De Tirana, nos 100 anos de Enver Hodja

Fez uma bela manhã de sol em Tirana nesta quinta-feira (16), dia do centenário do notável dirigente comunista albanês Enver Hodja (1908-1975). Em desafio ao capitalismo restaurado e ao governo de direita, uma cerimonia simples mas cheia de significado reu

A homenagem ao maior herói albanês desde Skanderbeu (o legendário chefe militar da resistência contra o domínio turco, no século 16) teve como cenário um cemitério popular na periferia sul de Tirana. Ao triunfar, a contra-revolução chegou este requinte macabro: desenterrar os restos de Enver Hodja, para retirá-los do ''Cemitério dos Mártires, onde jazem os albaneses que combateram na Guerra de Libertação contra o nazifascismo.

Não cabe neste pequeno artigo, alinhavado em um ''internet-kafeja'' de Tirana, tentar transmitir o que Enver Hodja representou para o seu país e para o mundo. Fundador do Partido Comunista (mais tarde do Trabalho) da Albânia (1941), dirigente do exército de 70 mil guerrilheiros que expulsou do país as hordas de Mussolini e de Hitler (1941-1944), dirigente da original e destemida experiência socialista albanesa (1944-1991), Enver Hodja foi um desses gigantes revolucionários que o século 20 produziu.

Ruínas de fábricas

Já se passaram 17 anos desde a restauração contra-revolucionária albanesa, que forma um capítulo da grande onda reacionária européia pós-Muro de Berlim. O país sobrevive, a duras penas, daquilo que enviam centenas de milhares de imigrantes que foram para o ''andar de cima da Europa'', principalmente a Itália. A indústria local foi literalmente destruída. Vi com meus olhos as ruínas de algumas fábricas do cinturão industrial de Tirana (em especial o grande complexo têxtil''Stálin'', convertido em cortiço por centenas de famílias sem-teto). A capital albanesa inchou, da noite para o dia, de 400 mil para 1 milhão de habitantes.

Tirana ganhou alguns arranha-céus, muitos luminosos, bonitas prostitutas. Perdeu o simpático costume do ''footing'' (que os albaneseschamavam ''shetitje'') — passeio ao entardecer, onde as famílias vevavam os filhos, os adolescentes se paqueravam e a cidade inteira tinha como que um encontro marcado. O ''shetitje'' desapareceu justo quando ocorreu a ''transição'', dizem que em uma reação de medo. O que restou dos serviços públicos de saúde e educação funciona movido a propinas: se você quer visitar alguém num hospital, deve pagar 5 milo leks (a moeda albanesa); se deseja ver seu filho passar de ano na escola, precisa dar uma caixinha aos professores.

Toda a família foi perseguida

''Enganaram a juventude'', denuncia Nedjmie Hodja. Mulher admirável, a quase novagenária (ela e Enver se conheceram e namoraram durante a guerrilha, casando dois meses depois da vitória de 1944) permanece lépida o bastante para subir a ladeirado cemitério e impressionantemente lúcida quando salta do albanês para o francês e o italiano, ou vice-versa, recebendo visitantes estrangeiros ou telefonemas de amigos no exterior.

Toda a família foi perseguida. O filho, Illiri, pegou um ano de cadeia devido auma entrevista na imprensa. Mas foi Nedjmie que a contra-revolução escolheu como símbolo a atacar, derrubar e emporcalhar. Os anos de prisão teriam sido em maior número se não fosse a solidariedade internacional que recebeu, em especial na França e na Itália. A família perdeu a casa onde morava, com o que tinha dentro: salvou 3 mil dos 26 mil volumes da biblioteca de Enver e um ou outro quadro, nada mais.

A restauração capitalista à albanesa teve como agravante a conduta do Partido do Trabalho da Albânia (PTA). Em plena ofensiva reacionária de 1991, o partido resolveu dissolver-se e refundar-se com o nome de Partido Socialista, repudiar todo vínculo com o marxismo e o leninismo e pedir ingresso na Internacional social-democrata. O castigo veio a cavalo: no mesmo ano da covarde auto-dissolução o partido tivera, ainda como PTA, 56,2% dos votos na primeira eleição pluripartidária no país; um ano mais tarde, baixou para 25,7%;na última eleição (2005) teve 8,9%. Porém não há motivospara se comemorar esse recuo, já que quem avança é a direita do ex-presidente e atual primeiro ministro Sali Berisha, o Partido Democrata.

O ato do PCA: a bandeira de Enver

Três meses depois da dissolução do PTA, os comunistas albaneses que não se conformaram com esse fim inglório fundaram o Partido Comunista da Albânia (PCA). Mas logo em seguida a direita no poder atirou o PCA fora da lei. E quando a legalidade foi reconquistada, em 1997, veio outro golpe, dessa vez provocado por uma cisão interna.

Apenas em 2006 o grosso do movimento comunista existente (com exceção de duas organizações menores) conseguiu se unificar em um só PCA, tendo como como presidente Hysni Milloshi e como secretário-geral Muharem Djafa — os dois principais dirigentes dos grupos que se unificaram. Como tributo pago à divisão e à caça às bruxas anticomunista, os comunistas albaneses não alcançaram 1% dos votos nas eleições em que concorreram.

Entretanto,na véspera do centenário de Enver Hodja o PCA promoveu uma demonstração de força: 500 pessoas de todo o país, de Kossovo e convidados estrangeiros se reuniram em um abarrotado auditório do Museu Nacional, bem no centro da cidade. Djafa abriu o ato de homenagem a Enver e Milloshi fez o pronunciamento principal. O público aplaudiu comparticular entusiasmo as palavras da delegação de Kossova, que está prestes a fundar o seu partido comunista, em um clima distinto do sufoco albanês atual. Toda a cerimonia transpirava a decisão de levar adiante a bandeira de Enver.

Duas palavras finais

Duas palavras finais e muito pessoais. Eu e minha mulher, Olívia Rangel, trabalhamos na Rádio Tirana em 1974-1979, tempos da ditadura e da Guerrilha do Araguaia; retornamos agora, representando o PCdoB no ato político de quarta-feira e na homenagem de hoje diante da sepultura de Enver Hodja. O internauta pode calcular o turbilhão de sentimentos que tem sido este retorno.

Admirei no PCA sua firmeza a toda prova, assim como as muitas mãos calosas que apertei: não ser um vira-casacas,na Albânia de 2008, é uma notável virtude. Senti falta de mais rostos jovens, tanto no auditório como no cemitério. Tenho motivos para afirmar que a juventude albanesa de 2008 já não é aquela enganada e envenenada que era em 1991: tem em si um belo potencial de rebeldia progressista, capaz de se tirar o sono da direita no poder, desde que se descubra os caminhos para coloca-lo em ação. No fundo, foi assim que começou em 1941 a epopéia revolucionária de Enver e seus companheiros.