Por um esforço comum e urgente para a proteção da biota do vale do rio Pelotas

Paulo Brack*
Inicialmente, gostaríamos de salientar que consideramos a questão energética fundamental para o Brasil, não interessando a ninguém a volta do risco do chamado “apagão”. Toda a sociedade necessita de energia elétrica e reconhecemos que

Sabe-se que no Brasil a concentração exagerada de fontes de energia em mega-projetos de geração, à semelhança de Itaipu, fez com que a longa transmissão aos centros urbanos e industriais do país se tornasse muito cara e com desperdícios que chegam a 15 ou 20 % e com impactos socioambientais gigantescos e irreparáveis. As Sete Quedas, patrimônio brasileiro e mundial, desapareceu, há 25 anos, pois a cota de barramento de Itaipu deveria atingir os níveis máximos, não dando chances para a diminuição em alguns metros, o que teria salvado este monumento natural. Corroborando a isso, verifica-se no outro lado, no consumo, a ausência de preocupação em uma eficiência energética principalmente no planejamento das construções, como iluminação e maior conforto térmico, por exemplo. Planeja-se a máxima produção, porém não se programa o menor consumo. Erguem-se, cada vez mais, prédios envidraçados, com efeito-estufa, e que consomem muita energia de refrigeração, em um país eminentemente tropical. Não se pensa em aproveitar nem ao mesmo a energia barata do sol como geradora de calor para a água, o que não é desprezível, pois entre as 18 h e 20 h temos picos de consumo no Brasil em decorrência do funcionamento simultâneo de milhões de chuveiros elétricos, tecnologia ultrapassada em países de primeiro mundo.


 


Quanto ao processo de licenciamento e avaliação dos impactos produzidos pelas hidrelétricas, principalmente quando dos estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA/RIMAs), verificamos  poucos avanços. Os empreendimentos permanecem sendo avaliados de forma isolada, pela falta de vontade política dos dirigentes de órgãos ambientais em aceitar a incorporação de visões menos reducionistas e com mecanismos mais democráticos. Permanece a visão tecnocrática tradicional que objetiva obter a máxima produção, secundarizando-se os aspectos socioambientais. Desconhecem-se os danos totais do efeito sinérgico nas bacias quando de vários aproveitamentos hidrelétricos (AHE) simultâneos em um mesmo rio.  Os projetos permanecem pacotes fechados, sem incorporar planejamento de alternativas menos impactantes. As audiências públicas são meras formalidades, concentradas em locais distantes do acesso da população em geral. É dificultoso, principalmente do ponto de vista financeiro, o deslocamento de pessoas e de entidades ambientalistas da Capital até as audiências destes empreendimentos, em geral no interior. É um jogo desigual, pois as organizações ambientalistas não possuem nem 1% dos recursos que as empresas geradoras dispõem para o costumeiro lobby ambiental. Essas empresas não medem esforços em propagandas e pressões políticas, tendo como resultado uma população mantida desinformada pelas principais agências de comunicação (jornais, rádios e TVs). Como exemplo flagrante disso, em 2001 e 2005, quando da realização do I e II Fórum sobre impacto das hidrelétricas, com a participação diária de mais de 300 pessoas, os principais jornais diários de Porto Alegre apresentaram matérias pagas pelas empresas a favor de seus empreendimentos, e nenhuma matéria sobre os eventos, apesar da ampla divulgação prévia da programação às principais editorias jornalísticas.
 


 



