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 Tempo de reflexão para a esquerda chilena

Foi a primeira vitória eleitoral da direita no Chile desde Jorge Alessandri em 1958 e na América do Sul desde o uruguaio Jorge Battle em 2000. Sebastián Piñera, candidato do partido Renovação Nacional, parte da aliança direitista Coalición para el Cambio, obteve 51,6% dos votos válidos e venceu o ex-presidente democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, da Concertación de Partidos por la Democracia por uma margem de 3,2%.

por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
para a Carta Capital

No segundo turno, Eduardo Frei foi menos moderado e centrista. Criticou mais incisivamente o adversário e enfatizou a proposta de uma nova Constituição em substituição à pactuada com Pinochet. Para conseguir o apoio de Marco Enríquez-Ominami, um jovem deputado socialista independente que teve 20% dos votos no primeiro turno após rebelar-se contra as lideranças tradicionais e envelhecidas da Concertación, Michelle Bachelet enviou ao Congresso dois projetos de lei por ele propostos, sobre educação pública e sistema de águas e esgotos e conseguiu seu apoio formal a Frei uma semana antes da eleição. Tudo isso parece ter ajudado – a maioria das pesquisas indicava vitória de Piñera por margem de 5% a 10% –, mas foi pouco e tarde demais.

A derrota do centro-esquerda, após 20 anos de vitórias consecutivas, deve-se principalmente ao desinteresse popular por uma disputa política aparentemente incapaz de fazer diferença para suas vidas. A maioria dos jovens não tira título de eleitor ao atingir 18 anos. As esquerdas comprometeram-se com o modelo econômico e institucional deixado por Pinochet a ponto de parecer que a política se reduz a escolher gerentes.

A insatisfação é maior entre os mais marginalizados, como os indígenas que reivindicam terras de madeireiras e fazendeiros. Para reprimi-los, o governo da Concertación mereceu críticas do relator especial das Nações Unidas para assuntos indígenas, James Anaya, pois recorreu à violência e a leis de exceção legadas por Pinochet que permitem utilizar provas e testemunhas secretas contra a “subversão”. As lideranças indígenas fizeram campanha pelo voto nulo e na região da Araucanía, a de maior concentração indígena (25% da população total), bloquearam as estradas no dia da eleição. Em geral, Piñera venceu por ampla margem nas áreas mais urbanizadas e prósperas e perdeu nas demais, mas foi vitorioso nessa área rural e empobrecida por uma margem substancial: teve 57,46% dos votos.

A Concertación ofereceu um gerente que já tivera sua oportunidade – Eduardo Frei foi presidente de 1994 a 2000 – sem se mostrar memorável. O entusiasmo do seu lado foi baixo. Parte da esquerda recusou-se a apoiá-lo, enquanto a direita identificava sua oportunidade de recapturar o Estado e os eleitores centristas viram no bilionário empresário Piñera uma promessa de eficiência administrativa que valia a pena experimentar. Pelo menos 36% dos votos de Enríquez-Ominami – teoricamente à esquerda de Frei –, foram para o candidato conservador, mostrando que, para muitos eleitores, a mera renovação de nomes contava mais que ideologia ou programas políticos.

Por seu lado, o candidato conservador procurou mostrar-se como um executivo moderno e liberal, afastando-se do dogmatismo da velha guarda pinochetista a ponto de apoiar, por exemplo, a distribuição pelo governo de “pílulas do dia seguinte”, que, apesar de atacada pela Igreja Católica, foi promulgada por Bachelet no dia da eleição. Nem por isso a direita às antigas deixou de votar nele, nem o cardeal e arcebispo de Santiago, Francisco Javier Errázuriz, de ir cumprimentá-lo em casa no dia da vitória. A unidade de conservadores e neoliberais foi a chave dessa vitória, em contraste com a divisão da esquerda.

É improvável que Piñera represente uma guinada econômica ou social, até porque o governo da esquerda tampouco trouxe mudanças muito bruscas em relação à era Pinochet. Sua campanha teve propostas que, se partissem da esquerda, seriam chamadas de populistas ou socialistas, como a da renda familiar mínima garantida, pela qual a renda de famílias seria complementada pelo Estado no valor necessário para tirá-las de debaixo da linha da pobreza (47 mil pesos ou 90 dólares mensais per capita), a um custo estimado de 724 milhões de dólares anuais ou 0,44% do PIB.

Não resta muito a privatizar, o orçamento está equilibrado, não há custos trabalhistas ou gastos públicos controvertidos a cortar e a crise de 2008 cortou as asas do neoliberalismo radical. Sua proposta neoliberal mais polêmica foi a reforma da estatal do cobre Codelco, mas as Forças Armadas, com direito a 10% da receita da estatal, se opõem à privatização total. Piñera deve efetuar só uma abertura de capital, com venda de 49% das ações.

Talvez queira a anistia dos militares presos ou processados, mas seria difícil aprová-la em referendo ou no Senado, onde a esquerda terá maioria. Também lhe seria difícil aprovar uma reeleição. É verdade que sua fortuna, sua rede de tevê e seu controle de um popular time de futebol geram comparações com Silvio Berlusconi. E os chilenos pensam que a sinergia o favorecerá ao menos como empresário: a vitória fez as ações de sua holding subirem 53% e as da linha aérea LAN, mais de 101%. A Bolsa teve de suspender a negociação de suas empresas.

É na política externa que a vitória da direita fará mais diferença: certamente, Piñera se alinhará à Colômbia e aos EUA na OEA e na Unasul. Em especial devem esfriar as relações com a Bolívia, que melhoraram muito com Michelle Bachelet.

Fará diferença também, é claro, para a esquerda chilena. Na noite da derrota, a sede da Democracia-Cristã foi tomada por dezenas de jovens militantes que exigiram a renúncia do presidente do partido e este prometeu eleição de novos dirigentes em abril. A liderança socialista cede à pressão de sua juventude e das novas lideranças e pode renunciar em breve. Os presidentes dos partidos menores da frente, PPD e PRSD, demitiram-se após o primeiro turno, por exigência de Enríquez-Ominami. A pressão por renovação de lideranças e programas redobrou e a Concertación precisa acatá-la se quiser sobreviver como frente para retornar ao poder em 2014.

Fonte: Carta Capital