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Belluzzo: Dinamismo e crise na economia global

Na segunda metade do século 20, a expansão mundial do capitalismo sob a hegemonia americana mudou a divisão internacional do trabalho e o esquema centro-periferia proposto pela hegemonia inglesa. Na Pax Britannica prevalecia a divisão clássica entre um

A economia continental norte-americana, desde o século 19, é simultaneamente grande produtora de manufaturas, matérias primas e alimentos. Assim, a sua hegemonia não se exercia – nem se exerce – mediante o comércio, mas, sim, pela expansão da grande empresa.



No segundo pós-guerra, é a expansão da grande empresa que promove a ampliação dos fluxos comerciais entre países. Na verdade, a primazia cabe às relações de comércio inter e intrafirmas. Este movimento primeiro envolve a Europa e a América Latina. Avança, mais tarde, para o Pacífico. Ao chegar à Ásia, altera profundamente a divisão internacional do trabalho: a região se torna produtora competitiva de manufaturas e importadora de matérias primas e alimentos.



Com a nova divisão internacional do trabalho facilitada pelo deslocamento de suas filiais, a economia nacional americana amplia o seu grau de abertura comercial e passa a gerar um déficit comercial crescente para acomodar a expansão “mercantilista” dos países asiáticos. Essa forma de articulação da economia global – produzida em grande parte pela transnacionalização da empresa americana – está na raiz da crescente liberalização financeira imposta pela potência hegemônica aos demais países a partir da década de 80.



Mas a história da economia mundial, desde meados dos anos 40, não pode ser contada sem a compreensão das peripécias do dólar em seu papel de moeda de faturamento nas transações internacionais e de ativo de reserva universal.



No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar conversível sustentou três processos simultâneos: 1) o déficit na conta de capitais, produto da expansão da grande empresa americana, garantiu o abastecimento da liquidez requerida para o crescimento do comércio mundial; 2) daí, a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão; e 3) a industrialização de muitos países da periferia, impulsionada pelo investimento produtivo direto em conjugação com políticas de desenvolvimento nacional.



Os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano levaram à breca o sistema de conversibilidade e taxas fixas de Bretton Woods, ao impor a desvinculação do dólar em relação ao ouro em 1971 e a introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973. A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em apuros a economia mundial.



A regeneração do papel do dólar como standard universal foi efetivada mediante uma elevação sem precedentes das taxas de juros, em 1979, nos EUA. O fortalecimento do dólar como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A força do dólar estimulou a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial, sobretudo na indústria manufatureira, e ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como o avanço da chamada globalização financeira.



Nestas condições, os EUA foram capazes de atrair capitais para os seus mercados e dar-se ao luxo de manter taxas de juros moderadas, fenômeno que se acentua nos anos 90, o que propiciou a emergência de fenômenos correlacionados: 1) a acumulação de reservas nos países asiáticos, como contrapartida da ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA; 2) a espantosa expansão do crédito e a inflação de ativos nas economias centrais. A farra culminou na crise dos mercados hipotecários, deflagrada na segunda metade de 2007.



A hegemonia americana e seu enorme mercado nacional ensejaram a constituição de um espaço econômico e monetário dinâmico e conflitivo entre os EUA, a Ásia e a Europa. A Ásia se torna formidável produtora e processadora de peças e componentes baratos (sem exclusão dos bens finais). Conforma-se ali uma mancha manufatureira, grande importadora de matérias primas e alimentos, que pulsa em torno da China, reintegrada ao circuito capitalista desde as reformas do final dos anos 70.



As relações de troca no comércio mundial deixam de inclinar-se a favor das manufaturas e contra os produtos primários. É no território dos asiáticos, de mão-de-obra barata, câmbio desvalorizado e abundância de investimento direto estrangeiro que se produzem as novas manufaturas. (Em um primeiro momento, a queda continuada nos preços da manufaturas empurra para baixo a inflação global. Na segunda rodada, a pressão da demanda dos emergentes sobre os recursos naturais joga para o alto o preço das commodities).



As teorias sobre ajustamentos (e desajustamentos) do balanço de pagamentos (monetaristas, keynesianas e novo-clássicas) não funcionam, assim como estão sob avaliação negativa as hipóteses convencionais sobre a movimentação de capitais. Há espanto e decepção nos círculos bem informados sobre a direção dos fluxos financeiros. Na visão ortodoxa, eles deveriam fluir dos países desenvolvidos para os mercados emergentes. Mas a multiplicação de fundos soberanos comprova que a realidade desqualifica essa hipótese.



Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de desequilíbrios mediante o “realinhamento” entre as moedas é problemático. A dita correção passa necessariamente por uma “redistribuição” de déficits e superávits entre as regiões envolvidas. Isto exigiria não só a forte reativação das fontes de crescimento domésticas na Europa e no Japão, como também a moderação das estratégias mercantilistas nos emergentes asiáticos. Mas, como Keynes havia previsto em seus escritos preparatórios da reunião de Bretton Woods, tal coordenação de políticas supõe um verdadeiro sistema monetário internacional, ou um sistema monetário verdadeiramente internacional.



* Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.



Fonte: Valor Econômico