A cultura autoritária que envolve a decisão quanto aos empreendimentos hidrelétricos talvez seja um resquício das três décadas de governos militares no país, principalmente considerando-se que foram concebidos na década de 70. Os vícios são ainda muitos no licenciamento ambiental dos órgãos públicos. O corpo técnico é pouco valorizado e mal remunerado, o que facilita os desvios como no caso da emissão de licenças (LI e LP) da hidrelétrica de Barra Grande. Entretanto, para uma mudança no panorama da gestão ambiental brasileira é fundamental que se abra a caixa-preta dos projetos, criando mais transparência no licenciamento e possibilitando que a sociedade realize um acompanhamento, de perto, das alternativas (localização, cota, etc.) e dos itens de medidas a serem adotadas nos planos de monitoramento e das ações de mitigação. Sem a sociedade participando do controle, as medidas ambientais permanecerão como mera formalidade, na rede burocrática, que acaba pendendo para o lado mais forte do poder econômico, principalmente nos mega-empreendimentos. Deve ser valorizado o trabalho técnico, refutando-se o tradicional patrolamento político-econômico no processo de licenciamento. Esse trabalho estratégico de análise dos projetos deve incorporar algumas diretrizes “guarda-chuva”, antecipadamente a situações isoladas, vislumbrando-se a necessária gestão de bacias, ou mesmo ecorregiões, com prognósticos de cenários conjuntos, de longo prazo.


 


Por outro lado, reconhecemos que está havendo uma tendência tímida do início a estudos mais integrados nas bacias. Neste sentido, em 2001, a FEPAM (Fundação Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul) teve o mérito de realizar um estudo integrado e inédito no Brasil, a partir de grupo multidisciplinar que avaliou 54 projetos hidrelétricos sobre a bacia do rio Taquari-Antas. Deste conjunto, foram descartados pelo menos 17 projetos considerados inapropriados do ponto de vista ambiental, o que, obviamente, pode ter gerado descontentamento nos órgãos de produção e empresas geradoras.


 


Em nível nacional, no final de 2004, o então diretor de Licenciamento do IBAMA, Nilvo Silva, afirmou que estas avaliações gerais seriam incorporadas no MMA (Ministério de Meio Ambiente). Além da questão de Barra Grande, outras vinte hidrelétricas no Brasil estavam com seus licenciamentos travados em 2004 porque traziam a visão convencional, com enormes vícios e até irregularidades. A gestão tendia a mudar, pelo menos em parte, incluindo um pouco de inteligência no processo. Entretanto, a pressa do MME (Ministério de Minas e Energia), alegando evitar “apagões” como o de 2001, criou um conflito muito forte entre a área energética e a ambiental, em vista do desengavetamento de dezenas de projetos hidrelétricos criados na década de 70. Era a sanha de infra-estrutura do governo, atrelada ao insustentável modelo de produção e consumo sem limites. O ministro da Casa Civil, José Dirceu, interveio em setembro de 2004 e facilitou a liberação da maioria das obras, criando, entretanto, alguns Termos de Compromisso (TC) que considerariam as avaliações das bacias como uma necessidade prévia. Assim, as chamadas AAIs (Avaliações Ambientais Integradas) seriam implantadas nas principais bacias brasileiras, incluindo a bacia do rio Uruguai, a partir da encomenda da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do MME, e não do MMA. Apesar do alto custo ambiental da liberação das mais de 20 licenças de hidrelétricas entravadas, dava-se o primeiro passo para uma re-análise mais profunda de projetos complexos, que superaria a visão reducionista-produtivista que deixa o ambiente e os aspectos sociais em segundo plano. Este estudo integrado, teoricamente, seria uma medida salutar, pois dezenas de hidrelétricas estavam planejadas sobre a bacia do rio Pelotas-Uruguai. Contabilizam-se 24 projetos de AHE (aproveitamentos hidrelétricos) de grande porte para a bacia. Este número não inclui as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), com até 30 MW, as quais alcançariam um número duas a três vezes maior do que as hidrelétricas de grande porte. Infelizmente, estas avaliações sob a encomenda do Ministério de Minas e Energia caíram, mais uma vez, nas mãos do interesse produtivista. Conforme pudemos constatar, quando de nossas solicitações de esclarecimentos quanto ao funcionamento dessas AAIs ao Ministério do Meio Ambiente, ocorreu uma falta de posição conjunta e de diálogo entre MME e MMA. Se tal compartimentação ocorre em um só âmbito, o que podemos esperar da comunicação entre as esferas federal e dos estados, na área ambiental? Da mesma forma, no Rio Grande do Sul, a presidência do CONSEMA chegou a considerar as hidrelétricas no rio Pelotas-Uruguai como problema exclusivamente de âmbito federal, ficando descartado qualquer esforço do conselho em abarcar com profundidade a questão. Na prática, os tão propalados enfoques “transdisciplinares” e “transversais” permanecem como pura ficção. Os agentes do governo e da sociedade que deveriam discutir o tema, e interagir entre si, estão muito distantes disso. O MME somente consultou as organizações não governamentais quando da elaboração do termo de referência para a AAI da bacia do rio Uruguai. Depois disso, deixou a tarefa na mão de uma instituição a ser contratada para isso, não ficando evidenciados debates abertos sobre o tema, como era de se esperar, nem, tampouco, a percepção ambiental das populações frente a estes empreendimentos.


