Sindicalistas apontam reforma tributária que o país precisa
Com o fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), a reforma tributária entra na ordem do dia. Mas o tema é controverso por natureza. Ele expressa, no fundo, interesses conflitantes de uma sociedade marcada por profundas desigua
Publicado 14/01/2008 15:03
Uma boa maneira de economizar tempo quando se pensa nas conseqüências do fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) é deixar de lado, e quanto mais cedo melhor, a ficção de que não vai acontecer nada de mais se ela não for compensada. Vai acontecer, sim, e não vai ser pouco. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou que a suspensão da CPMF exigiria que fossem reduzidos os programas sociais e também os investimentos prioritários do governo, como parte dos definidos no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Na reunião das centrais sindicais sobre as medidas que o governo vem anunciando para compensar a perda da CPMF, falou-se muito sobre a necessidade de cortes no superávit primário para repor os cerca de R$ 40 bilhões que foram tirados do orçamento da União. Até onde isso é possível? É evidente que essa idéia representa uma oportunidade magnífica para se acertar de vez o buraco fiscal que sobrou como resultado da campanha intensa da direita pelo fim da CPMF.
CPMF: sonho de justiça tributária
O grande problema é que nunca se viu publicado em um veículo de comunicação que atinja diretamente o trabalhador um balanço analítico e compreensivo sobre a questão tributária e fiscal brasileira. O fim da CPMF, por exemplo, implicou no fim de muitas outras coisas. Apesar de não ser um imposto progressivo e incidir em cascata, a CPMF talvez tenha sido um dos tributos mais eficientes já criados no Brasil.
A Receita Federal, a rigor, nunca teve de gastar um centavo para arrecadá-lo, pois era a privilegiada rede bancária que fazia esse trabalho para ela — com suas agências, seus computadores e seus funcionários. Não existia fiscal de CPMF. Também não existia corrupção em sua cobrança; não há notícia de banqueiros ou bancários, ao longo desses 11 anos, que tenham recebido propinas para não descontá-la dos clientes. O seu fim suscita outra discussão.
PAC enfrenta problema estrutural
Além da indiscutível necessidade de continuidade dos programas sociais, a intocabilidade do PAC é fundamental. Peguemos o caso da energia elétrica, por estar em evidência. Estamos em alerta. Os rios andam magros. Barragens esvaziadas põem de fora suas paredes de concreto e a demanda por eletricidade está forte em todos os quadrantes do país. O coração econômico do Brasil pode ficar sem luz se providências não forem tomadas.
É um problema estrutural, que vem sendo enfrentando com determinação — o BNDES aprovou financiamento de R$ 2,6 bilhões para a construção da Usina Hidrelétrica Estreito (Norte), a maior incluída no PAC. O investimento vai gerar 1.087 megawatts (MW) a partir de 2010, o suficiente para abastecer uma cidade de 7 milhões de habitantes. O banco de fomento já aprovou 13 projetos de geração hidrelétrica incluídos no PAC, equivalentes a investimentos totais de R$ 11,8 bilhões e capacidade de 3.600 MW.
Qual o papel apropriado do Estado?
Há também, no cerne desta discussão, a reforma tributária. Recentemente, o vice-presidente da República, José Alencar, afirmou que o pacote anunciado para compensar a CPMF é um remendo, que não irá ''consertar'' o país. Alencar disse confiar numa mudança ampla por meio de uma reforma tributária. ''Mas, com esses remendos, a gente não vai consertar nunca'', disse ele. Questionado se entendia que o pacote é um remendo, Alencar afirmou que ''tudo isso que se faz, não só isso, são remendos''.
O problema é que mudanças na estrutura dos impostos brasileiros talvez seja uma das questões mais complicadas. De concepção difícil, negociação intrincada e implantação árdua, essa proposta figura com destaque na cartilha dos partidos de todas as cores. Nas campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, ela foi consagrada uma das prioridades das prioridades. E nem por isso saiu das gavetas. ''Falar em reforma tributária é falar em mudar como se financia o Estado brasileiro'', diz o economista Lécio Morais, especialista em orçamento e planos públicos.
No centro do debate está um problema crucial: qual o papel apropriado do Estado numa sociedade com carências sociais tão gigantescas como é a nossa? Há os que advogam a idéia de que Estado bom é o Estado mínimo. Aqui está, de forma bem clara e sintética, o alvo do movimento sindical. Entre os diversos instrumentos que o governo tem à mão para intervir na economia, dois se destacam: a política fiscal e a política monetária. Por meio da política fiscal, o governo pode influir tanto no nível de emprego e na estabilidade dos preços como na distribuição de renda, no crescimento e eficiência do sistema econômico.
Idéia enganosa de reforma tributária
O Estado mínimo, portanto, não serve para um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda. Uma vez definido o tipo de Estado que queremos, o sistema tributário deverá adequar-se a ele. Essa questão é de extrema relevância. Quando se fala em reforma tributária, não se pode esquecer que não há um consenso em torno da questão. A reforma tributária dos que advogam a tese do Estado mínimo vai exatamente em direção oposta às reformas preconizadas por aqueles que vêem um papel importante na ação do Estado para a consecução de um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda.
