Sem categoria

Luiz Gonzaga Belluzzo: Etnografia e Política de Wall Street

Postado em 14 de dezembro de 2009 por osvaldobertolino | Editar
O Legislativo americano colaborou para desmontar os controles e enfraquecer as agências reguladoras

Por Luiz Gonzaga Belluzzo, no jornal Folha de S. Paulo

Antropóloga formada em Princeton, Karen Ho publicou um livro digno de figurar nas estantes dos leitores mais exigentes: “Liquidated, An Ethnography of Wall Street” (Duke University Press, 2009). Ela apresenta, em linguagem clara e acessível, os resultados de uma pesquisa realizada na tribo dos senhores da finança global. Nos bastidores dos “abstratos” e fracassados modelos de risco e de precificação de ativos movimentava-se a soberba de indivíduos de carne e osso, convencidos de sua supremacia social, intelectual e moral. O protagonista central da epopeia malograda é o “investment banker”.

Não se trata do banqueiro tradicional, mas do executivo ou alto funcionário do banco de investimento, recrutado nas universidades da Yvy League, sobretudo em Princeton e em Harvard. Essa é figura nuclear do surto de criatividade agressiva que levou o planeta à catástrofe financeira. Movidos a bônus de grosso calibre, submetidos a um ritmo de trabalho alucinante e a uma concorrência darwinista (ameaçados de perder o emprego), esses personagens construíram um consenso cego e desprovido de autocrítica a respeito de suas virtudes e qualidades.

Os sabichões formados em Princeton e em Harvard usaram e abusaram do que Karen Ho chama os modelos sofisticados de “inovações de curto prazo, sem nenhuma estratégia”. Um modo gentil de designar a ganância engalanada de letras gregas. Essas “manobras de alto nível” não desprezavam escaramuças mais grosseiras, como recomendar aos clientes a aquisição de ações que formavam suas próprias carteiras ou “pegar a laço” devedores sem condições de servir as dívidas contraídas.

Mas nada teria funcionado sem a colaboração dos republicanos Reagan e Bushs 1 e 2, mais o democrata Clinton. Com o auxílio deles, o lobby de Wall Street voltou a dominar os plenários do Congresso e os escritórios do Executivo. O Legislativo dos EUA colaborou decisivamente para desmontar os controles e enfraquecer a capacidade de supervisão e de controle das agências reguladoras.

A lei Sarbannes-Oxley foi aprovada a contragosto, depois da sucessão de escândalos corporativos, as peripécias da Enron, Worldcom e outras menos votadas. Considerada excessivamente rigorosa por Henry Paulson, o secretário do Tesouro dos EUA, a lei ficou na marca do pênalti até 2007. Dura ou não, ela foi impotente para conter a explosão do crédito que levou à exasperação as práticas “criativas” e frequentemente fraudulentas dos mercados. Os criativos inventaram “novidades”, manipularam preços de ativos, engambelaram clientes e devedores “sem lenço nem documento”.

Terminava o artigo quando soube que a Câmara aprovou o projeto de regulamentação financeira. Há sinais de que os legisladores levaram em conta as provas contundentes da promiscuidade entre desregulamentação e as tropelias audaciosas e arriscadas. Ainda assim, barbas de molho: mesmo depois da salvadora intervenção do governo, a cultura de Wall Street não perdeu a pose. Voltou à soberba de sempre, disposta a usar quaisquer argumentos para desqualificar as críticas aos métodos usados no ciclo financeiro recente.