Seis anos depois, Kirchner precisará pensar de novo
Como é a regra nas votações decisivas, o pronunciamento popular neste domingo (28) foi inequívoco. O kirchnerismo – certamente mais ''o governo'' (que é uma referência quotidiana e precisa) que o ''modelo'' – sofreu neste domingo uma séria derrota. Caíu d
Publicado 29/06/2009 06:18
Néstor Kirchner e Daniel Scioli foram deixados para trás por um novato, Francisco de Narvaez. Quase todos os presidenciáveis opositores levaram vitórias: Julio Cobos, Mauricio Macri, Carlos Reutemann. O kirchnerismo nacional diminuiu em número de deputados e senadores. Seu desempenho em Córdoba, Santa Fe, Mendoza e Capital (distritos grandes e muito relevantes) foram pobres. No mesmo dia, foram golpeadas as três figuras eleitorais do governo (a presidente, Scioli e Kirchner).
Kirchner, presidente do PJ (Partido Justicialista), teve seu pior dia em seis anos. Vários governadores aliados com ele venceram, alguns com carradas de votos. Pedirão mudanças nas regras do jogo, na partilha do poder.
A oposição não peronista teve um dia de festa, embora com resultados divididos de modo desigual. Os vencedores, que não são um grupo coerente, precisarão processar suas decisões internas, organizar-se, formalizar lideranças. O mapa eleitoral desnudou suas fraquezas, sua relativa insolvência, sua falta de afectio societatis. É um mapa de dominadores dispersos: Luis Juez em Cordova, o PRO na capital e na província de Buenos Aires, o radicalismo em vários pontos.
Não existe nenhuma unidade aí, exceto para questionar o governo. E, talvez, na ofensiva contra as deduções da soja, uma bomba relógio que certamente será acionada em questão de dias.
O maior golpe
Kirchner queimou os navios quando concorreu pela província de Buenos Aires. Sua tática foi sempre defensiva: primeiro lugar entrinceheirar-se na província, na periferia em seguida… Todos estes movimentos não bastaram. Este artigo se fecha ainda ignorando os números oficiais definitivos, o que impossibilita especificações. À primeira vista, a estratégia evidentemente fracassou. A rejeição atravessou toda a geografia de Buenos Aires.
Expor Scioli [o governador da província, candidato na chapa de Kirchner] foi um risco adicional, cujas consequências o governador sofrerá na íngreme fase final de seu mandato.
Francisco de Narvaez é o contrário: passou de lanterninha a campeão sem escalas. Ficou em primeiro lugar, com uma percentagem muito elevada, bem mais do que conseguiu Gabriela Michetti na amigável capital.
A referência não é aleatória, De Narváez derrotou Kirchner-Scioli, faz tempo que relegou Solá e ontem fez sombra a ''Maurício'' [Macri, o também oposicionista prefeito da capital]. Ele é uma referência incontornável na província, pode usar esse capital como quiser. Isto é, aproximar-se de Macri ou de Reutemann. No cenário de hoje, esta última pode ser a jogada ganhadora, mas qualquer previsão é prematura.
Com isso, Narvaez, um milionário sem pedigree político e com uma escolaridade primitiva, desembarca na primeira divisão. É uma proeza, tendo em conta os seus antecedentes, a vacuidade do seu discurso, o parco elenco que o seguiu.
Presumivelmente, os seus dois pontos fortes foram a campanha e a quantidade de erros gratuitos de seus adversários. O empresário-deputado dominou a cena da campanha, o governo girou em sua órbita, dando-lhe uma centralidade que o favorecia. O kirchnerismo incentivou a polarização engordou o 'Colorado' [apelido de De Narváez, devido aos cabelos ruivos]
Martin Sabbatella [terceiro colocado em Buenos Aires], reforçado por anos de gestão municipal em Moron, foi capaz de conseguir um lugar no meio de uma enorme polarização. Fica posicionado para a fase nacional. Conseguiu isso com armas nobres, manteve-se fiel a seus princípios, apelando para um discurso aparentemente desaconselhável em meio a tanta tensão: o de reconhecer o ''alto piso'' do kirchnerismo, porém dizendo que este já bateu no teto, por falta de inovação e porque o PJ é um contrapeso a uma mudança progressista.
Em teoria, Sabbatella era governista demais para os Contreras [família empresarial], Contrera demais para o governismo, morno demais para o clima quente. Mas foi sincero e coerente com suas ideias e atitudes dos últimos anos. Produziu dois pequenos milagres. O primeiro, aglutinar toda a CTA [central sindical alternativa] em um espaço político. O outro foi a quantidade de votos. Parece ter ultrapassado 5%, uma cifra sideral em termos absolutos, o que lhe valerea mais de um deputado.
Santa Fe, Batman
Reutemann fez uma imensa aposta, podia perder muitas fichas ou faturar muito. Assim foi, embora por pouco. Seu adversário foi um socialismo governante em que a principal figura, o governador Binner, tentou dar volume ao candidato Rubén Giustiniani.
