Gilberto Gil: 'Sou hacker. Um ministro hacker'
Aos 65 anos, o ministro da Cultura, cantor e compositor Gilberto Gil resolveu fazer de sua música um “manifesto político” pela democracia digital. Na faixa-título de seu novo CD, Banda Larga Cordel, a ser lançado amanhã, ele brada: “Banda larga m
Publicado 17/06/2008 19:47
“Sempre fui politizado, mas meu novo disco está muito influenciado pela função ministerial”, disse ele, em entrevista ao caderno “Link”, do jornal O Estado de S. Paulo. Criador do neologismo “bandalargar” (espalhar a banda larga), Gil se tornou uma espécie de garoto-propaganda e ativista do governo para assuntos tecnológicos.
Em 2005, fez dueto com o famoso ativista de software livre Richard Stallman em evento da ONU. Gil ficou ao violão enquanto Stallman desafinava: “Junte-se a nós e compartilhe o software. Você será livre. Você será hacker”.
Na Campus Party deste ano, o ministro acompanhou o instrumento digital ReacTable com falsetes de “u-hu” e roubou a cena do robô que abriria a megafesta nerd ao falar as palavras “conteúdo livre”. Já em 2004, foi ovacionado no Fórum de Software Livre, em Porto Alegre, ao cantar a canção Oslodum, que disponibilizou sob a licença Creative Commons.
O leque de assuntos hi-tech defendidos por Gil no governo é grande. Vai desde a equiparação dos games a status de cultura e a flexibilização dos direitos autorais à colaboração em rede. Mas ele admite dificuldades em tornar essas práticas realidade.
“São coisas que demoram, mas precisam ser feitas.” Até agora, ele diz, o que já se pode perceber na prática são os “pontos de cultura”. O programa consiste em distribuir câmeras e internet a pólos de cultura, que depois publicam a produção na rede.
Não é a primeira vez que Gil trata de tecnologia em suas músicas. Em 1969, já dizia que o “cérebro eletrônico faz tudo, faz quase tudo, mas ele é mudo”. Em 1974, questionava “o que vão fazer com as novas invenções”.
Em 1991, por conta das comunicações via satélite, constatou que “antes o mundo era pequeno, porque a Terra era grande. Hoje o mundo é muito grande, porque a Terra é pequena”. Já em 1996, lançou a música Pela Internet, que era cheia de termos internéticos como “gigabytes”, “infomaré” e “homepage”.
“Tenho fascínio por esse mundo das tecnologias”, diz. Isso não quer dizer que ele seja uma pessoa ultraconectada. Não tem iPod, câmera digital ou Orkut. Usa a internet de forma “moderada”. Mas joga Guitar Hero e fica o dia inteiro no celular. “Sou um entusiasta. Quero ser porta-voz desse movimento.”
Na entrevista a seguir, o ministro, o cantor e o pensador Gilberto Gil adianta os planos do governo para direitos autorais, diz que não “é necessário” liberar toda a sua obra para download e explica porque ainda lançará um CD, mesmo com a crise da indústria fonográfica.
Como começou essa relação do senhor com a tecnologia?
Eu tenho fascínio por esse mundo das tecnologias que substituem processos humanos. A tecnologia é uma extensão do homem. Tudo aquilo que o homem já pode transferir para a máquina ele transfere, criando com isso mais tempo para novas fantasias, expansões da inteligência. A máquina, por mais difícil e condicionadora que pareça ser, é libertadora. O homem se libera para outras coisas, para filosofar, para o pensamento religioso, afetivo.
Qual é a máquina mais sensacional para o senhor?
É o avião. Para mim o avião é o símbolo da grande máquina. É… Máquina de voar.
Com relação às questões que o sr. defende no ministério. No mundo todo, o problema de direitos autorais aumenta e muita gente está virando criminosa por baixar filmes e músicas. Isso será resolvido?
Tende a ser resolvido. A inclusão cada vez maior da sociedade no mundo da criminalidade nesse campo é uma coisa que já começa a ser incômoda para todo mundo. Tanto é que você vê a própria indústria fazer gestos no sentido de maior liberalidade. Por exemplo, as gravadoras, muitas delas, como a EMI, começaram agora a liberar arquivos de música sem DRM.
Mas é só um começo.
É um começo, são começos: a intensificação do uso justo, o fair use, que é a possibilidade de usos de fragmentos de obras de música e literatura; a disposição cada vez maior de artistas em compartilhar suas obras; o sucesso das licenças Creative Commons, que já estão chegando a quase 200 milhões.
Mas e a lei de direitos autorais, incluindo o Brasil, vai mudar?
Precisa mudar. Nós no âmbito do Ministério vamos propor em agosto a reforma da lei.
Como serão essas modificações? Liberar geral?
Não. São regulações. Liberar geral não existe, ao contrário. É preciso que haja leis, que haja regras, para estabelecer o consenso da sociedade no sentido do que é permitido e do que não é permitido.
Mas baixar música deve ser ilegal?
(Pausa) Há vários aspectos. A agilidade dos meios eletrônicos torna quase impossível impedir downloads. O que a indústria tem feito e o que os interesses econômicos a serem defendidos têm proposto é o híbrido, onde direitos de exploração comercial são preservados e certas liberdades começam a ser dadas.
Por exemplo, para modificar?