 



Entretanto, mesmo a avaliação mais ampla de cada empreendimento, como no caso da altura dos barramentos e da extensão das áreas a serem alagadas, continua sendo um tabu nos EIA. Praticamente, não se discutem alternativas a projetos e sim medidas mitigadoras e compensatórias quando dos licenciamentos. Falta a coragem necessária em apontar aqueles projetos insustentáveis do ponto de vista ambiental e social. Falta coragem e isenção também às equipes consultoras que elaboram os estudos, as quais se mantêm compromissadas em não levantar questões que possam inviabilizar as obras, em decorrência da contratação direta dos consultores pelo empreendedor. Tudo isso ocorre porque os governos ainda não enxergam a biodiversidade como algo importante em seus planos de desenvolvimento. Mantém-se a chamada “infra-estrutura” convencional, produtivista, e de caráter imediatista como a principal meta. Reina a demanda pelo crescimento econômico e pelos empregos, como algo que não tem maior relação com o ambiente. Conservar a biodiversidade não geraria empregos. Continua-se a encarar Meio Ambiente mais como um problema, ignorando seu papel estratégico. Talvez, os governos esquecem que a biopirataria faz o Brasil perder mais de 16 milhões de dólares diários pelo patenteamento estrangeiro dos produtos gerados por nossa flora e fauna, principalmente os medicamentos. Também pouco se fala que a “indústria do turismo”, a que mais gera renda no mundo, também depende da conservação da paisagem natural e da biodiversidade. Tal avaliação, que estaria dentro de estudos de valoração das funções ou “serviços ambientais” não é realizada nem mesmo do ponto de vista do potencial dos recursos naturais. Se assim fosse, no licenciamento de Barra Grande, teriam avaliado a presença do parque municipal de Encanados como uma grande maravilha turística (Figura 1). O aproveitamento econômico de ambientes naturais, de forma sustentável, poderia gerar tanta renda e benefícios ambientais para a qualidade da água, do solo, para o microclima, a agricultura, etc., que justificaria o rebaixamento da hidrelétrica de Barra Grande ou até o cancelamento de sua licença.


 



No que toca ao conhecimento e divulgação de nossa biodiversidade na região dos barramentos, existem lacunas importantes a serem superadas. Inicialmente, seria um compromisso prioritário por parte de instituições de pesquisa governamentais e não governamentais a realização de estudos e veiculação quanto à biodiversidade e os bens e serviços ambientais das áreas naturais do vale do rio Pelotas. Neste aspecto, o desconhecimento da grande sua riqueza ambiental talvez tenha sido o principal fator que fomentou as inverdades no EIA de Barra Grande, por parte da ENGEVIX, como, por exemplo, a citação da existência de “araucárias poucas e esparsas”. Somente no momento do inventário florestal de 2003, realizado pela BAESA, foi demonstrado que os dados da ENGEVIX estavam muito longe da realidade. Eram mais de dois mil hectares de florestas com araucárias e outros milhares de florestas estacionais. Porém o IBAMA, em 1999 e 2001 já havia emitido as licenças prévias e de instalação, com base em dados que minimizavam, em seis vezes, seu dano real. O próprio inventário florestal da BAESA, realizado posteriormente e reconhecido como de grande qualidade pelo IBAMA, amostrou somente 20% das espécies da flora, pois se limitava, como de praxe nestes EIA/RIMAs, ao componente arbóreo. Ficaram de fora do levantamento as ervas, os arbustos, as epífitas e as trepadeiras, porque tradicionalmente isso não é solicitado. Caso não tivessem ocorrido tentativas de bloqueio no desmatamento da área de inundação de Barra Grande, no final de 2004, por parte do MAB (Movimento dos Atingidos pelas Barragens), e a repercussão dada na imprensa, talvez a sociedade nem tivesse percebido a calamidade ambiental que estaria por vir.


