O lugar do tecnobrega: um ritmo paraense fruto da miséria
Uma das palavras mais pronunciadas nas rodas socioculturais mundo afora deve ser Amazônia. No Brasil, uma das palavras mais pronunciadas nas mesmas rodas deve ser tecnobrega. De uns tempos para cá o Pará deixou de ocupar debates ligados apenas aos assa
Publicado 22/02/2009 18:43
Nós, paraenses, passamos a nos orgulhar de algo para além de todas essas desgraças, ou, ainda, por um conterrâneo selecionado para o “BBB’’: nossa música. Mas se trata de um orgulho enviesado. Todo o assédio que a Amazônia e o tecnobrega recebem não significa que os debatedores “estrangeiros”, ou mesmo os paraenses, falem sobre o tema da música usando a mesma língua. O tecnobrega não parece orgulhar a elite cultural paraense.
Noutra vertente, mesmo a dupla Joelma e Chimbinha, da banda Calypso, no auge de seu sucesso, estão longe da unanimidade cultural em terras do Norte; nos meios cultos, é claro. A explicação pode não ser tão simples. Vamos por partes.
Da mesma forma como não se pode aprender samba (“apud” Noel Rosa) não se pode ensinar o que é o brega paraense num texto como este. Trata-se de um estilo musical próprio, acompanhado de uma coreografia em pares, cujas origens vão longe, se andarmos décadas para trás. Uma boa iniciação aos interessados é navegar num dos mais completos sites sobre o assunto, o “Brega Pop”.
Podemos dizer em linhas bem gerais que o brega paraense é uma vivência, ou seja, do mesmo modo como nos deslumbramos com uma passista mirim sambando num morro carioca, podemos nos embasbacar com um casal dançando brega num baile de aparelhagem. Faço a comparação para mostrar que o brega está impregnado na vida de muitas pessoas daqui, como o samba na vida do carioca, e são tão intensos, que chegam ao ponto de moldar as experiências de vida, lá e cá.
Pelo filtro da crítica da cultura, é fácil perceber que o tecnobrega –um desenvolvimento do ritmo tradicional a partir de pegadas eletrônicas– está para o brega como a axé-music esteve para o samba de roda. Bem, isso é um vespeiro. Então, trato de explicar que não acho que o brega e o samba de roda “do passado” sejam melhores que seus arremedos midiáticos do presente. Nem poderia assegurar que se trata mesmo de um arremedo e não de uma “evolução”.
O que motiva este texto são debates recentes e pouco antropológicos sobre origens e purezas, antes sobre um certo desconforto que se nota entre alguns artistas paraenses, pela forma com a qual alguns nomes da cultura nacional cantam loas públicas para a atual presença da música paraense na mídia. É o caso de Nelson Motta e de Caetano Veloso.
São elogios rasgados ao tecnobrega, mas também à banda Calypso, que parecem muito próximos para esse olhar de fora. Todos sabem que o maior mérito desses artistas é ter ignorado a existência das grandes gravadoras em suas trajetórias. Apesar das alianças recentes da banda Calypso com a Som Livre, tudo aconteceu de modo independente, da mesma forma como com a avalanche produtiva dos tecnobregueiros.
Constantemente ouço críticas ferozes à adesão dessas grandes figuras da arte e da crítica brasileiras ao produto “pobre” da arte musical do Pará, em detrimento dos “verdadeiros” artistas paraenses que vivem e produzem em Belém e no interior. É uma crítica ingênua, como se fosse absurdo achar que Vitor Ramil não foi reconhecido na mesma proporção que o seu “duplo” chamado Caetano Veloso. Outros tempos, outros mitos.
É um lamento estranho da parte dos músicos e críticos porque, ao mesmo tempo, vem à tona a comparação com pessoas que hoje esses mesmos músicos admiram, como Alípio Martins, Teddy Max e tantos outros bregueiros das antigas e que hoje só se pode ouvir nas aparelhagens dedicadas ao chamado “flash brega”.
Podemos lembrar que há pouco tempo esses mesmos artistas eram, cada um a seu modo, os Chimbinhas marginalizados das altas rodas. O livro “Eu Não Sou Cachorro Não”, de Paulo César de Araújo, é um documento imprescindível para entender essa afirmação.