No conjunto de propostas que estão hoje em discussão, há as que caminham na primeira direção e advogam menos Estado, menos impostos e menos políticas sociais; e há as que caminham na direção oposta e reivindicam mudanças na política fiscal e tributária, de forma a dotar o Estado com maior capacidade de intervenção no sistema econômico. Na mídia, a reforma tributária transformou-se em sinônimo de ''equilíbrio fiscal''. Trata-se, evidentemente, de uma idéia enganosa.
Arrecadação e garantias desproporcionais
A questão tributária é apenas um dos lados da questão fiscal. Diz respeito, basicamente, às formas de financiamento dos gastos do Estado. A questão fiscal é muito mais ampla e trata não apenas da forma como o Estado deve arrecadar os recursos que precisa, mas, principalmente, da forma como se gasta esse recursos. Um Estado que arrecada uma grande parcela da renda nacional na forma de tributos, deveria, em contrapartida, oferecer um alto nível de segurança social. Pelo menos é o que ocorreu em países onde se implantou de forma efetiva o Estado de bem-estar social.
No Brasil, o Estado arrecada impostos e contribuições que vão, não raro, acima de 50% do Produto Interno Bruto (PIB), mas, em compensação, oferece garantias sociais que não justificam essa aparente voracidade do fisco. No fundo a questão é a seguinte: uma análise rigorosa deste problema mostra que é justificada a tese de que o Estado arrecada pouco e gasta mal o que arrecada. Esta constatação fica evidente quando se observa a execução orçamentária: o peso dos pagamentos da dívida pública, quando comparado aos demais gastos, é muito desproporcional.
Ditames da ''economia de mercado''
Sanear as contas públicas de fato, por meio da redução do superávit primário, e desprivatizar o Estado de modo a utilizá-lo conforme estabelece a razão histórica de sua existência é o desafio que se apresenta para abrir novas perspectivas ao país. É um desfio que pressupõe mobilizar os trabalhadores. Será em torno dessa bandeira, de suas possibilidades, do seu avanço, que será resolvida a batalha entre mudança e continuísmo na política monetária brasileira.
Sabe-se que o governo Lula é fortemente pressionado para respeitar os ditames e os procedimentos da ''economia de mercado''. Possivelmente estejamos diante do que o camarada Mao Tse Tung chamaria de ''a diferença entre as contradições antagônicas e as contradições não-antagônicas''. Assim que a CPMF acabou, por exemplo, membros do governo trataram de repisar a tecla da ''responsabilidade fiscal''. Os defensores desta tese, dentro e fora do governo, gravitam em torno de uma espécie de ditadura monetarista que dita as regras do jogo político no país há muitos anos.
Camisa de força do mercado financeiro
Para se ter uma idéia da sua extensão, em 2004 José Alencar, o vice-presidente da República, disse que estava sendo censurado para não falar sobre a taxa de juros do país. ''A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela'', disse ele. A gestão macroeconômica, à cargo do Banco Central (BC), é um mundo de negócios separado dos reais problemas do país — no qual a razão cedeu lugar à adivinhação, à cartomancia e aos elementos da feitiçaria semelhantes aos das religiões primitivas. Um ilha da fantasia, enfim.
O atual comando dessa área no governo é resultado de um arranjo para representar o que há de mais nefasto para o país: a especulação financeira. A “Carta ao Povo Brasileiro”, invenção do então futuro ministro da Fazenda Antônio Palocci em conluio com o todo poderoso ministro da Fazenda da “era FHC” e o então presidente do BC Armínio Fraga, selou o compromisso do então candidato Lula com os “contratos” do mercado financeiro (metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário) e com a manutenção da equipe que já comandava a política monetária neoliberal.
É pueril, portanto, imaginar que se possa resolver a questão em reuniões com o governo, ou mexendo em um ou outro ministério, ou fazendo oposição frontal e panfletária. A possibilidade de o Estado abrir suas portas para os interesses dos trabalhadores ao primeiro pio de um dirigente sindical, por mais representativo que ele seja, não existe. O lugar principal da política dos movimentos sociais não são os gabinetes de Brasília — são as ruas. O que se apresenta como palco de combates para os trabalhadores, portanto, é uma arena complexa.
Essência dos problemas sociais brasileiros
É evidente, portanto, que não basta defendermos a realização de uma reforma tributária que torne o sistema tributário mais “eficiente”. É preciso que, acoplada à reforma tributária, realize-se uma reforma fiscal que modele a ação do Estado brasileiro na direção de realmente alcançarmos uma maior justiça social. Quando se fala em justiça social, é preciso ressaltar a necessidade de imprimir um caráter socialmente mais justo ao sistema tributário brasileiro. Hoje, quem arca com o maior peso da carga tributária é o trabalho. Estima-se que um terço da renda dos assalariados é consumido em impostos. É uma estrutura tributária que penaliza o trabalho e beneficia o capital.
Um mínimo de justiça tributário implica em inverter esta lógica. Algumas iniciativas — como a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, taxação de remessas de lucro e dividendos, elevação da alíquota sobre herança, entre outras — que visem a aumentar a carga tributária para os ricos e reduzir para os trabalhadores são urgentes. É aí que está o centro da luta política no Brasil de hoje — uma luta que se move ao sabor dos interesses de classes. Visto por esse ângulo, pode-se dizer que ao levantar a bandeira da reforma tributária o movimento sindical está mexendo na essência dos problemas sociais brasileiros. Um grande avanço.
*Secretário adjunto de Relações Internacionais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)
**Secretário de Comunicações da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)