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Bachelet termina mandato com 73% de aprovação

Às vésperas de deixar o poder, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, conta com 73% de aprovação popular, um número comparável ao do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Entre avanços e conquistas, ela deixa para seu sucessor também tarefas inacabadas. Entre elas, está uma reforma do sistema político chileno, que preserva distorções da era Pinichet.

José Parra nunca tinha pensado que, aos 58 anos, admitiria seu erro de julgamento sobre a presidente do Chile, Michelle Bachelet. “Francamente, para mim, era impossível imaginar que uma mulher pudesse governar bem”, reconhece.

A vida do alfaiate não foi fácil durante os quatros anos do mandato de Bachelet. Em 2006, ele começou a usar drogas e perdeu o contato com toda a família. A falta de trabalho o empurrou progressivamente para a rua, onde ele morou vários meses. Há um ano, foi acolhido em um abrigo da instituição “Hogar del Cristo”. Mas a gratidão vai prioritariamente para chefe de Estado.

“Tudo é perfeitamente planejado neste governo, basta pedir ajuda a qualquer administração para ser atendido. Eu fiz uma cirurgia nos olhos, e o Estado pagou para mim, um sem-teto!”, conta, ainda incrédulo. “Michelle Bachelet conseguiu demonstrar que era possível ter uma política social e mudar o país. Antes, os outros prometiam e não faziam nada. Mas ela cumpriu”, insiste Parra.

Hoje, é com respeito e orgulho que o sem-teto pronuncia a palavra “La presidenta”, insistindo sobre o “a” no final, marca da primeira mulher eleita chefe de Estado no Chile. E como ele, são milhões de chilenos: a três meses do fim de seu mandato – a reeleição é proibida no país –, Michelle Bachelet conta com 73% de aprovação popular, um número comparável ao do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.
  
Início conturbado

O começo do mandato de Bachelet, porém, foi difícil. Em abril de 2006, um mês depois de sua posse, ela teve de enfrentar a “revolta dos pinguins”, que levou milhares de estudantes – apelidados de pinguins por causa da cor dos uniformes – às ruas em protesto contra a má qualidade do ensino público, um dos principais legados de 17 anos de ditadura de Augusto Pinochet.

Em fevereiro de 2007, a popularidade da presidente sofre uma queda acentuada com a implantação do sistema de transporte público urbano Transantiago, pensado por seu antecessor, Ricardo Lagos, para introduzir uma rede integrada com o metrô na capital. Falhas de planejamento e problemas eletrônicos provocaram um caos em Santiago, resultando em demoras enormes para os usuários.

Ammos Galanakis, 22 anos, lembra-se bem daquele período. “Queríamos expressar nosso rechaço a uma sociedade injusta, onde a qualidade de educação de uma pessoa depende se ela nasceu de um lado ou de outro da Praça de Itália”, explica o estudante de direito, referindo-se à praça que separa os ricos dos da classe média baixa.

O estudante de direito reconhece que, deste ponto de vista, nada mudou. A reforma da educação implementada pelo governo é mais maquiagem que uma mudança profunda. Amos, porém, considera-se “fanático” pela presidente. “Ela mudou a imagem do país no exterior, ela conseguiu tirar-nos da crise, gastando milhões para que os mais pobres não sofram demais”, diz, declarando também sua admiração pelo ministro das Finanças, Andrés Velasco.

“Não é à toa que o Chile está entrando no clube do primeiro mundo”, conclui satisfeito, referindo-se à entrada do Chile na OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Será o segundo país da América Latina a aderir ao grupo, depois do México.

“O governo introduziu muitos programas sociais para ajudar os mais desfavorecidos”, confirma Loreto Martinez, que coordena em Santiago a ONG “Hogar del Cristo”. Ela lembra a criação de “Chile Solidário”, um programa voltado para a população indigente (cerca de 5% que vivem com menos de um dólar por dia) e a tímida reforma da previdência.

Totalmente privatizado sob Pinochet – e naquele tempo mostrado como um exemplo de boa gestão pelos funcionários do Banco Mundial -, o sistema resultou no enriquecimento dos fundos de investimento, conhecidos como AFP, enquanto quase metade da população ficou sem aposentadoria.

Foco nas mulheres

Pela primeira vez, o governo introduziu uma pensão mínima de 75 mil pesos (260 reais) para os mais pobres, especialmente para as mães chefes de família que não contribuíram o suficiente durante a vida profissional. A cada nascimento de crianças, elas recebem um bônus para a pensão futura.

“Dá para dizer que a situação das mulheres foi o enfoque da política do governo”, continua Loreto Martinez, que cita também o programa “Chile cresce contigo”, dedicado à primeira infância. O Estado auxilia as mulheres desde a gravidez até o nascimento, dá uma ajuda financeira e maior acesso às creches. Quando Michelle Bachelet chegou ao poder, o Chile tinha 700 creches públicas gratuitas. Agora são 4.200.

“Para as crianças, esta socialização precoce é fundamental. Além disso, permite que a mãe trabalhe, o que aumenta a renda da família", diz Martinez. Em 2005, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho foi uma das mais baixas da América Latina, atingindo 36,6%, comparado aos 56,7% registrados no Brasil e 53,3%, na Argentina, segundo o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, o Pnud. Em julho passado, a proporção subiu para 41%, o que representa a entrada de 470 mil mulheres no mercado de trabalho.

A questão da violência doméstica – enfrentada por um terço das mulheres chilenas – também foi uma preocupação. O governo construiu vários abrigos e lançou campanhas de conscientização.  Bachelet também introduziu a paridade de gênero em seu gabinete, uma revolução em um país onde as mulheres têm dificuldade em serem aceitas como líderes políticos.
 
