes de alocar verbas de assistência, deseja saber se os países beneficiados por esse dinheiro votaram com ou contra Washington.
No documento divulgado em 2007, que registra os resultados das votações realizadas em 2006, o país que menos coincide com os Estados Unidos, nas votações dos fóruns de diversos setores, é a Colômbia, com índice de concordância de 8,5%. Mesmo a Venezuela acompanhou Washington em 10% das votações. Estão acontecendo fenômenos difíceis de compreender. A mim parece que, se o referencial de análise forem os Estados Unidos, estamos condenados a uma avaliação simplista. Mas se levarmos em conta o âmbito e a dinâmica regional mais amplos, poderemos compreender melhor o que vem ocorrendo na região.
O que acontece com lideranças que já fizeram parte dos dois campos antagônicos? Refiro-me, especificamente, ao caso de Alan García, que durante sua primeira presidência dizia que não era possível pagar mais de 10% da dívida externa peruana e agora ressurge no novo século com um discurso econômico altamente ortodoxo.
Nesse caso, temos uma invocação da ortodoxia para conquistar o governo, facilitada pela estrutura dos partidos políticos em seu país. Nesse sentido, não sei se o segundo Alan García se distinguirá tanto assim do primeiro. Apresentá-lo como vendido aos Estados Unidos e como um líder desprovido de quaisquer preocupações sociais é um exagero muito grande. Minha sensação é a de que ele não terá relacionamento tenso com Chávez.
No caso do Chile, porém, a relação pode ganhar tons mais problemáticos. Nesse caso estamos diante de uma faceta do nacionalismo peruano cuja influência sobre o cenário diplomático eu não descartaria. E há outro ponto que eu gostaria de mencionar: se existe ou não liderança na América Latina. Tenho a impressão de que estamos contemplando coisas muito interessantes na região. Temos o único país apto a se tornar potência regional, que é o Brasil. Temos um Brasil que se envolve na organização do grupo dos quatro, com Japão, Alemanha e Índia, para obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU; o país também lidera o grupo dos 20, que comanda as tropas das Nações Unidas no Haiti. E tudo isso acontece sob a presidência de Lula.
Mas também temos um Brasil que não chega a assumir ainda uma liderança regional plena. Por isso, surgem outras lideranças, como a de Chávez, que coloca a todos em xeque. Chávez é o único dos líderes latino-americanos a operar em âmbito regional. Planeja um exército sul-americano, um gasoduto sul-americano, um banco sul-americano. Aquilo que reclamamos do Brasil, ou seja, que pague para assumir a condição de protagonista, é o que a Venezuela parece disposta a fazer. Nesse sentido, a liderança menos conflituosa do Brasil, que deveria suscitar mais interesse, termina substituída por uma outra liderança, muito mais veemente e provocadora. E a região fica em posição ambígua. É nesse contexto que aparecem os Estados Unidos tentando promover “lideranças alternativas”, como a do Chile, ou a de Uribe, ou a de Calderón.
Falemos do Mercosul. É possível distinguir uma força centrípeta, de atração, e diversas forças centrífugas. Qual é o destino da organização, que hoje parece viver um impasse?
Quando um impasse se prolonga demais, gera a impressão de que a situação corrente pode ser perpetuada. Minha sensação é a de que, se fosse esse o caso do Mercosul, a situação estaria se degradando. Não vivemos a situação de 1998, com as privatizações dos anos 90. A organização deixou de ser uma união aduaneira, como era então. Em muitos casos, uma situação como essa se resolve com um passo adiante, que implicaria em maior respaldo jurídico: novos acordos, contemplação das assimetrias, novas regras de jogo…
Desenha-se uma situação institucional que permite desenvolver uma alternativa convincente para os países membros. O Mercosul não o fez até o momento. Nesse sentido, me parece que, em algum ponto de todo esse caminho, a organização perdeu o rumo, no que tange a definir os interesses materiais objetivos dos participantes a fim de fortalecer a instituição.
E outras coisas aconteceram. A primeira foi que os parceiros menores (Paraguai e Uruguai), por motivos distintos, deixaram de considerar o Mercosul como carta de negociação para obter melhoras, e estão estudando seriamente a possibilidade de deixar o bloco. Já não estão integrados a ele com o objetivo de pressionar.
Segundo, apesar de o Mercosul não se ter consolidado como forma de promover esses interesses, estamos acrescentando novos membros, sem muita consideração. Proponho um exemplo: a União Européia terá demorado de 10 a 15 anos para incorporar a Polônia, enquanto nós já vamos incorporar a Venezuela, e o Uruguai deseja a admissão do Equador. Isso não beneficia o Mercosul.
Em terceiro lugar, me parece que os Mercosul sofre um problema de liderança sobre o qual os acadêmicos, os políticos e os empresários não souberam refletir. Vacilamos em aceitar a liderança brasileira, e não conseguimos avaliar a situação corretamente. Talvez uma forma múltipla de liderança seja uma opção, porque, ainda que debilitado, o Mercosul poderia ser uma força estabilizadora na região. Eu digo que é preciso resolver a questão da Bolívia. A Bolívia precisa de progresso. A Bolívia precisa de uma saída para o mar, precisa recompor seu Estado. Esse poderia ser um objetivo político do Mercosul, sob uma liderança um pouco mais colaborativa.
Fonte: Terra Magazine