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Argemiro Ferreira: Os EUA e a incerteza em Honduras

É difícil prever o que vai acontecer em Honduras depois do acordo. Na aparência, ele sequer impõe a volta do presidente constitucional Manuel Zelaya, cujo mandato foi capado em mais de quatro meses. O retorno era ponto de honra não só para os partidários de Zelaya, mas para a ONU, a OEA e a comunidade internacional, até porque nenhum país reconheceu o regime do golpista Roberto Micheletti.

Por Argemiro Ferreira*


O objetivo maior da comunidade internacional era deixar claro na América Latina com seu passado marcado por golpes militares (em geral teleguiados dos EUA e quase sempre acompanhados pelo respaldo americano, com desembarque de tropas ou a ameaça de fazê-lo) que tais práticas não serão mais toleradas no continente – e que o golpismo será sistematicamente repudiado.

Para os atuais detentores do poder de fato aceitarem a fórmula, autoridades dos EUA – Thomas Shannon, sub-secretário de Estado para assuntos do hemisfério, e o embaixador Hugo Llorens – tiveram de convencer os golpistas (que antes do golpe tinham tido o cuidado de obter deles o nihil obstat de Washington) de que Zelaya só voltaria se o Congresso de Honduras aprovasse seu retorno ao poder.

A estranha epifania dos golpistas

Estranho a contradição. Os partidários de Zelaya concordaram em deixar a decisão final para a mesma maioria parlamentar que se mostrara favorável ao golpe quando os militares sequestraram o presidente legítimo no palácio (de pijama) e o enfiaram num avião para tirá-lo do país? Será que diante da pressão internacional a tal maioria, tão golpista como Micheletti, teve uma epifania?

Shannon e Llorens podem ser a chave para entender a suposta epifania. Herdados do governo Bush (e sua desastrada política externa) pela secretária de Estado Hillary Clinton, os dois e mais algumas figuras sinistras (entre elas um dos chefes da máfia dos cubanos de Miami, o lobista Otto Reich) tinham servido na Casa Branca e no Departamento de Estado na trama golpista de 2002 contra Hugo Chávez na Venezuela.

Dias depois do golpe hondurenho escrevi neste espaço que Shannon e Llorens tinham vivido situação igual sete anos antes: “um tratava então de questões andinas (Venezuela entre elas) no Departamento de Estado, como adjunto do secretário assistente Reich, lobista anti-Cuba e padrinho do golpe (da Venezuela); o outro cuidava do mesmo assunto no Conselho de Segurança da Casa Branca, junto com Elliot Abrams (condenado no escândalo Irã-Contras).”

Fazendo o que a CIA fazia antes

Naquele e em outros textos sobre mais complicadores, lembrei ainda a ação golpista em Washington do NED (National Endowment for Democracy), grupo criado no governo Reagan para apoiar golpes e ditaduras, usado depois tanto por republicanos (através do IRI) como por democratas (através do NDI), cada um com suas ONGs apoiadas por empresários e sindicatos que agem no continente.

Citei ainda a frase dita em 1991 por Allen Weinstein, um dos criadores do NED: “Boa parte das coisas que estamos fazendo hoje (usando o NED) eram feitas clandestinmente, 25 anos atrás, pela CIA, Agência Central de Espionagem”. Aquela referência era aos golpes da CIA, na América Latina e nos quatro cantos do mundo, como os do Irã (em 1953) e da Guatemala (1954).

Com o NED, seja em governos republicanos ou democratas, os mecanismos mudaram (em geral não chegam a dispensar a CIA, mas a notoriedade dela passou a exigir cobertura mais eficaz). No caso de Honduras escancarou-se também uma ação mais ostensiva dos lobbies na capital dos EUA, tanto os ligados a um partido como os ligados ao outro, conforme foi destacado numa análise.

Tudo isso acaba por justificar certo desencanto com a possibilidade de reformas e mudanças mais substantivas no governo Obama. De qualquer forma, será preciso no mínimo esperar o final do processo em Honduras. Sem familiaridade com a América Latina, que ela sempre subestimou, Hillary revela-se pouco inclinada a renovar a política para a região, talvez por temer complicadores previsíveis.

Uma eleição e muitos problemas

No governo do marido dela, a oposição republicana impediu o presidente Clinton de nomear vários embaixadores – ente eles, William Weld, republicano que para chefiar a missão dos EUA no México chegara a renunciar ao governo do estado de Massachusetts. E até hoje não foi votada a indicação de Thomas Shannon para o Brasil e a do substituto dele no Departamento de Estado, Arturo Valenzuela.

Mas na crise de Honduras, apesar do papel conspícuo de Shanon e Llorens nas últimas semanas, os EUA optaram por dar mais espaço à OEA. E cabe neste momento à uma Comissão de Verificação, criada no acordo assinado pelas partes, acompanhar através da americana Hilda Solis e do chileno Ricardo Lagos o cumprimento de cada uma das cláusulas.

Depois de consumado o retorno de Zelaya, ainda haveria, claro, a questão eleitoral. O jogo dos golpistas foi (na verdade, ainda está sendo) retardar ao máximo todo o processo – o que tende a questionar depois a legitimidade da eleição, já que na campanha candidatos golpistas foram naturalmente beneficiados pelo controle oficial. Essa e outras questões dificilmente deixarão de reaparecer no desdobramento.

Fonte: Blog do Argemiro Ferreira