Uma controvérsia de 40 anos sobre presidentes da Ubes

A Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), que completou 60 anos em julho, aproveita o aniversário para revisitar sua fantástica trajetória. Escreverá até um livro sobre a fantástica saga secundarista através da história. Excelente. Testem

Entro na controvérsia vestindo luvas de pelica, pois sou fã assumido do trabalho de meu oponente, Juca Ferreira, como secretário-executivo e agora como ministro da Cultura. Com Gil e Juca, o MinC entrou antes tarde do que  nunca no primeiro escalão ministerial; ao lado do Itamaraty, esteve entre os que mais avançaram no conteúdo mudancista que se espera da política e da prática do governo Lula.


 


Mas Juca Ferreira não foi presidente da Ubes em 1968.


 


Dois Congressos, três presidentes


 


A entidade máxima dos secundaristas escreveu naqueles tempos um capítulo inesquecível da sua história hoje sessentona. E é justo que se conheça os estudantes que a presidiram: Tibério Canuto, em 1967-1968
Marcos Melo, em 1968-1970
Mauro Brasil, em 1970.


 


Ocorre que tive a sorte e a honra de ser vice-presidente da Ubes no emblemático ano 1968 (tinha 17 anos).  Participei da gestão do princípio ao fim. Estou portanto razoavelmente bem situado para falar daqueles tempos de sonho e combate.


 


A Ubes, como a UNE, foi colocada na ilegalidade pelos golpistas de 1964, por meio da famigerada Lei Suplicy, de novembro do ano do golpe. Mas logo as duas se reorganizaram, em desafio à ditadura. A UNE em julho de 1965 e a Ubes, em fevereiro de 1967, no seu 18º Congresso.


 


O Congresso de 1967 ocorreu em um sítio no estado do Rio de Janeiro. Não participei dele. O 19º, de 1968, que elegeu Marcos Melo presidente e a mim como um dos vices (a estrutura da diretoria na época era ultra-simples: havia um presidente e todos os outros diretores eram vices) foi na Semana Santa de 1968 (de 12 a 14 de abril), em Belo Horizonte, num galpão que ocupava o andar superior de um prédio da Igreja Católica, um seminário, se não me engano.


 


Correlação de forças


 


Estes foram os dois únicos Congressos da Ubes depois de 1964 e antes de 1981. Atesto que grande reunião secundarista que Juca Ferreira descreve de fato existiu, em Salvador, Bahia, dezembro de 1968. Mas não foi um Congresso e sim um Conselho, algo semelhante aos Conegs da Ubes atual. Sei porque participei da convocação. Não teria sentido fazer um Congresso apenas oito meses depois do de Belo Horizonte; os Congressos e as gestões da diretoria da Ubes, como os da UNE, eram anuais (só na fase pós-ditadura se tornaram bienais).


 


Fui eu o encarregado pela diretoria de preparar o Conselho de Salvador. Cheguei à boa terra em fins de outubro, depois de passar 10 dias no Dops e no Juizado de Menores do Recife, por causa de um ''comício-relâmpago'' em solidariedade à greve dos canavieiros do Cabo… Mas isso já é outra história.


 


Na Bahia, conheci Juca e outros valorosos militantes da Dissidência do PCB. De fato eles eram uma força entre os secundaristas baianos. Mas a AP (Ação Popular), onde eu militava então, era de longe a força hegemônica no movimento secundarista nacional, em aliança com o PCdoB. Mesmo na Baía a AP e seu aliado PCdoB, no mínimo, disputavam taco a taco.


 


O próprio Juca, em depoimento para o Projeto Memória do Movimento Estudantil (clique no http://www.une.org.br para ver) recorda que ''tinha uma menina chamada Dóris Serrano, que era danada, […] era da AP e era a principal liderança do movimento secundarista''.


 


Dóris, que de fato ''era danada'', elegeu-se presidente do Colégio Central da Bahia, onde Juca também estudava, e que segundo suas palavras ''era o
centro da movimentação na Bahia, sempre foi, durante muito tempo, o lugar onde o movimento estudantil se expressava com mais força''.


 


Um Conselho excepcionalíssimo


 


As circunstâncias do Conselho da Ubes na Bahia podem ter uma grande responsabilidade no que acredito ser o mal-entendido de Juca Ferreira. A reunião coincidiu com o Ato Institucional Nº 5, o famigerado AI5, um golpe dentro do golpe que mergulhou o país na fase mais tenebrosa da ditadura.


 


O Conselho não aconteceu no dia do Ato, ao contrário do recorda Juca, mas sim 48 horas depois, em 15 de dezembro, o que foi pior ainda. Com o Congresso Nacional fechado, o Exército e a Polícia Federal de prontidão e uma nova lista de políticos cassados, o que fazer?


 


Seria maluquice tentar reunir clandestinamente o Conselho, como se nada tivesse ocorrido. Ainda estava bem fresca na memória do movimento a lembrança do Congresso da UNE em Ibiúna, SP, que terminara dois meses antes com 800 estudantes presos.


