Morte do dólar: rumores demasiado exagerados
Um sistema monetário mundial que depende da moeda de um único país é algo problemático, tanto para o emissor como para os usuários. É a temporada de pânico com o dólar. Os comerciantes de pânico são variados: adeptos de investimentos em ouro, defensores da linha dura fiscal e muitos outros concordam que o dólar, moeda dominante desde a Primeira Guerra Mundial, está em seu leito de morte.
Por Martin WolfValor, do Financial Times, no Valor Econômico
Publicado 14/10/2009 14:58
Um colapso hiperinflacionário estaria em gestação. Será que isso faz sentido? Não. Ainda assim, o sistema monetário mundial baseado no dólar é falho. Seria bom começar a desenvolver alternativas. Deveríamos começar pelo que não confere com o que vem ocorrendo. O valor do dólar subiu. Quando a confiança voltou, o quadro reverteu-se. O dólar valorizou-se 20% entre julho de 2008 e março. Desde então, perdeu grande parte dos ganhos. Portanto, o declínio do dólar é sintoma de seu sucesso e não de seu fracasso.
Será que é possível encontrar sinais mais profundos de que o mundo esteja abandonando a moeda dos EUA? Um indicador bastante apreciado é o preço do ouro, que quadruplicou desde o início da década. Seu preço, contudo, é um indicador dúbio do risco inflacionário: seu pico anterior foi em janeiro de 1980, pouco antes de a inflação ter sido exterminada.
O aumento nos preços do ouro reflete medo e não fatos. Esse medo não é compartilhado de forma generalizada. O governo dos EUA consegue captar recursos a 4,2% anuais ao longo de 30 anos e a 3,4%, com vencimento em dez anos. Durante a crise, as expectativas inflacionárias indicadas pela diferença entre o rendimento dos papéis convencionais e os dos protegidos contra a inflação desmoronaram.
Desde então, recuperaram terreno – outro sinal de êxito da política econômica. Porém, ainda estão abaixo do patamar em que estavam antes da crise. O perigo imediato – tendo em vista o excesso de capacidade – nos EUA e no mundo é a deflação e não a inflação.
A correção do dólar não é apenas natural; é útil. Reduzirá o risco de deflação nos EUA e facilitará a correção dos "desequilíbrios" mundiais que ajudaram a causar a crise.
Concordo com um artigo, ainda por sair, de Fred Bergsten, do Peterson Institute of International Economics, a respeito de que os "fluxos imensos de capital para os EUA facilitaram o excesso de alavancagem e subestimação do risco" (O dólar e os déficits, "Foreign Affairs", novembro/dezembro 2009). Mesmo os céticos concordam que os EUA precisam de uma expansão puxada pelas exportações.
Por fim, o que poderia substituir o dólar? A menos (e até) que a China remova os controles cambiais e desenvolva mercados financeiros líquidos e profundos – o que possivelmente levaria uma geração- o euro é o único concorrente sério do dólar. Atualmente, 65% das reservas mundiais são compostas por dólares e 25%, por euros. Sim, poderia haver alguma mudança. Provavelmente, contudo, seria vagarosa. A região do euro também possui altos déficits fiscais e endividamento. O dólar existirá daqui a 30 anos; o destino do euro não é tão certo.
Essa visão pode ser muito complacente. O perigo de colapso do dólar é pequeno e sua substituição por outra moeda é ainda menor. Porém, um sistema monetário mundial que depende da moeda de um único país é algo problemático, tanto para o emissor como para os usuários. Os riscos também estão aumentando, particularmente, desde a emergência do "Bretton Woods 2" – a prática de administrar as taxas de câmbio em relação ao dólar.
Nos anos 60, Robert Triffin, um economista belgo-americano, argumentou que um sistema monetário global baseado no dólar tinha uma falha: a elevada liquidez que o mundo buscava exigiria déficits em conta corrente nos EUA. Cedo ou tarde, no entanto, o excesso de passivos monetários minaria a confiança na moeda-chave. A visão – conhecida como "dilema de Triffin" – mostrou-se visionária: o sistema de Bretton Woods caiu em 1971.
Estritamente falando, as reservas poderiam ser criadas se o país da moeda-chave simplesmente captasse no curto prazo e emprestasse no longo. Na prática, contudo, a demanda por reservas gerou déficits em conta corrente no país emissor. Em um regime de taxa de câmbio livre, o acúmulo de reservas também deveria ser desnecessário.
Depois das crises financeiras dos anos 90, entretanto, os países emergentes decidiram que precisavam buscar uma expansão puxada pelas exportações e segurar-se contra crises. Como resultado direto, apenas nesta década, foram acumuladas 75% das reservas cambiais mundiais.
Essa própria busca por estabilidade, entretanto, ameaça criar uma instabilidade de longo prazo. De fato, as autoridades monetárias chinesas estão preocupadas com o risco sobre o valor de suas imensas reservas em dólar, que, pela lógica de Triffin, é exacerbado por sua própria política. As autoridades monetárias dos EUA podem repetir o mantra do "dólar forte".
Porém, é uma aspiração sem instrumento para sustentá-la. As medidas políticas relevantes são tomadas pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), que não tem a instrução de preservar o valor externo do dólar. A única forma por meio da qual as autoridades monetárias chinesas poderiam preservar o valor doméstico de suas reservas externas seria apoiar o dólar, sem limites, o que comprometeria a estabilidade monetária doméstica da China e, no fim das contas, acabaria se mostrando autodestrutivo.
Nesse ponto, as preocupações generalizadas sobre a estabilidade monetária dos EUA e o papel externo do dólar convergem. Uma recomendação padrão em prol dessa estabilidade seria preservar a independência do Federal Reserve e também assegurar solvência fiscal no longo prazo. Caso aumente o receio de que qualquer um desses – ou pior, ambos – esteja em perigo, o resultado poderia ser uma crise autorrealizável.
O dólar poderia despencar e as taxas de longo prazo, decolar. Em tal crise, poderia muito bem temer-se que um Federal Reserve menos independente seria compelido a comprar dívidas públicas. Isso aceleraria a fuga para longe dos dólares. Portanto, as duas precondições para a estabilidade de longo prazo são um banco central com independência crível e a solvência federal. Ambas parecem estar dentro do controle dos EUA.
Isso, entretanto, é demasiado simples. A maioria dos analistas presume que a posição fiscal dos EUA pode ser determinada independente das decisões tomadas fora do país. Porém, se o setor privado dos EUA ficar desalavancado demais por um longo período (e, portanto, gastar substancialmente menos do que suas entradas), enquanto o resto do mundo quiser acumular ativos denominados em dólar como reservas, o governo dos EUA naturalmente surgiria como captador de recursos de última instância.
Uma das conclusões do dilema de Triffin é que o papel internacional do dólar poderia dificultar para os EUA administrarem seus assuntos fiscais de forma bem-sucedida, mesmo se o quisessem.
Chego, por um caminho um tanto diferente, à mesma conclusão de Bergsten: o papel mundial do dólar não está no interesse dos EUA. Os argumentos para passar a um sistema diferente são muito fortes. Não se trata disso porque o papel do dólar está ameaçado agora. Trata-se disso porque prejudica a estabilidade doméstica e mundial. O momento para alternativas é agora.
*Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do Financial Times