 



Pouco se fala de que o vale do rio Pelotas-Uruguai, principalmente entre os municípios de Vacaria, Bom Jesus, Anita Garibaldi e Lages, está incluído no mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação no Brasil, elaborado pelo IBAMA, em 2003 com classe de prioridade “Extremamente Alta” (Figura 2). Esta zona é justamente a que sofreu inundação, por Barra Grande, tendo havido sonegação da presença de cerca de 70% de florestas, em vez de 9% como constava no EIA/RIMA da ENGEVIX. É nesta zona que também foi ignorada, de forma proposital, a presença de uma “garganta” geológica no rio Pelotas, que correspondia ao parque de Encanados, no município de Vacaria, tendo-se perdido cerca de 2 km de extensão onde o rio passava por uma fenda estreita e de extremo valor cênico e turístico. Outros ambientes naturais significativos ocorrem à montante, nesta zona prioritária, onde estão planejadas as hidrelétricas de Pai Querê e Passo da Cadeia. Além disso, é justamente nestes locais onde temos os remanescentes florestais mais maduros da Área Núcleo da Mata Atlântica, nos mapeamentos da respectiva Reserva da Biosfera da Mata Atlântica na região do Planalto das Araucárias. Neste aspecto, convém lembrar que a empresa ENGEVIX, quando do EIA de Pai Querê e de Barra Grande, descreveu somente a região como “Reserva da Biosfera”, de forma genérica, omitindo o nome “Mata Atlântica”, provavelmente, pois o mesmo ganhou notória dimensão pela sociedade brasileira, inclusive pelo importante Decreto 750/1993 que a protege, sendo assim a manutenção do nome completo resultaria em um fator complicador e potencialmente impeditivo à inundação de milhares de hectares de floresta  para construção desta e de outros AHEs. É neste vale onde ocorre o mais importante contato entre a Floresta Ombrófila Mista (Floresta com Araucária) e a Floresta Estacional Decidual, constituindo-se em um verdadeiro corredor ecológico natural. O lastro deste corredor é, justamente, a matriz florestal, constituída pelo maciço de árvores centenárias, muitas de origem amazônica ou da região austral-andina, como no caso da própria araucária, a casca-de-anta e o espinho-de-são-joão. É um verdadeiro ecótono exclusivo de biocenoses tropicais e temperadas, com idade de milhares de anos. Porém, de que isso interessa para os planos de desenvolvimento vigentes? Neste caso, convencionalmente, o “interesse público” é levantado para justificar a dimensão dos estragos, pois é dado valor imprescindível à energia e não à biodiversidade, como ficou evidente em Barra Grande.


 



Nessa lógica, há mais de um ano, a FATMA, órgão ambiental de Santa Catarina, foi obrigada a emitir parecer favorável em relação à hidrelétrica de Pai Querê, com base em EIA/RIMA da ENGEVIX, a mesma empresa que perdeu o cadastramento pelo IBAMA e recebeu uma multa de 10 milhões de reais devido ao caso Barra Grande. A justificativa do parecer favorável do governo daquele estado é que a obra poderia criar muitos empregos na região. Simultaneamente, para evitar maiores empecilhos ambientais, foi construída uma “solução mágica”, veiculada por uma publicação luxuosa paga pelas empresas, sem maior embasamento científico, proclamando a possibilidade de uma fácil compensação ambiental às hidrelétricas por meio do estabelecimento de um novo “Corredor Ecológico” de reflorestamento. Entretanto, os promotores da referida solução provavelmente esqueceram que se fosse possível o restabelecimento da floresta e da restauração do corredor existente, tal processo levaria, pelo menos, mais de um século para árvores como a araucária, a grápia, o louro-pardo, entre outras, atingissem o porte e a significância do germoplasma atual das florestas centenárias atuais. Como poderiam garantir que a biodiversidade manter-se-ia igual ou até melhor, se o avanço das atividades agrícolas e florestais continua depauperando a região, nas porções não sujeitas ao alagamento?