Sim. E mesmo para downloads. Se uma grande gravadora como a EMI disponibiliza sem DRM uma quantidade enorme de músicas, os downloads aumentam. Você compra, mas passa de graça para outro.
O senhor baixa música?
Não. Os meus filhos fazem isso. É falta de hábito.
Mas tem algo contra isso?
Não.
E se alguém baixasse um trabalho seu, o senhor processaria?
Não creio que eu me dispusesse a tanto… (risos).
O sr. é defensor do Creative Commons, mas já disse que não irá liberar todas as músicas do novo disco por não querer se “embebedar”…
Não acho que tem que liberar tudo. Algumas vão sendo liberadas para usos não-comerciais, compartilhamentos, recombinações. Até para saber a quem vai interessar, por exemplo, usá-las para recombinações…
O seu ministério encara o game como cultura. Por quê?
Porque é cultura. Primeiro é uma forma de expressão, uma manifestação muito difundida entre jovens e uma fonte de criação. Tem a fantasia, a capacidade de narrativas variadas, a manifestação teatral, de desenho, de animação.
O sr. já jogou?
Eu jogo, de vez em quando, esse jogo de música…
O Guitar Hero?
É, o Guitar Hero. Meu filho José (de 17 anos) joga e, de vez em quando, me põe a guitarra na mão. Fico uns 10, 15 minutos.
E saber tocar guitarra ajuda?
Sem dúvida alguma. Mais ainda: aquilo também ajuda você a saber tocar mais guitarra
Na sua turnê, o sr. diz ao público que use celulares para filmar e publicar onde quiser. Muitos artistas não permitem. É um manifesto?
Sim, quer dizer: é preciso difundir as tecnologias, democratizá-las, politizá-las, discutir que benefícios prestam, que benefícios não prestam, para que servem, para que não servem.Mais ainda: é preciso que o domínio dessas técnicas saia das mãos de um pequeno grupo, de uma elite, e se popularize. Tem de ser para um número cada vez maior de pessoass.
Os governos sabem disso?
Estão começando a saber. Estão começando a ter políticas que estimulem os investimentos privados e públicos nesse setor, a ter política de banda larga…
O que faz um ministro da Cultura e um compositor de sucesso ser defensor do software livre?
Software é cultura. É evidente. Um dos meios de concentração de conhecimento e de linguagem, de difusão (colaborativa) de linguagem, as várias plataformas que abrigam possibilidades enormes de comunicação, tudo isso é cultura.
Nesses cinco anos e meio de ministério, quais políticas na área de tecnologia já vingaram?
A distribuição de kits digitais para os pontos de cultura, que possibilita a entrada em rede. Depois, nesses pontos, usam-se máquinas de gravação e de filmagem para as comunidades documentarem o que quiserem e têm a capacidade de postar, de trabalhar em rede.
Políticas de cultura digital, mudar a lei de direitos autorais… Isso tudo demora?
Demora, mas precisa ser feito. A lei de direitos autorais nós vamos propor agora.
Com relação a seu disco novo, porque chamá-lo de banda larga e lançá-lo primeiro na rede (está no ar para ser ouvido desde maio)?
É um manifesto político também. É dizer: eu sou a favor de que essas coisas se difundam, se espalhem, tenham um alcance democrático. E eu quero ser porta-voz desse sentimento através da minha voz.
É o ministro influenciando o artista?
Sim. Sempre fui politizado, mas sem dúvida estou muito estimulado pela função ministerial.
A indústria fonográfica está em crise e cada vez mais a música salta para a internet. Por que o senhor ainda lança CD?
O disco vai desaparecer. Mas vai ser ao longo dos próximos 20 anos, quando todos tiverem computador, quando as televisões todas forem terminais de convergência tecnológica múltipla, quando os celulares forem terminais também de coisas tecnológicas. Enfim, coisas baratas. Um celular hoje é barato. Está se chegando a cento e tantos milhões de celulares no Brasil. No mundo inteiro já são alguns bilhões de celulares. Isso vai fazer com que as pessoas admitam (o fim do CD).
No futuro a música vai ter algum valor comercial? Com show o artista ganha. Mas, na música, o público baixa cada vez mais. As pessoas vão querer pagar para ter uma coisa que já conseguem de graça?
Vão. Até porque várias marcas comerciais e industriais vão querer ter seus processos de marketing feitos através da música. A Pepsi, por exemplo, está dando música de graça, associando à sua marca e oferecendo uma quantidade de downloads gratuitos para as pessoas. Outras marcas estão fazendo isso também. Ou seja, compra a música e dá de graça para o público. É uma das formas futuras. A Coca-Cola, por exemplo, ou quaisquer outras marcas, oferecem um milhão de downloads (risos). Um baixa e vai passando para outro.
O sociólogo Sérgio Amadeu o chama de “ministro hacker”. O que acha disso?
Acho bom. Ótimo. Quem são os hackers? São os propiciadores de viabilizações, viabilizam possibilidades novas, através de técnicas e tecnologias. E eu me vejo como um hacker. Sou um ministro hacker. Um cantor hacker.
Uma pergunta que sempre lhe fazem: já há uma data fechada para o sr. sair do ministério?
Não tem data ainda, não.
Mas é neste ano?
Não é neste ano, não.
Da Redação, com informações do O Estado de S. Paulo