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Francisco de Sales Vieira: que fazer com a questão fundiária

Nas últimas décadas, no estado de São Paulo houve clara preocupação com a problemática fundiária. A própria Constituição do Estado de São Paulo garante a identificação prévia de áreas e ajuizamento de ações discriminatórias, visando a separar as terras

A regularização fundiária do solo brasileiro é, ainda hoje, uma necessidade premente, sob pena de não se poder, com bom senso e espírito de justiça, concluir-se qualquer projeto de reforma agrária, uma vez que não se reforma o que não existe.


 


Sem regularidade fundiária não há como implementar um programa de reforma agrária capaz de resolver a situação daqueles que, sem acesso a terra, querem nela trabalhar, sonhando em jogar a semente que lhes proporcionará o progresso social e econômico.


 


Uma modalidade jurídica que só existe no Brasil — a ação discriminatória que define o domínio da terra — é um instrumento importante para avançar na questão. Ou seja, as ações discriminatórias são propostas pelo Estado com o objetivo de identificar o que são terras públicas e o que são terras particulares. Já as reivindicatórias são ajuizadas, para reaver a terra pública indevidamente em posse de um particular.


 


Cabe ao Estado arrecadar as terras públicas ocupadas irregularmente e destiná-las, como manda a Constituição, ao assentamento de trabalhadores rurais sem terra (em São Paulo, de acordo com a Lei Estadual 4.957, de 1985). É preciso identificar as terras devolutas para que possam ser destinadas.


 


O processo judicial da ação discriminatória é da competência da Justiça Federal, quando o autor for a União, e das varas da Fazenda Pública, quando o autor for o Estado. No caso da União (Decreto-Lei n.º 9.760, de 1946), o reconhecimento das posses legítimas é garantido, desde que não seja caracterizado latifúndio e dependendo do efetivo aproveitamento e morada do possuidor. A discriminação das terras devolutas no estado de São Paulo é disciplinada pelo Decreto n. 14.916, de 1945, em consonância com a legislação federal ulterior (Lei n. 6.383/1976).


 


É a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que atua na identificação e arrecadação das terras devolutas estaduais para dar-lhes o fim legalmente previsto — o que inclui entregá-las a particulares, legitimando a posse de ocupantes que preencham os requisitos legais e fiscalizar o uso dessas terras públicas, no tocante aos assentamentos fundiários agrícolas. O trabalho é feito em parceria com o Itesp.


 


A importância da ação discriminatória


 


O procedimento discriminatório é extenso. Num primeiro momento, envolve, além da instauração do processo, memorial descritivo, edital para apresentação de documentos, autuação dos documentos, declarações dos interessados, vistorias, diligência.


 


Após o pronunciamento dos interessados, e conseqüente julgamento, entra-se na fase do levantamento geodésico e demarcação das terras devolutas e só então começa o processo de registro das terras devolutas, com a instauração de processo de legitimação de posse ou arrecadação de áreas para implantação de Projetos de Assentamento pelo Itesp.


 


Com foco na região do Pontal, analisemos a legislação estadual pertinente a procedimentos para a discriminação de terras devolutas e regularização fundiária: é evidente o problema surgido com a adoção da discriminatória judicial — e não administrativa — morosa e de elevado custo financeiro e social.


 


Embora pioneiro na tarefa da discriminação de terras, com farta legislação, São Paulo patina no assunto, pois imprimiu, também de forma pioneira, o caráter judicial à discriminatória; as ações discriminatórias, na sua grande maioria datadas da década de 40, foram homologadas apenas na década de 90, gerando grandes problemas fundiários sobretudo na região oeste do estado, no Pontal.


 


Ali, apenas as terras do 13º Perímetro de Mirante do Paranapanema e do 20º Perímetro de Santo Anastácio tiveram ações discriminatórias julgadas e reconhecidas como particulares. As demais foram julgadas devolutas há décadas — ou nem foram documentadas. Então, o Estado não aceitou os títulos falsos, mas tampouco coibiu a prática abusiva reinante ou cuidou das terras que lhe pertenciam.