 



Ainda com relação ao aspecto de grande patrimônio representado pelo rio Pelotas-Uruguai, nas chamadas Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade do IBAMA, até o momento, os órgãos públicos federais e estaduais não conseguiram avaliar o estrago conjunto que transformaria, definitivamente, o rio Pelotas em uma escadaria de lagos. Restariam ambientes profundamente empobrecidos em sua biodiversidade, e com centenas de espécies de organismos aquáticos e anfíbios de corredeiras, incluídos na lista de espécies extintas ou em sério risco de ameaça de extinção. O alagamento das hidrelétricas de Itá, Machadinho e, recentemente, de Barra Grande, acabou com mais de 200 km de rios onde a natureza primária da floresta, com elementos altamente significativos, era quase totalmente desconhecida em razão da dificuldade de acesso humano em um vale muito íngreme. Desta forma, uma infinidade de habitats, como matas ciliares, corredeiras, paredões, cascatas e suas respectivas espécies vegetais e animais, pouco conhecidas e ameaçadas de extinção permaneciam ali, por um simples fato: o relevo íngreme do vale impediu a agricultura e manteve condições locais muito particulares para a continuidade do processo evolutivo que deu origem a uma biodiversidade única. Podemos verificar o grande significado ambiental da área prevista para o AHE de Pai Querê, quando vislumbramos a vegetação luxuriante das encostas rochosas e escarpadas do vale, na porção baixa do rio, com suas corredeiras, em seus límpidos cursos d'água laterais, entre tantos trechos importantes do rio Pelotas. As imagens de satélite deixam claro que a vegetação de maior porte encontra-se restrita ao vale onde paira o risco do alagamento (Figura 3). Com base na riqueza da biodiversidade local, esta área de “extrema prioridade” para a conservação pelo IBAMA é também considerada, não por acaso, como área Núcleo de remanescentes da Mata Atlântica. Tais argumentos levaram a FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental do RS) e o Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica a manifestarem-se contrários à implantação da Hidrelétrica de Barra Grande e de Pai Querê. O próprio EIA desta última, realizado pela empresa ENGEVIX, assinala para o vale do rio Pelotas a “existência do patrimônio florestal, ainda a salvo, e às áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade, sendo digna de nota a existência de um déficit de áreas protegidas nas ecorregiões afetadas e o baixo grau de conhecimento de seu patrimônio biótico”.


 



Torna-se fundamental que sejam levantados os aspectos altamente impactantes dos empreendimentos conjuntos das hidrelétricas de Itá, Machadinho, Barra Grande e os projetos de construção de Pai Querê e Passo da Cadeia, em especial os danos decorrentes da formação de três barreiras de origem antrópica à distribuição dos organismos, no vale do rio Pelotas-Uruguai: 1o) barreira vertical;  2o ) barreira leste-oeste e;  3o ) barreira norte-sul.


 


A primeira barreira, considerando todos os AHEs previstos, eliminaria espécies restritas a determinadas altitudes, na bacia do rio Pelotas-Uruguai, com a conseqüente alteração na biocenose, de forma quase que contínua, pois os reservatórios das hidrelétricas estão praticamente colados entre si. Ou seja, seriam afetados praticamente toda os cursos d´água da malha capilar original da bacia, na faixa de altura entre 400 e 900 m pelo efeito de  “vasos comunicantes”, com prejuízos incalculáveis e irreversíveis, quanto ao fluxo, à qualidade da água e à biodiversidade, eliminando provavelmente organismos, pouco conhecidos, que vivem exclusivamente nesta faixa altitudinal. A espécie Dyckia distchya uma das 107 espécies da Lista de espécies ameaçadas do IBAMA (Portaria n. 37 de 1992), que foi ignorada pelo IBAMA até o momento de emitir a LO (Licença de Operação), em Barra Grande, provavelmente não ocorra em faixas acima de 700 ou 800 m. Nos estudos que resultam nos EIA/RIMAs desses empreendimentos, tais aspectos não são, em geral, mencionados. Temos vários peixes que estariam nestas condições, onde a faixa de temperatura da água depende da faixa de altura onde ocorrem os cursos d'água.


