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Análise: Ronaldo Fenômeno e os três travestis tristes

Lembram a sórdida história do garoto de programa que ameaçou divulgar na imprensa seus encontros numa sauna gay com Pedro Nava, o grande memorialista e poeta bissexto? Desesperado e chantageado, o escritor suicidou-se numa rua da orla carioca. Naquela

Desta vez, com o jogador Ronaldo Fenômeno, muito mais famoso do que o escritor, por motivos óbvios, a chantagem de um dos três tristes travestis – é preciso lembrar que dois deles receberam o pagamento e foram embora –  encontrou terreno fértil. Em poucos minutos, antes que a história fosse impressa, ela já estava no Youtube (este, sim, um Big Brother, que substitui no imaginário o triângulo do Deus me vê), na internet, no rádio, na televisão e, no dias que se seguiram, nos jornais e nas revistas, tendo sido capa de Veja.



A sexualidade de Ronaldo Fenômeno, como de resto a vida privada de qualquer pessoa, não poderia e nem deveria ser de interesse público. Mas as celebridades e seus assessores de imprensa vivem de expedientes que às vezes têm o fim de pôr a mídia a seu serviço, privatizando-a.



Foi assim quando o cantor e compositor Chico Buarque foi fotografado numa praia, também na Barra da Tijuca, trocando afagos com a mulher de um amigo dele. Daquela vez, assessores de imprensa e amigos tentaram impedir a publicação do flagrante indevido.



A modelo Daniela Cicarelli, ex-namorada de Ronaldo Fenômeno, também foi filmada na praia, fazendo o que pessoas sensatas fazem entre quadro paredes. E são tantas as suas ex-qualquer coisa que os que gostam de interpretar o comportamento humano à luz de lastros intelectuais mais ecléticos têm todo o direito de supor que ele procura nas mulheres o que elas não podem dar, mas os travestis, sim, como ocorre com os atacados pela síndrome de Don Juan, que se proclamam espadas, mas que provavelmente têm necessidade de anunciar o que não são.



Direito de imagem e vida privada



A pessoa pode namorar em paz nas praias, nas ruas ou nas praças? Tem o direito de imagem e não é lícito que a vida privada dos outros seja meio de lucro para terceiros, não propriamente desonestos, mas fronteiriços daqueles territórios onde imperam a falta de critérios e de discernimento editorial, aliados à falta de vergonha e do vale-tudo? A mídia tem de responder a essas questões.



Passo com freqüência na praça do Ó, na Barra da Tijuca. Aos domingos, pintores amadores fazem ali belas exposições. Durante o dia, mães e babás brincam com as crianças. Nenhuma dessas pessoas será notícia para a mídia, que, aliás, dá sua quota para que o público, fera ferida, queria cada vez mais sangue, seja o do casal suspeito da morte da filha, seja o da próxima vítima que a mídia escolher, substituindo o promotor, a defesa, o juiz!



À noite, tudo muda naquela praça. Prostitutas e prostitutos fazem ponto desde o começo da noite, todos os dias. Já os vi tranqüilos, como vendedores que esperam os primeiros clientes a quem vender a principal mercadoria de que dispõem: o próprio corpo. Não assaltam os carros, não os interceptam, ficam apenas esperando que alguns parem e os motoristas abram a porta em demanda da mercadoria.



Um dos motéis mais procurados para esses rápidos programas fica na mesma praça. É o Papillon,  borboleta em francês, título, aliás, de um livro de Henri Charrière, narrando sua estada em famosa prisão de segurança máxima da Guiana Francesa, transposto para o cinema, com Steeve McQueen no papel do protagonista. Foi naquelas imediações também que, há poucos meses, jovens de classe média bateram numa empregada doméstica que esperava o ônibus, de madrugada.       



Com tudo, porém, os brasileiros, especialmente os cariocas,  fazem graça. “Ronaldo não precisa de ortopedista; precisa de oculista”. “Ronaldo pegou três mulheres: André, Veido e Júnior”.



O filósofo francês Michel Foucault escreveu em História da Sexualidade: “Na Idade Média os corpos pavoneavam nos bordéis”.



Agora também, mas nas ruas! É como se apenas o físico, e às vezes somente o fisiológico, interesse. Comparem-se o minifúndio que a mídia reserva àquelas atividades que expressam nossa humanidade, como a cultura, a literatura, as artes, com o latifúndio reservado ao sexo e ao esporte.



* Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá.