24 de abril: despedaçadas esperanças a renascer, por Lipa Xavier

“… Foi bonita a festa, pá! Fiquei contente.
Inda guardo renitente um velho cravo para mim…”

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O fascismo, expressão da barbárie e do recuo civilizacional, infelizmente encontrou seguidores por estas plagas. E seus discípulos foram aqueles de quem menos se esperava.

Há um exato ano ocorreu em Montes Claros uma das cenas que a história haverá de anti-registrar. Que me desculpem os gramáticos que celebraram o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – aliás, tão combatido pelos que da língua são os seus inventores, diretos descendentes do Lácio. Escrevo anti-registrar sem saber se o termo deverá ser grafado com ou sem hífen. De todo modo, no entanto, deixadas de lado as filigranas ortográficas, será preciso registrá-la, à cena horrenda me refiro. Ou anti-registrá-la, como algo que não poderá se repetir.

Necessário dizer que, ao escrever este texto, o faço com um indizível sentimento a me perturbar o espírito: ontem fez um ano! Um ano já!

É impressionante como a sucessão do tempo nos faz perder a exata noção dele!

Parece ter sido ontem (e em termos históricos o foi)!

Esta cidade de que somos todos filhos, naturais ou importados, apenas recentemente fez 150 anos. Quanta luta foi necessária para fazer dela a cidade que ela hoje é? Quantos se deram por ela, dando-se a uma causa maior do que o seu próprio tempo poderia exigir ou compreender?

E o que é a cidade, afinal? Seus prédios, suas ruas, seu conjunto arquitetônico? Ou será que a cidade é – principal e maiormente – o seu próprio povo, que a constrói ao longo das gerações e no se-seguir do tempo? Ciganos e palestinos, hoje (e judeus, num tempo anterior) talvez tenham a resposta. Afinal são eles (ou foram, no caso dos judeus) povos que constituem Pátria, no seu mais maiúsculo sentido, sem ter um território em que se assentar.

Há um ano, um pouco mais que isso, os estudantes de Montes Claros, como expressão maior da juventude, saíram às ruas da cidade clamando pela aprovação de uma lei que deveria estabelecer na cidade aquilo que já era lei na grande maioria das cidades brasileiras de médio e grande porte: o meio-passe para os estudantes no transporte coletivo urbano.

Foi no dia 27 de março a primeira manifestação. Foram três mil os estudantes a clamar por um direito. E o resultado foi que o prefeito de então, ausente não só da Prefeitura como da cena política da sua cidade, não recebeu os meninos e meninas que a clamar estavam. O seu vice, vice de uma ausência, foi quem tentou remediar o irremediável desastroso.

Acordos foram feitos com os meninos e meninas, mediados sempre pelo autor do projeto, que abaixo se assina. Nada cumprido, prazos esquecidos, jogados depois de acordados para as calendas gregas.

É preciso que se diga que essa luta pelo Meio-Passe tem sentido histórico na cidade. Não pode ela ter dono, ou quem se arrogue a dono dela ser. Tem ela um viés que a faz propriedade do povo, no seu mais amplo sentido, por ser travada ao longo do tempo por gerações e gerações de estudantes e jovens de Montes Claros.

Depois – acordos e prazos olimpicamente descumpridos por quem deveria zelar por eles – nova manifestação se organizou: 24 de abril de 2008, um dia que ainda não terminou em Montes Claros.

Fazia uma calma manhã de outono naquele abril despedaçado…

Foram tantos os meninos e meninas, adolescentes e jovens que ainda adolesciam, que madrugaram para mobilizar estudantes das mais diversas escolas da cidade!

Eram tantos Danniéis e Lucas, outros Daniéis e Fredes, Diegos e Jéfersons, Claras e Vítores, Maíras e Catracas, Ariadnes e Juninhos, Bias, Celinas, Nálbares, Béis, Farleys, Patrícias, Luíses, Netos, Ramons e tantos mais cujos nomes serão impossíveis de serem lembrados aqui. Eram, afinal, Joanas, Marias, Joões, Josés e Joaquins… Era o povo! E uns que de fora vieram – aqui confessamos a grave acusação que à época nos foi feita! –, Panetone e Diogo, a representar a UCMG e a UEE. E um certo Thiago Mayworm, a representar a UBES…

Dessa vez foi ainda maior o número: quatro mil estudantes a exigir o cumprimento do acordo vice-celebrado pela Prefeitura com os estudantes para a aprovação do Meio-Passe. Um atho como a cidade há muito não via.

E as ruas da cidade, e suas praças e esquinas, sentiram a exuberância e o frescor da energia juvenil a transbordar em alegria e em irreverente e pacífica exigência pela aprovação do Meio-Passe. Até chegarem ao Paço Municipal.

Não haveria que se reeditar aqui um Calabouço, senhor prefeito de então! Para que um novo Edson Luiz?

E, no entanto, imperou a intransigência, a truculência e a completa ausência de diálogo com aqueles milhares de meninos e meninas. Foram Petronilhos e Veros, Veras, Márcias e Dimas, todos eles do mais alto escalão municipal, a exigir da Polícia Militar um tratamento àqueles meninos e meninas que só a ditadura (branda?) teria sido capaz de dar, no seu tempo de AI-5.

E a praça – tomada aqui no seu sentido amplo – virou território do Capitão Nascimento e do Tenente Ovídio. Deixou de ser do povo para ser de quem o reprime.

Nunca antes o largo formado pelas avenidas Cula Mangabeira e Sanitária pudera ver tamanha selvageria. Uma praça de guerra, mas guerra de um lado só. Foram bombas de “efeito moral”, gás lacrimogêneo, gás de pimenta, cassetetes, rifles apontados com suas balas de borracha e muitos, muitos cães policiais, sem ofensa aos cães.

E o 24 de abril se eternizou, pelas mãos de quem o reprimiu.

Uma adolescente foi baleada no peito, e a bala (de borracha apenas, diriam eles!) feriu o seio jovem e ainda imaturo de quem apenas buscava um direito seu.

Um estilhaço de efeito “apenas” moral feriu outra jovem.

Um estudante foi mordido por um cão depois de ter sido ferido por uma bala de borracha, e a Polícia lavrou no seu Boletim que o jovem… agrediu o cachorro! Uma piada trágica, por não conseguir ser cômica.

Doze pessoas foram presas. Dez estudantes, além da professora Celina Arêas e do senhor Delvanir, pai de uma estudante.

Um monumento, afinal, deveria ser erguido naquele local, a registrar para os confins dos tempos o que não se pode repetir. Um atho de registro, a informar à posteridade que certos tempos e pessoas não devem se repetir na história.

Porque, se uma vez vieram como farsa, de outra só poderão vir como tragédia. Se é que já não o foram.

Lipa Xavier é sociólogo, ex-vereador e presidente do PCdoB/Montes Claros