 



No que toca à barreira de migração leste-oeste, será interrompido o fluxo principal de organismos aquáticos como peixes e outros grupos terrestres, vegetais e animais, que se utilizam do rio ou de suas margens como um corredor. Os projetos mantêm ínfimos um ou dois quilômetros de trecho de rio original entre as mais de uma centena de quilômetros de cada reservatório. Os rios correntes transformados em lagos, com profunda alteração ambiental, já são realidades nas três hidrelétricas abaixo da possível Pai Querê. Segundo pesquisadores do Laboratório de Ictiologia do Departamento de Zoologia da UFRGS, existem dezenas de espécies de peixes endêmicos adaptados a rios límpidos de águas correntes nesta zona do Planalto das Araucárias e outros tantos peixes migratórios que dependem de águas correntes, livres de represas para sua sobrevivência. Como contemplar a necessidade de pelo menos 110 quilômetros para a desova de dourados e outros peixes quase extintos pelos barramentos? Segundo a ictióloga Lisiane Rahn, da Universidade de Maringá, os ovos de dourados e de outros peixes dependem de águas correntes destes rios para sobreviver, caso contrário afundam e morrem. Para os vertebrados terrestres, como poderia ser mantida a margem obrigatória de 100 m de APP (Área de Preservação Permanente) como um corredor se, atualmente, os empreendimentos garantem somente 30 m? Como restabelecer ambientes com conectividade e com restauração ambiental, nas cotas mais altas, não sujeitas à inundação, se estas estão profundamente transformadas pela agricultura? Quantas décadas levariam para uma possível recuperação da mata ciliar? O ex-secretário da SEMA-RS, Adilson Troca, com base em estudos de empresas e da FATMA, também destacou como fator positivo o “Novo Corredor Ecológico” do rio Pelotas-Uruguai. Tal corredor, nas margens das barragens, seria um arremedo, considerando-se o desconhecimento sobre a biota, e sobre a enorme riqueza de endemismos no vale encaixado do rio Pelotas, recentemente destacados como no caso da sonegação da ocorrência da bromélia-das-pedras (Dyckia distachya). Serviria muito mais para objetivos propagandísticos do que para medidas sérias que mudassem a triste realidade da gestão ambiental brasileira, capenga e cheia de vícios. Se os responsáveis pelos empreendimentos nem ao menos providenciam a manutenção da faixa de preservação permanente de 100 m, obrigatória por lei, o que esperar depois do tal corredor? O próprio IBAMA justifica a diminuição da faixa legal, pois alega que isso geraria maiores custos de indenização e problemas sociais.


 



A extensa barreira norte–sul significa o impedimento do deslocamento de animais entre as margens dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Perde-se um rio mais ou menos estreito e, muitas vezes, raso e transponível pela fauna em um lago de um ou mais quilômetros de largura. Muitas espécies que constam em listas de ameaçadas de extinção, destacando-se o puma e o porco-do-mato, estão sendo afetadas. Segundo relatos e evidencias locais, estes animais seriam bons nadadores e freqüentemente cruzariam o rio Pelotas. Ocorre que a justaposição dos reservatórios das atuais hidrelétricas de Itá, Machadinho e Barra Grande, e dos possíveis AHE de Pai Querê e Passo da Cadeia, praticamente interrompe a migração atualmente existente de norte para sul. Esta maior separação entre as margens em centenas de quilômetros, que ocorrerá na quase totalidade dos trechos do rio entre as cinco hidrelétricas, em cadeia, impedirá o fluxo gênico das espécies de vertebrados terrestres, entre os dois estados. Como resultado, surgirá maior fragmentação dos ecossistemas remanescentes e maior confinamento e depauperamento genético, pelo fato das endogamias populacionais promoverem maior chance do surgimento de caracteres deletérios, principalmente nesses vertebrados. Esse empobrecimento genético já ocorre pela destruição atual dos habitats e terá incremento se construídas as hidrelétricas propostas. Tal impacto irreversível é de grande magnitude. Mesmo assim, a despeito das evidências acima expostas, a ENGEVIX, em seu estudo de viabilidade técnica e ambiental, realizado em 2001, caracterizou a alteração do meio aquático pela futura hidrelétrica de Pai Querê como de pequena magnitude e a remoção das florestas originais (3.940 hectares) (Tabela 1) e de seus habitats como de média magnitude. Provavelmente, se os consultores ambientais contratados pelas empresas tivessem colocado como de alta magnitude, como era seria o caso, perderiam os contratos com as produtoras de energia hidrelétrica.


