China: bicicleta ainda é principal meio de locomoção
A bicicleta já não é o único ícone de um país que se moderniza. Apesar da transformação, as duas rodas continuam a ser o transporte por excelência na República Popular da China e em circulação existem ainda cerca de 500 milhões de bicicletas
Ma
Publicado 25/03/2008 12:06
Há coisas que nunca se esquecem e pedalar uma bicicleta é uma delas. Com o desenvolvimento econômico da China, o número de carros nas cidades tem vindo a aumentar, mas a bicicleta continua a dominar as avenidas e estradas da China.
Em português chamavam-lhe “pasteleiras”. Diz-se que o nome vinha de serem bicicletas lentas e pesadas. Mas, na China, a dificuldade de pedalar uma “pasteleira” era também a mestria de conduzir as duas rodas mais famosas do país — a Flying Pigeon (Pombo Voador). Originárias da cidade costeira de Tianjin, as primeiras datam do ano de 1950 e hoje só muito raramente se encontra um exemplar original.
“Já não temos para venda”, diz o empregado numa loja de Pequim. “Só os mais velhos é que ainda pedalam essas bicicletas antigas”, continua o rapaz que vende os mais recentes modelos da marca Giant. Entre a oferta do que há na loja, destacam-se as cores vivas e alguns dos exemplares mais recentes de bicicletas com rodas mais pequenas. “O peso e o design tornaram-se condições essenciais na escolha”, explica o vendedor.
O desenvolvimento dos últimos anos tem vindo a modificar a aparência de Pequim que se caraterizava pelos bairros antigos chamados de hutongs. Mas se as novas construções de arranha-céus são agora o que mais salta à vista, é ainda nos hutongs que existem, que se encontra o espírito daquela que foi a capital imperial desde o século 15. E para entrar nestes cantos escondidos da cidade nada melhor que as duas rodas.
De ruas planas, a capital chinesa ainda acorda todos os dias com os primeiros ciclistas a pedalar em direção aos seus trabalhos. Ao amanhecer são as bicicletas que definem o trânsito na cidade. E entre os novos modelos, as velhas “pasteleiras” e as bicicletas com atrelados, as ruas simétricas preenchem-se ao som dos pedais.
Uma questão de personalidade
“As bicicletas têm as suas almas e vida”. A frase vem no livro do fotógrafo chinês Wang Wenluan com o título “Uma Vida com as Bicicletas”. Num trabalho fotográfico de vários anos, Wang Wenluan retrata bicicletas de todo o mundo, embora inspirado pelo seu país Natal – a China.
A recordar desde o dia em que pela primeira vez conseguiu o equilíbrio num selim até ao dia em que comprou a primeira Flying Pigeon, o fotógrafo fala por imagens do mundo das duas rodas com a célebre mensagem “uma vez que consegues pedalar nunca mais te esqueces”. E é esta também a idéia que continua a inspirar milhões de pessoas por todo o país, onde muitos dizem que já se nasce a pedalar.
Wang Wenluan expôs o seu trabalho em várias galerias por todo o país. A vida das bicicletas faz parte da vida da China e, pela naturalidade de ser um objeto presente na casa de todas as famílias, há quem nem esteja consciente da sua importância. Até ao dia em que faz falta.
Relembra a infância e conta que, no dia em que toda a Nação prestava homenagem ao presidente Mao que tinha falecido, se esqueceu de colocar o cadeado na bicicleta que a mãe lhe tinha emprestado. O roubo da bicicleta custou-lhe um peso na consciência durante muito tempo ao ver a mãe acordar duas horas mais cedo para ir trabalhar. Pequenas histórias da memória de alguém que de tanto olhar o mesmo meio de transporte, decidiu eternizá-lo em fotografia.
Entre todos que as utilizam para levar os jornais, garrafões de água, ou até mobiliário atrelado, entre muitas outras coisas, há uma história de vida. Da bicicleta e da pessoa.