“As mulheres são mais livres, e com elas toda a sociedade”, disse Santiago Escobar, cientista político da Academia de Humanismo Cristão, uma universidade na capital chilena. Michelle Bachelet, que é abertamente agnóstica, educou os três filhos sozinha, em um país onde o divórcio ainda era considerado ilegal há cinco anos.

A crise

A opinião de que fez uma boa gestão da crise econômica talvez seja a a chave principal para a popularidade da presidente, inédita no Chile. No final de 2008, o Chile foi uma das primeiras vítimas da crise financeira, devido a sua grande dependência das exportações de matéria-prima.

Durante os três primeiros trimestres do ano, todos os indicadores econômicos ficaram no vermelho. As exportações colapsaram, as receitas fiscais caíram 30%, o desemprego explodiu e as aposentadorias, geridas por fundos de investimento, diminuíram. Pela primeira vez na década, o Chile mergulhou na recessão.

A reação do governo foi rápida. Michelle Bachelet ordenou uma política econômica contra-cíclica bastante agressiva. A taxa de juros do Banco Central passou de 8,5% para 0,5% entre janeiro e agosto, a maior redução no mundo. Paralelamente, bancos foram recapitalizados, para tentar reanimar o crédito.

O superávit fiscal do ano anterior foi esquecido e substituído por um déficit de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Os gastos públicos cresceram 20% em relação a 2008. Outro eixo da estratégia econômica foi o apoio às empresas da construção civil, para salvar os postos de trabalho. O Estado ofereceu um financiamento para quem estivesse disposto a construir moradias a baixo custo para os mais pobres.

No entanto, estas medidas não significaram um aumento da dívida. Michelle Bachelet tinha à disposição 22 bilhões de dólares (13% do PIB) dos fundos de estabilização econômica e social acumulados entre 2006 e 2008, quando o preço do cobre, a principal riqueza do país, bateu todos os recordes.

Paralelamente às políticas para incentivar a oferta econômica, o governo procurou manter o consumo das classes médias baixas e pobres. Bachelet decretou o pagamento, duas vezes neste ano, de um subsídio de 50 mil pesos (173 reais) por criança em cada família. “É como receber um presente do céu, especialmente para as mulheres chefes de família. Os mais pobres são extremamente gratos”, afirma a analista política Marta Lagos.

A ajuda contribuiu para a recuperação da confiança e do consumo. Com o recente aumento do preço do cobre, o Chile deverá voltar a crescer em 2010.

Biografia

A biografia de Bachelet aparece como uma síntese da reconciliação, mais de 30 anos após o golpe de Pinochet. Alberto Bachelet, general de aviação e pai de Michelle, pagou caro por sua lealdade ao presidente Salvador Allende. Seis meses após o golpe, ele morreu na prisão, torturado pelas autoridades. Um ano depois, a DINA (polícia secreta), pegou Michelle e sua mãe e as conduziram à Villa Grimaldi, o principal centro de tortura da ditadura.

Libertadas três semanas mais tarde, elas se exilaram na Austrália, antes de seguir para a Alemanha Oriental. Mas ela parece não ter nenhum espírito de vingança. Após sua formação médica, ela iniciou estudos sobre o Exército e conquistou o respeito dos militares. Em 2002, tornou-se ministra da Defesa no governo de Ricardo Lagos, a primeira mulher no cargo na história do Chile.

“De maneira geral, é o seu estilo político que as pessoas gostam”, continua Escobar. A presidente faz piadas durante os discursos oficiais, o que era inimaginável com seus antecessores. Em 2005, ela não foi escolhida pelos barões da Concertação, a coligação de centro-esquerda, para ser candidata. “É a cidadania que a impôs. Quando viram, ela estava tão em alta nas pesquisas, que tiveram que bancá-la”, resume o analista político.

Um político próximo da presidente contou ao Opera Mundi que nada irritava mais Michelle Bachelet do que ver matérias na imprensa internacional comparando Marco Enriquez Ominami, o candidato dissidente da Concertação, a Barack Obama. "Ela considera que merece o título de Obama chileno, já que foi a candidata da cidadania contra os acordos entre chefes da cúpula”, disse ele, pedindo anonimato.

Missões inacabadas

No entanto, os êxitos da presidente não escondem as falhas de sua gestão. Bachelet conseguiu melhorar um pouco a justiça social e dar um pontapé nos valores conservadores e machistas, mas não reformou profundamente o país. Ela introduziu uma aposentadoria mínima para os mais pobres, mas sem prejudicar os fundos de investimento que continuam a organizar uma previdência privada.

Ela também fez pequenas mudanças na educação, mas sem alterar o sistema herdado de Pinochet que favorece o setor privado contra o público. “Enquanto tivermos uma educação pública tão ruim, essa integração com a OCDE é uma piada. Uma reforma da educação é necessária para diminuir a desigualdade”, denuncia Marta Lagos, diretora do Instituto Latinobarômetro.

Esta não é a vontade política que faltava. As margens de manobra do governo eram mesmo pequenas. “Por causa do sistema eleitoral binomial desenhado por Pinochet, os dois blocos de direita e esquerda são sempre equilibrados no Congresso. Então, tem sempre que negociar com a oposição. No final, dá para gerir corretamente o país, mas não dá para fazer qualquer reforma polêmica”, resume o analista Santiago Escobar.

É por isso que 83% dos jovens nem sequer estão registrados para votar, já que consideram que o sistema político chileno não é nem democrático, nem representativo. Michelle Bachelet foi o símbolo de um Chile desinibido, mas transfere para o seu sucessor a principal missão inacabada: uma reforma do sistema político chileno que vire verdadeiramente a página da ditadura de Pinochet.

Fonte: Opera Mundi