 



Sobre o caráter de refúgio atual da biodiversidade no vale do rio Pelotas-Uruguai, em especial na área de Pai Querê, cabe lembrar que as condições ambientais das áreas acima das cotas de inundação estão muito mais comprometidas do que aquelas do vale a ser inundado. No restante dos campos do Planalto das Araucárias, em geral formados por terrenos suavemente ondulados ou planos, a destruição continua acentuada pela agricultura e silvicultura em grande escala, resultando em um cenário atual profundamente entristecedor (Figura 6). Crescem as extensas monoculturas de Pinus. Avolumam-se extensas cortinas de macieiras. Expandem-se os batatais e campos artificiais de pastagem, através de culturas que utilizam de altas doses de insumos agrícolas, principalmente agrotóxicos. O êxodo rural também cresce. Os tradicionais proprietários, descapitalizados e sem incentivos para uma agropecuária sustentável do ponto de vista econômico e ambiental, acabam vendendo ou arrendando suas terras às grandes empresas. A pecuária, com fortes raízes e identidade cultural, realizada há três séculos, e com baixo dano à paisagem e à biodiversidade, vai perdendo espaço para atividades mais impactantes. Vão desaparecendo, assim, os campos nativos, a vida tradicional do ribeirinho e do gaúcho. Os seculares muros de pedra (taipas) dos caminhos antigos e da separação das sesmarias, principalmente na antiga rota dos tropeiros, vão sendo derrubados para dar lugar à agricultura mecanizada, principalmente em Vacaria e Bom Jesus. Do ponto de vista biológico, compromete-se também a sobrevivência de mais de 1000 espécies vegetais e outros milhares de animais que ocorrem na região dos Campos de Cima da Serra, conforme estimativas da professora Ilsi Boldini e demais pesquisadores da UFRGS, envolvidos nos estudos da biodiversidade nos campos sulinos do Planalto das Araucárias. Desta maneira, torna-se evidenciado que as áreas de maior relevância na região, em termos de biodiversidade, permanecem confinadas aos vales relativamente protegidos dos rios da bacia do rio Pelotas-Uruguai, infelizmente, agora, sob o dano parcial das hidrelétricas existentes e potencial dos projetos em licenciamento.


 



Diante do quadro grave e complexo que envolve o impacto dessas hidrelétricas, podemos caracterizar a avalanche atual desses empreendimentos como um desastre incalculável do ponto de vista ambiental, em especial da biodiversidade e da paisagem do vale do rio Pelotas-Uruguai.


 



Reiteramos o papel estratégico de nossa biodiversidade, em especial aquela encontrada no vale do rio Pelotas, onde, não raro, são encontradas espécies nativas, alvo também de biopirataria como a espinheira-santa (Japão), goiabeira-da-serra (Nova-Zelândia), a petúnia (Japão), a jararaca (EUA), o jaborandi (Alemanha), entre muitas, com a perda de muitos milhões de dólares anuais para os países estrangeiros. Onde estão os planos de proteção a estas espécies? As medidas do IBAMA, quando do licenciamento de Barra Grande, não mencionaram a maioria destas espécies. Somente foi solicitado o resgate e a manutenção de parte do germoplasma de 13 espécies, a quase totalidade árvores.


