José Luis Fiori: A moeda, o crédito e o capital financeiro

Para surpresa dos ideólogos, os Estados Unidos acabam de dar uma aula, curta, sintética e brilhante, sobre a natureza do capitalismo e sobre o funcionamento dos seus mercados. Com poucas palavras, o governo americano anunciou, nesta última semana, a es

Ao anunciar sua decisão, o secretário do Tesouro americano prometeu injetar até US$ 200 bilhões dos contribuintes nas duas empresas que controlam metade do mercado de hipotecas dos EUA, estimado em US$ 12 trilhões. Mas não é só isto: nos últimos meses, o Fed financiou a aquisição do Bear Stearns pelo J.P. Morgan; criou uma nova linha de financiamento para firmas externas ao setor bancário; e colocou seus “inspetores” para controlar os bancos de investimento.



Enquanto o Congresso americano aprovava, no último dia 30 de julho, a Lei para a Recuperação da Economia e do Setor Imobiliário e discutia uma nova regulamentação rigorosa e detalhada do mercado financeiro americano. E agora, mais recentemente, o ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, propôs diretamente a criação de uma nova agência estatal de análise de risco das empresas privadas. Ou seja, de todos os lados está vindo o mesmo sinal: como diz o jornal Financial Times, “no conflito perene entre a política e o mercado, não há dúvida que, neste momento, a política está por cima”.



Enquanto isto, os analistas econômicos batem cabeça, há mais de um ano, sem conseguir explicar a natureza, a extensão e o futuro da crise hipotecária americana. Talvez porque todos compartilham, de uma forma ou outra, a mesma tese do Financial Times: a idéia equivocada de que existe um “conflito perene”, entre a política e o mercado.



Apesar de que a história da formação dos mercados e do capitalismo aponte na direção oposta, de uma solidariedade essencial e originária entre o poder, o mercado e os capitais privados. Uma história que começa, por volta do Século XIV, com o poder arbitrário dos príncipes, que definiam de forma soberana o valor dos tributos que deviam ser pagos pelos seus súditos e, ao mesmo tempo, definiam o valor da moeda que cunhavam para pagamento dos seus próprios tributos. E mesmo quando circulavam outra moedas e títulos privados, dentro do seu “principado” eles sempre eram referidos, em última instância, ao valor da moeda soberana. Este “circuito” inicial se complicou com a expansão das guerras e a necessidade de os príncipes recorrerem ao endividamento, criando a dívida pública negociada pelos comerciantes-banqueiros num mercado cada vez mais extenso de títulos e moedas. Foi assim que nasceu o capital financeiro, por meio da senhoriagem entre as moedas e títulos das unidades soberanas do mundo medieval.



O passo seguinte desta história aconteceu nos Séculos XVII e XVIII, com o nascimento dos primeiros Estados nacionais e com a “revolução financeira” que mudou a face do capitalismo europeu. Esta revolução começou na Holanda, no Século XVII, e se completou na Inglaterra, no século XVIII. Os dois países centralizaram seus sistemas de tributação e criaram bancos públicos responsáveis pela administração conjunta da dívida soberana, na forma de bônus do Estado, e da dívida privada, na forma de letras de câmbio, que se transformam na base de um sistema de crédito cada vez mais elástico, criativo e diversificado, mas sempre referido, em última instância, à moeda de conta nacional. E não há duvida que a fusão entre essa nova finança holandesa e inglesa, a partir de 1689, teve um papel decisivo no fortalecimento e na vitória colonial da Inglaterra, e na projeção internacional da moeda inglesa, a libra, que foi hegemônica em todo o mundo até sua “quase-fusão” com o dólar americano, durante o Século XX. Numa espécie de sucessão “hereditária”, que partiu da Holanda e da Inglaterra, e se prolongou nos Estados Unidos, mantendo a supremacia monetário-financeira anglo-saxônica, inquestionável durante os quatro séculos de história deste sistema mundial que foi criado a partir da expansão política e econômica da Europa.



Durante o período em que a “moeda internacional” teve uma base metálica, a libra e o dólar também tiveram uma restrição financeira intransponível, imposta pela necessidade de equilíbrio do balanço de pagamentos do país emissor da moeda de referência. Mas, depois do fim do sistema de Bretton Woods, em 1973, esta restrição desapareceu, com o novo sistema monetário internacional “dólar-flexível”, que não tem nenhum tipo de padrão metálico de referência. Neste sentido, pode-se dizer que houve uma nova “revolução financeira” – na década de 1980 -, que provocou uma espécie de retorno às origens da relação entre o poder, a moeda e o crédito.



Os EUA voltaram a definir, de forma soberana e isolada, o valor da sua moeda, apesar de que ela já fosse a moeda internacional, e também o valor dos seus títulos da dívida pública, apesar de que eles tenham se transformado na base de referência da própria moeda. Além disto, o governo americano desregulou seus mercados financeiros e, com isto, liberou a expansão quase infinitamente elástica do crédito, longe do mundo das mercadorias e do “valor-trabalho” e limitado apenas pela capacidade de tributação e endividamento do próprio Estado americano, que ainda é um poder em expansão, e que ganha mais poder com o fortalecimento do seu crédito internacional e do seu capital financeiro. Neste sistema, portanto, não existe um “conflito perene” entre a política e o mercado, como pensa a teoria econômica convencional. O que existe e sempre existiu é uma “memorável aliança” entre o poder e a finança, que esteve na origem do capitalismo e do “milagre europeu”, segundo Max Weber, e que segue movendo a fronteira expansiva do sistema interestatal capitalista neste início do Século XXI.



* José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007).



Fonte: Valor Econômico