 


Ao mesmo tempo, ali estavam mais de 150 delegados secundaristas (número superior ao do Congresso de Belo Horizonte), vindos de 19 estados. Todos sequiosos para discutir a luta contra a ditadura nas novas condições do AI5. O que fazer?


 


A saída foi – ainda hoje assim avalio – um exemplo de destemor, garra e manha secundaristas. E, contra todos os prognósticos, deu certo…


 


Fizemos assim: reunimos os 150 delegados numa ''plenária-relâmpago'' – relâmpago porque não deve ter durado nem dez minutos.


 


Foi no auditório do prédio da Faculdade de Filosofia da Ufba na época, um casarão enorme e muito antigo. Apenas um orador falou, creio que foi o Marcos Melo. Explicou a situação excepcional, denunciou a ditadura e pôs em votação uma única proposta: que o Conselho da Ubes se dispersasse em grupos; e que a diretoria da entidade ficasse responsável por centralizar as conclusões. A proposta foi aprovada por aclamação. E no minuto seguinte saímos todos de fininho, por uma escada compridíssima e estreita que havia no fundo do prédio.


 


De fato reunimos os grupos. O que eu participei, lembro, ficou em uma espaçosa casa térrea em Itapoã, um lugar delicioso com um grande quintal e fruteiras, onde passamos dias a fio, uns 15 a 20 secundaristas a resolver os problemas do Brasil e do mundo. Não recordo quantos grupos foram. Até hoje admiro a hospitalidade e coragem dos baianos anônimos que nos cederam essas casas, justo no momento em que a ditadura partia para a sua fase terrorista.


 


Quero crer que a percepção de Juca sobre os acontecimentos venha da participação dele em um destes grupos. Naquelas circunstâncias excepcionalíssimas, é possível que tenha havido em um dos grupos a ''eleição'' descrita por Juca, cuja boa-fé não ponho em dúvida.


 


Doze anos sem Ubes


 


O resumo da ópera é que o drible deu certo. O Conselho se realizou, na medida que as circunstâncias permitiam, ninguém foi preso e todos os delegados retornaram às suas bases, embora alguns tenham tido de apelar para a carona, já depois do Ano Novo, devido à sempre proverbial pobreza do movimento secundarista.


 


Porém ao retornarem se depararam com uma realidade mil vezes mais difícil, a ditadura terrorista do pós AI5. Já não era possível fazer movimento estudantil como tínhamos feito entre 1964 e 1968: as portas estavam fechadas. Nós, diretores da Ubes, levamos um tempo para percebê-lo. Já no início de 1970, sem condições de fazer um Congresso, confiamos a entidade a uma diretoria provisória, após precária consulta ao que restara do movimento.


 


Mas o novo presidente, Mauro Brasil, ex-presidente do Colégio Paes de Carvalho, Belém do Pará, logo depois foi preso em São Paulo e teve um mau comportamento diante dos torturadores. O movimento nunca cessou, mas refluiu para dentro das escolas. O primeiro Congresso da Ubes após o de Belho Horizonte, ou seja, o 20º, em Curitiba, só ocorreria em outubro de 1981, quando a ditadura já se achava em seu crepúsculo. Elegeu como presidente Sérgio Amadeu, de São Paulo, hoje um dos líderes do movimento do software livre no Brasil.


 


Comentário derradeiro


 


Concluo este testemunho com um comentário derradeiro: não me parece rigoroso descrever a polarização do movimento secundarista da época como sendo entre organizações da luta armada e organizações tradicionais.


 


É provável que assim parecesse, sinceramente, ao secundarista Juca Ferreira dos idos de 1968. Porém, enquanto nós reuníamos secundaristas em Salvador, já então o PCdoB preparava nas matas do sul do Pará a Guerrilha do Araguaia (1972-1974). Entre eles, Antônio Guilherme Ribas, que conheci no Congresso de BH como presidente da Upes (União Paulista dos Estudantes Secundaristas) e morreu em combate.


 


Ora, o Araguaia é consensualmente avaliado como o mais importante movimento de resistência armada à ditadura. Busquei hoje no Google por ''Guerrilha do Araguaia'' e encontrei 187 mil resultados. Nenhum outro episódio ou personagem da luta antiditatorial ombreia com o Araguaia neste teste, indicativo de que assim a memória nacional o enxerga.


 


Claro que nenhum de nós podia adivinhar em dezembro de 1968 uma guerrilha que só estouraria em abril de 1972. Mas sempre é salutar revisitarmos nossas avaliações de então à luz da água que passou debaixo da ponte. E quando o fazemos é uma alegria constatar o quanto valeu a rebeldia secundarista de todos nós, os de 68, o quanto ela foi certeira, pelo menos no atacado, e passou, com louvor, pela dura prova destes 40 anos. Por isso termino, da redação do www.vermelho.org.br, enviando ao ministro da Cultura… saudações secundaristas.


 


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