 



No que concerne às espécies endêmicas, é necessário que sejam inventariados os peixes exclusivos do vale do rio Pelotas-Uruguai e quantos estão desaparecendo ou em estado de ameaça, pois dependem das águas límpidas e correntes que ocorrem na região. No tocante à flora, quantas espécies de reófitas (plantas de beira de cursos d'água), endêmicas e ameaçadas de rios estariam desaparecendo? Como estarão as populações de Dyckia distachya, Zephyranthes flava, Collaea sp., Calliandra parviflora, Cuphea sp., sendo estas plantas, nestas condições, e exclusivas dos corpos d´água do rio Pelotas-Uruguai?


 


 


Especial ênfase deve ser dada a Araucaria angustifolia, incluída em nas listas de espécies ameaçadas da IUCN e de vários estados brasileiros. Quando de nossa excursão à área prevista para alagamento em Pai Querê, próximo à foz do rio dos Touros, em agosto de 2005, o doutorando em Ecologia da UFRGS, Juliano Morales de Oliveira teve a oportunidade de constatar a idade de 130 anos para uma árvore de porte médio, por meio de equipamento dendrocronológico (Figura 7). Esta foi uma pequena amostra. Outros indivíduos de maior porte são comuns na área prevista para o alagamento de Pai Querê. As araucárias formam grandes adensamentos, entretanto ameaçados e sem presença em UCs nos municípios da área de influência direta desse empreendimento. As populações sofrem um processo de perda de seu patrimônio genético pela redução acentuada de suas matas e pelo extrativismo ilegal de madeira da espécie. O dano recente maior foi justamente nos milhares de hectares de floresta que ficaram embaixo de Barra Grande. Pouco se sabe como está a regeneração das matas com araucária no sul do Brasil. Quantas dezenas ou centenas de anos para que esta e outras espécies arbóreas atinjam a idade daqueles milhões de árvores que sucumbiram em Barra Grande e poderão sucumbir em Pai Querê e Passo da Cadeia?


 



Para finalizar, todos estes aspectos apresentados, longe de abarcarem o universo de problemas ambientais gerados pelas hidrelétricas, devem ser permeados pelo diálogo necessário entre os órgãos ambientais de âmbito federal e estadual, Ministério Público, demais setores como justiça, universidades, comitês de bacia e a sociedade brasileira. Sem a promoção de intenso debate entre os setores intimamente envolvidos e a sociedade, a situação tenderá a se agravar, de maneira irreversível e o processo de extinção na região será algo concretamente assustador.


Considerando que no projeto da hidrelétrica de Pai Querê, onde teríamos, segundo a ENGEVIX, uma extensão de 3.940 hectares de florestas (64% da área alagável) e outros milhares de hectares de campos destruídos, e reconhecendo a estratégica presença de seus ecossistemas remanescentes na manutenção da biodiversidade, em escalas local, regional e continental, clamamos aos órgãos ambientais e à Justiça brasileira para que:


 


1) sejam tomadas providências, de forma urgente, no sentido de se averiguar o processo perverso que se mantêm em curso no caso dos impactos ambientais, abrindo a caixa-preta do licenciamento ambiental, incorporando cada vez mais, a análise conjunta e participativa, com relação à construção das grandes hidrelétricas do rio Pelotas-Uruguai;


 



2) seja promovido um estudo para compensar, ao máximo, o dano ambiental de Barra Grande, pela aquisição obrigatória, já destacada no TC de Barra Grande, dos 5.740 hectares de floresta, em condições mais semelhantes às que se perderam, à montante deste empreendimento, ou seja, nas ricas áreas onde está em curso o licenciamento da hidrelétrica de Pai Querê, por meio de uma Unidade de Conservação (UC) a ser incluída no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), com a mesma extensão e nas mesmas condições, rechaçando-se qualquer outra opção que não seja na bacia, como nas propostas inadequadas de aquisição de áreas em Parques Nacionais do IBAMA, fora do âmbito ecológico local;


 



3) que sejam possibilitadas análises mais isentas, do somatório de impactos da série de empreendimentos no rio Pelotas, incluído estudos sobre as espécies endêmicas da região.


 


 


*  Paulo Brack é Professor do Departamento de Botânica da UFRGS, doutor em Ecologia e mestre em Botânica, tendo participado em equipes de consultoria em dezenas de estudos de impacto ambiental no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.