Na capital, as esquinas das ruas mais antigas continuam a ser os melhores locais para encontrar quem conserte bicicletas. Rodas furadas, correntes que saltam ou se partem ou, simplesmente selins fora do lugar, enchem os cantinhos improvisados de loja onde, nos intervalos do trabalho, os mecânicos se sentam a jogar mahjong com os vizinhos. Sem segredos aparentes, as duas rodas ocupam a vida destes senhores que raramente se conheceram a fazer outra coisa. Contam-se histórias entre o passado e o futuro das duas rodas.
“Para nós isto não é uma forma de exercício, mas um meio de transporte”, afirma um velho senhor sentado ao lado da banca do amigo mecânico.
Ninguém pensa que a cultura das bicicletas se vai perder na China, mas a comodidade de um carro começa a convencer muitos que optam pelas quatro rodas. A opinião é geral, “é mais conveniente”. Porém, ao mesmo tempo que o conforto do carro já é possível para uma grande parte das famílias de classe média em Pequim, o problema do estacionamento cresce paralelamente. Onde antes existiam ciclovias alinham-se hoje viaturas vigiadas pelos seguranças da rua. E, à semelhança de muitas capitais modernas, começa a haver mais carros que espaço, com o preço do estacionamento a aumentar.
Para quem ainda segue a pedalar, o aumento do trânsito em Pequim torna as curvas mais perigosas e apertadas. No entanto, a cidade continua a estar imaginada para a maioria que são as bicicletas. Mesmo com a velocidade cada vez mais acelerada da vida moderna, nas horas de ponta os carros passam horas no anda-pára enquanto que, ao lado, aparentemente devagarinho, as bicicletas ultrapassam todos.
Oficialmente há hoje três milhões de carros em Pequim. Não estando tão contabilizadas, ninguém adianta números certos sobre as duas rodas. Por um lado, porque não exigem registo ou matrícula e, por outro, porque são parte da herança histórica da capital quando a maior parte dos carros que circulavam eram apenas táxis ou os carros do governo. Crê-se que em todo o país circulem hoje 500 milhões de bicicletas, o que representa quase metade da população do país.
Mas o trânsito problemático em cidades como Pequim deve-se aos carros. “Durante os Jogos Olímpicos o trânsito vai diminuir”, assegura um taxista. A contar com o verão do próximo ano, o município de Pequim já anunciou a diminuição do número de carros para descongestionar a cidade e diminuir a poluição. Ninguém duvida da grandiosidade do evento que está a ser preparado desde 2002, quando Pequim foi escolhida como cidade-anfitriã.
Devolver a cidade às bicicletas e fazer dos Jogos Olímpicos os mais ecológicos possível são idéias para o cada vez mais próximo verão de 2008. Mas à medida que a riqueza aumenta, a compra de carros também cresce e não se sabe ainda qual vai ser a cooperação dos novos condutores. Atualmente, por dia há 1.000 carros novos a entrar no trânsito da capital.
Para os mais jovens, a comodidade do carro não se pode comparar ao esforço dos mais velhos que pedalam dezenas de quilômetros por dia. Só que entre a nova geração com poder de compra, há igualmente uma consciência ecológica sobre a vantagem de pedalar. Para muitos, recuperar a bicicleta enquanto meio de transporte mais do que manter um ícone cultural pode ser uma forma de melhorar o ambiente da cidade.
Um legado maoísta
Nostálgicos de uma China que não conheceram, muitos estrangeiros optam por comprar bicicletas antigas a que chamam “bicicletas do tempo do presidente Mao Tse-tung”. Mas a expressão não convence ninguém em chinês. “As bicicletas daquela época eram as Flying Pigeon e hoje quase ninguém tem”, diz um comerciante que aluga bicicletas ao dia.
O tema puxa sempre mais gente à conversa que falam das histórias das duas rodas na sua vida. “Era muito importante quando conseguíamos ter uma bicicleta porque era a melhor forma de transporte e a mais barata”.
A fábrica da Flying Pigeon em Tianjin continua a apostar na marca que eternizou. Mas porque as “pasteleiras” já não são o que o mercado procura, o grupo econômico optou por modelos modernos. Como um nome de referência no mercado, as iniciais FP (de Flying Pigeon) continuam a valer por si só e a exportação já chega a 50 países diferentes.
