Para que servem as urnas na União Européia?
A repercussão da decisão tomada pela maioria dos eleitores na República da Irlanda, em não adotar o Tratado de Lisboa, que substituiu a também rechaçada Constituição Européia, revela o cerne da propalada democracia européia: 'só serve se está a nosso f
Publicado 17/06/2008 14:41
Em 2005, os povos da França e da Holanda votaram contra a instalação da Constituição Européia, um calhamaço de mais de seiscentas páginas que aboliria direitos dos trabalhadores e abriria o espaço para que a Europa se tornasse — ainda mais — uma federação de Estados movida unicamente pelos interesses financeiros do grande capital.
Tanto pela esquerda quanto pela direita, o calhamaço foi repudiado. O golpe foi sentido pela classe dirigente do continente. O chamado ''Tratado de Lisboa'', assinado na capital portuguesa, no dia 13 de dezembro de 2007, pelos 27 chefes de Estado e governo da União Européia, é um 'resumão' da mal-fadada constituição.
Ele pressupõe a federalização da UE e a criação de um super-estado europeu, cujas instituições não eleitas democraticamente seriam dominadas por uma direção escolhida pelos países ricos e de acordo com os interesses das suas multinacionais.
A fervura resultante da recusa popular na Irlanda já começou a fazer estragos na derrotada governança européia. Os dirigentes acusam os irlandeses de terem ''metido a Europa'' em um ''beco sem saída'' e agora querem que o governo Irlandês solucione o ''problema'', já que para a adoção do acordo se exige a unanimidade entre os 27 integrantes do grupo.
O secretário de Estado da Espanha, Diego López Garrido, defende a idéia de alijar a Irlanda do processo, uma vez que, segundo eles, não existem mais possibilidades de obter um consenso ainda maior que o obtido no falido Tratado de Lisboa.
O presidente espanhol, José Luís Rodríguez Zapatero, chegou a afirmar que se deve ''respeitar ''a decisão da maioria dos europeus de querer mais Europa''. O interessante é que o tal Tratado foi produto de negociação entre chefes de Estado, que determinaram evitar a consulta popular para, óbvio, chegarem à aprovação via ratificação de suas dóceis assembléias e parlamentos.
O enfurecido Zapatero ainda quis retirar do povo irlandês seu direito de expressar nas urnas o descontentamento com o Tratado — que só foi obtido por meio de duras negociações entre governantes —, afirmando que isso ''é um freio ao projeto europeu'' e pedindo aos governantes da Irlanda que solucionem o impasse.
Como, Zapatero não diz, mas é óbvio que não vai ser por meio de mais um referendo.
Suas frases podem ser interpretadas como reação tardia à experiência de repúdio popular por meio dos referendos da França e da Holanda. Os governos europeus recorreram então à aprovação via parlamento, um ambiente muito mais favorável às propostas neoliberais.
No entanto, não contavam com o repúdio irlandês. O país é o único do conjunto de 27 nações da UE cuja constituição estabelece que qualquer mudança de caráter nacional nas suas leis tenha de ser realizada por meio de referendo.
O certo é que, para o governo espanhol, as urnas valem menos que uma castanhola, visto que Zapatero pretende dar seqüência ao projeto de ratificação parlamentar do Tratado, explodido pela vontade popular irlandesa.
Na tarde de segunda-feira, o ministro de Relações Exteriores da Eslovênia, Dimitrij Rupel, adiantou-se e já prometeu dar continuidade ao processo parlamentar de ratificação do Tratado.
Depois de um acalorado debate em Luxemburgo, os ministros de Relações Exteriores de quase todos os nove países europeus que ainda não votaram o tratado confirmaram que o farão segundo o calendário já previsto.
Para eles, a ratificação por parte dos outros 26 membros da UE poderia atropelar a vontade dos cidadãos irlandeses e forçar a Irlanda a convocar um novo referendo — até que a proposta do ''sim'' finalmente vença — ou buscar uma saída ''legal'' que permitisse o parlamento daquele país driblar a repúdia popular ao Tratado.
Mesmo assim, quando perguntado sobre a possibilidade de um segundo referendo, o ministro irlandês do Exterior, Micheal Martin, afirmou que seu governo ainda não considerou qualquer alternativa.
Ao mesmo tempo, defendeu que ''as decisões populares devem ser respeitadas'' e que ''não existem soluções rápidas''.
Martin disse que a Irlanda precisa de ''tempo'' para analisar as razões que levaram 53,4% de sua população a votar ''não'' e, com base nessa avaliação, elaborar uma proposta para apresentar a seus parceiros europeus.