Belluzzo: Consumidores aloprados ou contribuintes lesados?

Nos últimos dez anos – entre o 1º trimestre de 1998 e o mesmo período de 2008 – o PIB dos Estados Unidos cresceu 31%, ou seja, 2,7% ao ano. O consumo das famílias avançou 3,4% ao ano e elevou a sua participação no PIB de 67,1% para 71,6%. Não é preciso

Os gastos das famílias americanas cresceram bem acima da renda disponível, “alavancados” pela expansão acelerada do endividamento. Na última década, contrariando a experiência dos anos 50 e 60, o crescimento do consumo das famílias “descolou” da evolução da renda. Tornou-se cada vez mais dependente do efeito-riqueza.



Nos Estados Unidos, a integração do comportamento dos consumidores à lógica do desenvolvimento capitalista começa a se definir entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20. Nesse período se intensificam a suburbanização das cidades e a difusão dos duráveis, particularmente dos automóveis. Esses fenômenos seriam incompreensíveis sem desenvolvimento do crédito ao consumo, apoiado nas técnicas de propaganda inerentes à concorrência monopolista.



A constituição de um sistema de proteção social nos anos 30 e as políticas de sustentação da renda e do emprego contribuíram de maneira decisiva para o avanço do “consumo capitalista” na segunda metade do século 20. Este componente da demanda deve ser assim qualificado por conta da forma de financiamento do gasto. As novas modalidades de crédito (cartões de crédito, por exemplo) e a valorização do estoque de riqueza ao longo dos ciclos de expansão passaram a ganhar mais peso nas decisões de gasto das famílias, desvinculando o consumo da renda corrente. Tornaram esse componente do gasto cada vez mais dependente do endividamento. Hoje, na média, a dívida das famílias americanas é 40% maior do que a sua renda anual disponível. Calculado em sua relação com o PIB, o endividamento das famílias chegou a 100% em 2007.



Nos últimos dez anos, as famílias americanas – a despeito do modesto crescimento da renda e do emprego – usufruíram os benefícios dos ganhos de produtividade dos trabalhadores asiáticos. Não bastassem os ganhos de renda real que proporcionaram com os preços mais baixos de suas manufaturas, os emergentes “exportadores” passaram a destinar as reservas acumuladas para o financiamento do déficit em conta corrente e o déficit fiscal dos parceiros consumistas. A poupança dos asiáticos garantiu, assim, taxas de juros camaradas para “bancar” a corrente da felicidade.



Essa engrenagem instigou a multiplicação das inovações perigosas, a super-alavancagem das posições e a disseminação dos derivativos de crédito. Bancos comerciais, de investimento, administradores dos fundos de pensão, fundos mútuos, private equity funds, para não falar dos sofisticados fundos de hedge, todos consolidaram a convicção de que estavam blindados contra os riscos de mercado, de liquidez e de pagamentos. O crédito elástico e barato, num ambiente de desregulamentação financeira, incitou a concorrência entre gestores da nova riqueza – empenhados em atrair os investidores com desempenhos formidáveis – e fomentou a crença de que não havia nem haveria limites para a Santa Aliança entre a criatividade financeira e o consumo desaçaimado.



Os preços dos imóveis despencaram. As ilusões se transmutaram na dura realidade: os ativos – as casas – valiam menos do que a dívida contraída para a sua aquisição. Ao mesmo tempo, precipitou-se a avalanche de inadimplências dos devedores sem lenço nem documento, capturados com a promessa de juros módicos e nenhuma amortização nos dois primeiros anos.



Os comandantes das estripulias financeiras globais, outrora sobranceiros e confiantes, passaram a clamar pelo socorro dos bancos centrais e dos Tesouros. Há quem se revolte contra a socialização dos prejuízos, a utilização de dinheiro público para impedir o colapso dos cobiçosos. Outros recomendam que o socorro seja prestado com a imposição de duras condições aos façanhudos para impedir que suas imprudências incompetentes sejam premiadas. Os lobistas do mundo da finança trabalham para descarregar o resto da tralha no colo de Paulson e Bernanke – securities derivadas dos cartões de crédito e financiamentos de automóveis. Os congressistas exigem socorro às famílias ameaçadas de perder a home sweet home.



Os Bernankes da vida estão condenados a cumprir a missão que lhes foi confiada, fazer o que for necessário para impedir o crash financeiro, conter a desvalorização desordenada de ativos e remediar os prováveis impactos negativos sobre a dita economia real, aquela do emprego e da renda. Essas são as verdadeiras regras do jogo: quando a “coisa” aperta, não há limites para salvar o capitalismo de si mesmo. Trata-se de colocar a sobrevivência das relações de propriedade – em sua forma mais geral e abstrata – acima das regras que, em tempos “normais”, regulam a circulação dos direitos de apropriação e de propriedade sobre riqueza. Na hora do “vamos ver” é preciso colocar a propriedade à salvo da irracionalidade dos proprietários. (Em meio ao pânico, sabe o caro leitor, a tigrada trata de vender rapidamente, com generosos descontos, os ativos mais líquidos, já que não há preço para o lixo totalmente ilíquido.)



Em 2001, o chefe da Assessoria econômica de George W. Bush, Ben Bernanke, sugeriu a compra direta de ações pelas autoridades monetárias, como método adequado para impedir a derrocada de preços suscitada pelo estouro da outra bolha, a chamada dot.com.



Ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco da Inglaterra, o economista da London School, William Buiter, recomendou, sem rodeios, em seu blog na internet: as autoridades monetárias devem abandonar os escrúpulos. Diante das peculiaridades da crise atual, marcada pelo colapso da liquidez nos mercados de “securities” e, portanto, pela impossibilidade dos preços servirem de guia para compradores reticentes os vendedores desesperados, os bancos centrais devem operar como market makers de última instância e não apenas como prestamistas finais para um sistema bancário ávido de liquidez.



Há que impedir que o avanço da crise chegue aos bancos comerciais. Eles não são simples intermediários financeiros, mas detêm a prerrogativa de conceder empréstimos que excedem o valor de seus depósitos. Esses depósitos servem como meio de pagamento e essa circunstância os diferencia dos demais intermediários financeiros.



A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados. Ela se constitui na infra-estrutura que facilita a o “clearing” e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária. Dificuldades nessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, se transformam inevitavelmente em dificuldades para o conjunto da economia.