An Xiao é um jovem de 28 anos que constrói as suas bicicletas. “Faço-o para competição”, adianta. Participante em corridas organizadas por grupos de amigos ao fim-de-semana, An Xiao conhece todas as montanhas à volta de Pequim. Começou a pedalar muito novo e ainda hoje confessa que “a liberdade de ser eu a guiar-me não se compara com o esforço de andar de autocarro”.
Defensor da velocidade nas montanhas, o jovem que sonha um dia ver ao vivo o Tour de France, comenta que pedalar na cidade exige muito mais cuidado. Mas, como muitos outros jovens, concorda que o carro é mais cômodo. Para ele, a expressão da “bicicleta do tempo do presidente Mao” leva a um sorriso. Nascido no final dos anos 70, diz ainda lembrar-se de como pedalavam as pessoas da sua cidade na província de Hebei nos anos 80. “Agora vemos bicicletas modernas e muitas marcas estrangeiras”, continua.
De fato, as bicicletas “modernas” são cada vez mais comuns e muitos chineses renderam-se à era das duas rodas elétricas. A funcionar com um motor movido a eletricidade, as novas bicicletas poupam metade do esforço a quem as pedala. Com valores que vão dos 700 renminbi (aproximadamente R$ 150) até aos milhares, as bicicletas elétricas assemelham-se às motorizadas com a vantagem de não consumir gasolina.
An Xiao, que concorda com a idéia de eternizar as duas rodas num Museu, considera que as elétricas ainda são uma minoria e, mesmo sendo um luxo para alguns, para ele “perde-se muito do sentimento do que é a bicicleta”.
Há coisas que nunca se esquecem
A primeira campanha chegou no ano passado. Uma associação promoveu uma semana para comemorar as bicicletas na capital. Acompanhada pela exposição de Wang Wenluan, a atividade desenvolvia-se na rua. Mais do que sensibilizar, pretendia alertar para a importância das duas rodas na vida moderna.
Para os velhos mecânicos, a cultura do carro pode desenvolver-se paralelamente sem ameaçar as bicicletas. Porém, para os ciclistas, os carros são o maior perigo. Tendo em vista a segurança de quem pedala, estabeleceu-se em Pequim que a bicicleta tem prioridade no trânsito.
No espaço onde se alugam bicicletas ao dia, o comerciante conta histórias enquanto enche uma roda. “As bicicletas hoje já não são moda e Pequim tornou-se muito grande para pedalar. Claro que o carro no inverno é muito mais fácil de conduzir”. Ao falarmos do trânsito e da poluição preocupante, “é normal que assim aconteça”.
A China descreve-se em bicicletas? O silêncio de um pensamento. “Sim, talvez seja o que mais se vê na rua”, nota, enquanto olha a avenida em frente da sua loja.
A pedalar desde há décadas, os chineses seguem ainda hoje ao ritmo dos pedais que acordam a cidade. Capazes de levar a família toda — pai, mãe e filho — em duas rodas, para quem sempre se conheceu a pedalar, o exercício físico fica reservado para outras atividades como, por exemplo, a patinagem ou tai-chi. Os ginásios pagos não apostam muito nas bicicletas ergométricas que não saem do lugar. “A maior parte não gosta de pedalar se não for em movimento”. An Xiao sublinha que é uma questão de praticar, mas prefere ir para as montanhas com a bicicleta de corrida feita por si.
O primeiro dia, a primeira bicicleta ou a primeira queda, parecem ser registos de toda a gente que ainda escolhe as duas rodas na China. Há coisas que nunca se esquecem.
A modernidade e o desenvolvimento não ameaçam a existência do meio de transporte, considerado como o mais caraterístico do país. “As cidades foram imaginadas para pedalar, mas muitos querem escolher uma forma mais fácil de mover-se” sustenta An Xiao.
Com mudanças ou elétricas, as bicicletas de Pequim moderno redefiniram-se. Ao recordar as velhas “pasteleiras”, há quem diga “aquelas eram mais bicicletas”. Mas os tempos são outros e mudaram-se as vontades. Só que apesar da aparência diferente, as duas rodas continuam a ser a melhor forma de sentir e conhecer a China. Um país a pedalar.
Fonte: Revista de Macau