 


Grande parte de seu território é composto por terras devolutas ou ainda não discriminadas — provavelmente, devolutas. Grandes latifúndios estão nas mãos de poucas pessoas, que geram pouco emprego. O contraste entre latifundiários improdutivos ou com baixíssima produtividade e os trabalhadores em desamparo é muito grande.


 


O desemprego torna-se cada vez maior, com a crescente mecanização nas operações de colheita, embora a construção das hidrelétricas nos rios Paranapanema e Paraná tenha mantido inúmeros trabalhadores na região.


 


Desde o início de 1995, enormes acampamentos surgem à beira das rodovias. O noticiário vive registrando: os trabalhadores rurais sem terra invadem fazendas improdutivas ou de baixa produtividade, na sua maioria julgadas devolutas.


 


Nesse mesmo ano, o governo do estado propôs um plano de ação para o Pontal, com os seguintes objetivos: reintrodução de formas mais eficientes e sustentáveis de produção agropecuária, por meio de assentamentos; reinserção do Pontal como região de importância econômica, por meio de regularização fundiária e dinamização por ser mercado local e regional.


 


Objetiva também recuperação ambiental, recomposição florestal de áreas de preservação permanente, distensão social, gerando clima propício a um novo ciclo de desenvolvimento na região e promovendo convivência harmoniosa das terras regularizadas.


 


A eficiência da ação reivindicatória


 


O Plano previa três fases: Arrecadação de Áreas Devolutas e Assentamento, com diversas ações; Acordo nas Áreas Não Discriminadas (Decreto n.º 42.041/1997), em que o latifundiário faz acordo com o Estado cedendo parte da área para ter o restante regularizado em seu nome; Edição de Lei de Terras propõe ampla discussão com agentes sociais e políticos sobre o tema.


 


Sobre a questão do acordo (indenização) regulado pelo decreto citado, pleiteou-se 30% da área de cada imóvel — que foi concedida, na maioria dos casos, pela via jurídica. Instalaram-se assentamentos provisórios. Após exaustiva negociação, houve acordo entre o estado e os ocupantes.


 


A ação reivindicatória, ajuizada pela Procuradoria Geral do Estado, revelou-se instrumento apto para a regularização fundiária, pois, por meio dela, terras devolutas ocupadas irregularmente terão destinação econômica e social: assentamento de trabalhadores rurais sem terra ou com terras insuficientes para subsistência. No Pontal, essas áreas arrecadadas atendem a esses trabalhadores. Para a propositura da ação reivindicatória, a Procuradoria Geral do Estado conta com o Itesp, que providencia os documentos que comprovam a natureza da origem das terras, além de realizar os trabalhos técnicos necessários.


 


Um estudo do Itesp levantou e analisou, em outubro de 2003, os processos de ações discriminatórias ajuizadas em cada uma das regiões do Estado; muitos estão sem andamento por falta de demarcação das terras (execução da sentença); outros aguardam manifestação das partes e decisão judicial.


 


Precisamos lutar pela efetividade da discriminatória administrativa e o desembaraço judicial há inúmeros recursos dos latifundiários. Com a tmorosidade da via judicial, todos perdem: o poder público, que investe recursos financeiros; o Estado, que não consegue viabilizar seus projetos agrários e fundiários e tem sua arrecadação prejudicada; o contribuinte; os trabalhadores rurais.


 


Apesar da sensibilidade de alguns governantes, dos legisladores e de entidades civis, a morosidade judiciária persiste, dificultando projetos agrários e fundiários do governo estadual. A indefinição sobre a propriedade da terra exige, por parte do governo, ação que aponte definitivamente para a regularização fundiária em nosso Estado. É preciso rever a legislação federal e estadual para o surgimento de um projeto de lei.


 


* Francisco de Sales Vieira é graduado em Engenharia de Agrimensura pela Universidade Federal do Piauí, com mestrado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina. É analista de Desenvolvimento Agrário do Itesp