Reutemann se destaca entre os vários líderes provinciais justicialistas, que pensam ter o bastão de marechal. Duas vezes governador de uma grande província, duas vezes senador, respeitado por seus pares, apreciado pelo estabilishment midiático e empresarial, é o melhor projeto de presidenciável. Seus aliados mais próximos, Juan Schiaretti e Jorge Busti se deram mal nos seus distritos, mas ele agora tem um milhão de amigos.
É lindo o inverno em Mendoza
O vice-presidente Cobos [rompido com os Kirchner] arrasou em Mendoza, um resultado anunciado que só a cegueira de alguns operadores de Olivos [a sede do governo] poderia ignorar. Isso coloca-o na pole position entre os presidenciáveis do radicalismo [da UCR, União Cívica Radical].
A UCR fez uma eleição aceitável, especialmente nos distritos em que não foi conduzida por Elisa Carrió. A líder da Coalizão Cívica, a antagonista de Kirchner, sua rival mais extremada foi (vale mencionar) outra perdedora da jornada.
Para Cobos o terceiro lugar na capital e província Buenos Aires é uma boa notícia. Fica hegemonizando o horizonte radical, capitalizando a preferência dos líderes partidários por ele e não Carrió.
O radicalismo fez uma eleição aceitável em várias províncias. No fechamento desta edição, tinha surpreendente precedência em Entre Rios, assombrosamente em Santa Cruz (mais um golpe para Kirchner) e mais previsivelmente em Catamarca e Corrientes. Como destacou o presidente da UCR, Gerardo Morales, ganhou cadeiras no Senado e na Câmara, tornando-se o segundo bloco, atrás da FPV [dos Kirchner].
Cobos, além de ser uma fantasia de uma direita rural que hoje deve estar afiando suas unhas, continua a crescer depos desta assombrosa jornada de voto não negativo.
Pino vai ser bom
Na capital, Gabriela Michetti teve uma vitória anunciada, a curtíssima distância da estrela da noite em Buenos Aires, Fernando 'Pino' Solanas [do Projeto Sul, de centro-esquerda]. O macrismo mantém uma hegemonia persistente, mas Gabriela foi muito menos do que esperava e se acostumara. Ela pensava que iria de limosine para o governo em 2011. Agora, terá que rever esse panorama, com seu patrimônio minguando.
Pino Solanas foi um cabal vencedor, irá ao Parlamento com dois outros colegas. Uma é a socióloga Alcira Argumedo, ativista, acadêmica e lutadora de primeira, sempre na planície.
O orçamento da campanha Projeto Sul foi ridículo. Foi suprido com recursos genuinos, no grito: um discurso cheio de conteúdo político. Pino propôs uma agenda ambiciosa, alicerçado no nacional-popular e estatista. Sua bagagem inclui também uma consistente trajetória de mais de meio século como cineasta, como cidadão e líder. Suas propostas podem ser controvertidas, suas metas taxadas de utópicas. Mas os temas que levará à ágora são substanciais e às vezes solapados: o patrimônio público, as empresas estatais, a energia, o sistema de transportes. Sua força tem pouca expansão nacional, até hoje só se expande um pouco para a província de Buenos Aires. Mas abre-se para ele uma janela de oportunidade, competir para o governo da capital, sem prejuízo do seu programa nacional.
O Acordo Cívico e Social foi um fiasco. Elisa Carrió cometeu vários erros, talvez por onipotência. O maior foi não fazer o óbvio, encabeçar a lista: a distância entre o seu carisma e o de seus entes queridos é sideral. O segundo erro foi lançar Alfonso Prat Gay, um novato sem cintura nem recursos políticos primários, de conhecimento público quase nulo. O terceiro lugar na cidade que sempre a mimou é um forte revés para Elisa Carrió, especialmente porque evidencia suas más decisões. E porque os concorrentes aliados farão com que ela pague.
Vox Populi
Houve um plebiscito, nem mais nem menos. É costumeiro, por aqui, dois anos antes das eleições presidenciais. Ninguém deve eixar de ler o que disse o eleitorado.
O governo, já foi dito, é o primeiro interpelado. Sua própria trajetória eleitoral pode servir-lhe de guia. Ganhou apertado em 2003, quando Kirchner, surpreendentemente, chegou à Presidência. Tomou decisões acertadas, reforçou o poder presidencial, tomou decisões soberanas, negociou com garra a dívida, renovou o Supremo Tribunal, tornou decente a política de direitos humanos.
Nesta evolução, o governo foi acompanhado pelos cidadãos e revalidado com quotas crescentes nas eleições de 2005 e 2007. A administração de Kirchner foi plebiscitada nas urnas, iluminando a folgada chegada de Cristina Fernández à Casa Rosada.
O governo erra em seu imaginário – o discurso eleitoral o mostrou – quando põe em cena esses anos dourados, passados, sob o mandato de outro presidente, fala pouco da gestão atual e pouco propõe para adiante. O povo já ''pagou'' por esse quadriênio positivo.
