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Nassif, Kucinski e Venício: a grande e as novas mídias em debate

A crescente partidarização da grande mídia e os dilemas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foram os temas que dominaram o debate “A mídia hegemônica e a liberdade de expressão”, nesta quinta-feira (22), em São Paulo. Com a participação do pesquisador Venício Lima e dos jornalistas Bernardo Kucinski e Luis Nassif, o evento reuniu cerca de cem pessoas — de estudantes a professores de Comunicação, passando por jornalistas, blogueiros e lideranças políticas.

Não faltaram visões polêmicas ao longo do debate, que foi promovido pelo Vermelho e pela Fundação Perseu Abramo. Ao mesmo tempo em que endossou as acusações de que a revista Veja promove “uma política de achaques e chantagens”, Nassif sustentou que, com a internet, “acabaram os donos da opinião”.

Kucinski criticou as prioridades e até certas terminologias dos debates em comunicação. Para surpresa da plateia, propôs que o alvo principal da conferência seja o governo Lula — porque “não cumpriu os compromissos firmados em campanha” nem procurou alterar a correlação de forças no setor midiático.

Já Venício afirmou, peremptoriamente, que a mídia é que “está se lixando para a opinião pública”, ao manter “indistinção entre o que é opinião e o que é informação”. É de assuntos do gênero que ele, Venício, e Kucinski tratam em Diálogos da Perplexidade — Reflexões Críticas sobre a Mídia (Editora Perseu Abramo), lançado também na quinta-feira, logo após o debate.

Saudade dos anos 90

Para Nassif, a crise da “opinião pública midiatizada” é o resultado de um longo processo. Depois de ascender sensivelmente na década de 1980 — no rastro da campanha pelas Diretas-Já —, a grande mídia atingiu seu auge em 1992, quando ajudou a derrubar o presidente Fernando Collor de Mello. “Com o impeachment, a mídia se reveste de um poder tal que tudo lhe é permitido, inclusive manipular”.

Nassif, no entanto, aponta deturpações e abusos dos veículos de comunicação já na “abjeta” campanha contra Collor. “A notícia é completamente estuprada. Cria-se um priapismo midiático, e os jornais começam a estampar um escândalo por dia, sem se preocupar em checar os fatos. O factóide vira a norma”, disse Nassif.

Na opinião do jornalista, a imprensa — com a Veja e a Folha de S.Paulo à frente — se perdeu na década atual. “Quando ocorre o escândalo do mensalão, a mídia faz um pacto com as vozes dissidentes para derrubar o Lula. Eles viram a chance de voltar aos tempos de glória dos anos 90 e, para isso, gastaram todo o patrimônio de credibilidade”. Além de transformar os três poderes em seus reféns, a mídia põe seus colunistas para “dar ordens”, com manchetes do tipo “a oposição está de joelhos”.

A exacerbação teve um custo. “Dois ou três grupos dominaram por décadas o mercado de opinião, que agora está pulverizado”, analisa Nassif. “A imprensa tinha predomínio sobre o leitor. Mas, hoje em dia, a soma dos temas legítimos não precisa passar pelo filtro da mídia.”

Incompetência da esquerda?

Muito mais “à esquerda” que Nassif, Kucinski assevera que os desvios dos grandes veículos de comunicação são históricos, e não pontuais. “O poder midiático — um monopólio construído sobre concessões públicas — é culturalmente golpista, autoritário, elitista e antipovo”, frisa.

Em sua opinião, no entanto, os setores progressistas não podem jogar toda a culpa nas costas da mídia hegemônica. “A imprensa burguesa apenas faz o que não podemos fazer. O PT, que é o maior partido de esquerda do Brasil, não tem um diário, não tem uma revista popular. A maior central sindical também não tem.”

De acordo com Kucinski, apesar da “profundidade e do enorme alcance da revolução digital, permanece nesta nova era o grande poder midiático”. Os jornalistas, porém, são mais co-responsáveis do que nunca. “Há uma degeneração da ética jornalística, e é uma pena que o Sindicato dos Jornalistas não faça nada a respeito. Temos um código de ética que é uma farsa. É preciso cobrar uma cláusula de consciência contra o assédio ideológico da mídia.”

E o governo Lula, diz Kucinski, também está no banco dos réus. “Lula pôs o Henrique Meirelles no Banco Central e o Hélio Costa no Ministério das Comunicações. Fez, assim, um pacto sincero com o capital financeiro e um pacto insincero com a Globo.” Segundo o jornalista, o presidente vai terminar seu segundo mandato sem dar conta de inúmeras promessas na área de comunicação, como o recadastramento das concessões públicas e a revisão dos critérios da publicidade.

De Gramsci a William Bonner

Venício aprofundou a ideia de as grandes transformações da atualidade opõem as novas tecnologias (essencialmente democratizantes) às velhas mídias (monopolizadas), mas não há uma transição automática. “A grande mídia ainda é capaz de fazer muito estrago.”

Nesse sentido, o pesquisador evoca uma célebre síntese formulada pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci (1891-1937) nos Cadernos de Cárcere: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Gramsci tratava da “crise de autoridade”. Venício aborda as comunicações nesta primeira década do século 21.

Não que falte enfrentamento. É na América Latina que ocorrem, segundo Venício, “as principais experiências de mudanças significativas na regulação da mídia”. Venezuela, Equador, Argentina, Uruguai e Bolívia são exemplos de países que puseram limites à concentração e à ditadura da mídia. “Respeitadas as diferenças e as especificidades, o que há em comum entre todos esses países é que seus governos foram eleitos por setores que estavam excluídos do processo político. O que os caracteriza é a mobilização — e não a manipulação — da sociedade civil.”

No Brasil, a convocação da Conferência Nacional de Comunicação — marcada para os dias 13, 15, 16 e 17 de dezembro, em Brasília — é um passo ainda tímido, mas indispensável para o debate da democratização da mídia. Venício recorda que, dias atrás, o global William Bonner falou a estudantes da UnB que sobra democracia nas comunicações. “São seis grandes grupos disputando democraticamente entre si”, zombou o apresentador do Jornal Nacional. Ao que consta, nenhum estudante consentiu.

De São Paulo,
André Cintra

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