Piza: como Guimarães Rosa conseguiu criar uma obra eterna

João Guimarães Rosa (1908-1967) criou uma obra para ser eterna e conseguiu. Hoje os escritores parecem buscar apenas o sucesso ou o reconhecimento, mas Rosa não tinha tempo para isso. Seu tempo era para superar o tempo. Seus livros resultam de uma conc

Tudo que Rosa lia e vivia convergia para sua literatura; tudo que ele amava, dos cavalos e das vacas à ficção de Dostoievski e Flaubert, era matéria-prima de sua arte; tudo que ele aprendia, como os 12 idiomas e a atividade de diplomata, servia para seus propósitos estéticos. Poucas vezes a cultura brasileira viu exemplo equivalente de entrega à missão.


 


Por esse mesmo motivo a obra de Rosa foi capaz de uma fusão rara, a do trágico com o lírico. Grande Sertão: Veredas é o que é justamente por combinar essas características, por combinar a tragicidade de Sagarana ou A Terceira Margem do Rio com o encantamento de Miguilim ou Noites do Sertão. O senso do trágico, também incomum na cultura brasileira, fica claro quando pensamos no paralelo da história de Riobaldo e Diadorim com as peças gregas.


 


O gosto pelo lírico, óbvio em tantas construções verbais e no uso recorrente do diminutivo, é inesquecível quando Riobaldo descreve seu amor por Reinaldo (na verdade, Diadorim) como “o sol entrado”. Rosa lança mão de uma linguagem tão rica, que vai do mais doce ao mais amargo, do mais coloquial ao mais erudito, porque quer dar conta da grandeza da vida, dos paradoxos da alma — de suas levezas e tristezas.


 


Em Rosa temos sempre a sensação do primeiro encontro com o mundo. Sua literatura é feita de assombros e alumbramentos, como a de um viajante que chega a uma realidade desconhecida. Seu interesse, porém, não é pelos aspectos superficiais, pitorescos, pelos traços e costumes que testemunha; é pelas correntes subterrâneas, pelos sertões da natureza humana.


 


“O sertão é dentro da gente.” E esse sertão não é feito apenas de aridez e provação, mas também de veredas, de estações de alívio e beleza em meio à solidão. Sua obra brinca com os limites da geografia: ela se dá numa região, a do cerrado mineiro, mas nos momentos mais intensos não tem endereço exato, como se saltasse do local para o universal. E, pelo caminho inverso, revelasse o Brasil – seus traumas e seus sonhos.


 


Rosa, portanto, é um humanista radical, que conhece a ironia da existência e sente compaixão pelos sobreviventes. É um metafísico que mergulha como nenhum metafísico na realidade sensorial, sensual e prosódica; é um realista que decifra como nenhum realista as simbologias sob os fatos; é um artista e um intelectual, mas em seu contato com a vida busca estar livre de mediações e generalizações.


 


Quem abandona sua leitura pela falta de hábito com seu vocabulário e sua sintaxe falha em perceber como é direto e sincero o universo de Rosa, por baixo de todas suas sofisticações. O que faz que Rosa viva, que sua obra não pare de rodar na nossa sensibilidade, é exatamente esse poder que tem de nos deixar mais próximos das coisas, dos animais e das pessoas. Rosa viva.


 


(Texto para o folder do evento “Rosa Viva”, do Sesc Ipiranga)