O que estava em questão ontem era a presidência de Cristina Fernández de Kirchner e os próximos anos. O mandato da presidente foi marcado pelo conflito das retenções móveis, cujas projeções eleitorais se cristalizaram ontem.
Mas o oficialismo teve outras deficiências neste biênio. Seu gabinete tem muito menos peso específico. Muitos aliados o abandonaram, não só ''pela direita'' com o problema do campo. Também buscaram outros destinos os Libres del Sur, o Ibarrismo. Teimou em manter suas figuras mais irritantes (Ricardo Jaime, Guillermo Moreno). Recusou-se a corrigir a situação do Indec.
O governo pode, com razão, enaltecer sua resposta à crise econômica mundial, a defesa dos postos de trabalho. E orgulhar-se do maior feito de Cristina Kirchner, a estatização das AFJP [fundo de pensões]. É certo que grande parte da raiva que se acumulou ''castiga'' esses sucessos, mas seria uma simplificação conformista ler um pronunciamento nacional e interprovincial e trasclassista apenas como uma virada massiva para a direita. Também pesam na balança limitações e obsessões do Governo.
Com a foto de hoje, temos um governo enfraquecido, mantém bom controle sobre as variáveis econômicas e uma suposta primazia no Congresso, embora seja ingênuo supor a lealdade da maioria dos seus parlamentares, peronistas enfim, verticais apenas no sucesso.
O destino peronista
O regresso de Kirchner ao PJ bastou para obter governabilidade por quase quatro anos. O desengajamento da liderança justicialista catalisou sua queda de ontem.
Agora, parece que a melhor cartada do governo é assumir o seu destino peronista. Convocar seus companheiros vencedores e acordar um sistema de governança.
É sabido que as contrapartidas vão ser duras para o kirchnerismo. Terão de compartilhar o poder, espaços no gabinete, aceitar uma agenda parlamentar que recusaram durante um quinquênio: coparticipação federativa, melhoria na distribuição dos fundos da lei de cheque, apenas para começar. E, em termos econômicos, simbólicos e culturais, negociar alguns recuos.
É um cálice amargo, mas parece o caminho que está disponível. A expectativa do kirchnerismo seria melhorar a reputação da presidente e capturar terreno através da gestão. E honrar o seu dever constitucional, como Kirchner disse ao aceitar a derrota, o que não é pouca coisa.
Por seu turno, a confederação dos governadores (encabeçada paradoxalmente por um líder que não é governador: Reutemann) tem um incentivo para dar oxigênio ao governo, que é transitar ordenadamente e com chances para 2011. Não lhes convém uma ruptura institucional (resultante de um assédio defenestrador ou de uma renúncia da presidente por asfixia), que deixaria o Executivo nas mãos do radical Cobos, para completar o mandato. Além disso, eles lembram a loucura que foram os últimos dois anos de Menem, batido pela Aliança, em 1997. A batalha com Eduardo Duhalde sangrou o peronismo e impulsionou a vantagem da Aliança. A liderança justicialista quer um governo que sustente o ritmo na economia, que facilite a sustentabilidade das províncias (e seus governantes), e não divida suas hostes.
Um acordo desta natureza seria racional e necessário. Consagraria progressos e retrocessos decididos ontem pelos cidadãos.
Custa imaginar que os protagonistas em ação aceitem isso; exigiria doses pouco usuais de temperança, responsabilidade, e sangue frio. Mas é necessário para manter a estabilidade institucional, para honrar os prazos dos mandatos. E também não acentuar a fragilidade do poder político, justamente quando as corporações econômicas se preparam para lançar os custos da crise sobre os trabalhadores.
As cassandras da fraude fracassaram, vários institutos de pesquisa engoliram sapos formidáveis, as pessoas comuns votaram num contexto de tolerância. Os vencedores comemoraram, mas deveriam registrar que ainda não chegaram lá e têm enormes tarefas pendentes. Entre elas, sossegar seus aliados, do campo e da indústria. O seu dever não é desestabilizar maldosamente um governo grogue, embora sua idiossincrasia os incline no sentido oposto.
Resta ao governo fazer um ato de introspeção, olhar-se no espelho, reconhecer erros, ser flexível para negociar e hábil para conceder, tratando de sustentar o que é substancial em seu ''modelo''.
O plebiscito é uma parada e um giro à direita cuja extensão dependerá do pulso de uma classe política pouco dada à sutileza. Talvez tenha sido um castigo excessivo para um governo que acumulou méritos interessantes e manteve firme o timão da economia nestes anos, mas perdeu contato com a sociedade nos últimos tempos.
Seja como for, o veredicto popular forçou um cenário, cabe aos protagonistas torná-lo mais funcional para os interesses da maioria. Não será simples, quando se aguarda a vingança ruralista e o afã das corporações empresariais para impor a sua partilha (em benefício próprio) dos custos sociais da crise mudial.
* Fonte: http://www.pagina12.com.ar