Mas, então, o que ocorre quando uma manifestação que brotou de dentro da necessidade social de distração entra em choque com a cultura dita oficial? Um óbvio conflito entre valores estéticos. Não é fácil descartar o tecnobrega como produto da miséria e da independência das periferias, nem tampouco dá para alçá-lo ao posto de vanguarda musical popular sem uma crítica séria.
Compreender esses difíceis cruzamentos exige um certo grau de desprendimento. Talvez seja mais simples para os de fora perceberem o que os paraenses não conseguem ver nos seus artistas: talento, inovação, coragem e tantos méritos mais. Mas o avesso disso também é digno de reflexão: vender muito, ser independente, ser amado pelo povo não significa que o material musical seja bom.
Aqui entramos no terreno mais difícil, o do julgamento de gosto. Deve ser fácil elogiar tudo e todos quando se está acima da crítica, ou quando se é a crítica. Uma frase de efeito dita nesses debates elegantes num auditório recheado de estudantes e de bons leitores rende diversão e poucas tensões. Confrontar jornalismo cultural e teoria crítica também é simples. Discorrer sobre suas diferenças já nem tanto.
O Brasil tem uma vantagem rara para quem se interessa por cultura. Em um mês, no Pará, podemos ouvir tecnobrega em todos os lugares (aqui é moda preencher a mala dos carros com alto-falantes poderosos e abrir todos ao mesmo tempo); podemos ouvir, com sorte, um cantor raro chamado Walter Bandeira; e depois visitar São Caetano de Odivelas (menos de duas horas de Belém) e assistir ao boi Faceiro, com seus cabeçudos desfilando pelas ruas da cidade.
Ou seja, a um só tempo temos de bandeja três representações: a música de entretenimento, a chamada música popular brasileira e uma manifestação viva da cultura popular, cada uma do seu jeito, distintas e específicas. Será?
Uma conversa com o “seu” José, herdeiro da tradição do boi Tinga, na mesma São Caetano, confunde qualquer sabichão. Quando o assunto começou, ele disparou: “Aqui só se mantém a tradição do boi porque as pessoas amam a festa. Além do mais, aqui não tem cinema nem teatro (!), o boi é a única diversão”.
Mas não era o tecnobrega a fonte da distração popular desses ditos periféricos, e a cultura popular não era aquela esfera preservada dos grandes meios de massa? Afinal, quem vai ao Teatro da Paz ouvir Walter Bandeira quer saber o que é estética musical, ou vai lá para se divertir e se emocionar com ele? São Caetano de Odivelas não é o exemplo melhor disso que se chama de periferia, hoje?
Não há teoria que chegue para dirimir essas questões. Além do mais, não é preciso explicar tudo o tempo todo. Cultura é vida na miséria. O que mais incomoda os colegas músicos é que o brega atual, seja na sua vertente Calypso seja na tecno, parece ter perdido aquilo que lhe identificava: a auto-ironia.
Havia um riso de si que parece perdido. Mas isso de levar-se a sério, que tanto incomoda, também merece seu quinhão, porque, a rigor, se formos pensar a partir da teoria crítica –se nos for dada a licença pelos adornianos–, tudo isso faz parte da mesma coisa, ou seja, não há diferença entre um grande poeta-cantor e uma musa tecnobrega, todos servem de um jeito ou de outro ao consumo direto.
Claro que a simples dissipação da fronteira culta/popular não resolve. É hipócrita e irresponsável não analisar cada esfera em suas qualidades íntimas. O Brasil ainda nos dá essa possibilidade, perdida em muitos países do mundo. Uma qualidade terceiro-mundista ou uma ironia intelectual? Cada um resolva por si.
Dez CDs (de dentro da memória sentimental)
para um passeio panoramic pela música do Pará
1. “Via Norte’’, Ronaldo Silva
2. “Tuyabaé-Cuaá”, Walter Freitas
3. “Projeto Uirapuru: O Canto da Amazônia”, vol. Verequete
4. “Projeto Uirapuru: O Canto da Amazônia”, vol. Paulo André Barata
5. “Projeto Uirapuru: O Canto da Amazônia”, vol. Waldemar Henrique
6. “Interior”, Nilson Chaves e Vital Lima
7. “Mestres da Guitarrada”, Mestre Curica, Aldo Sena e Mestre Vieira
8. “Braços da Amazônia”, Trio Manari
9. “Madame Saatan”, Madame Saatan
10. “Saudades vol. 1, Brasilândia: O Calhambeque da Saudade” Ananindeua
* Henry Burnett é doutor em filosofia pela Unicamp e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo