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Depois de Greta, Sophia e Catherine: Penélope

Penélope Cruz decidiu que seria atriz aos quinze anos de idade, ao assistir ao filme Ata-me! (1990), de Pedro Almodóvar. Na família da periferia de Madri, ninguém a levou muito a sério – nem o pai, funcionário de uma loja de ferragens, nem a mãe, dona de um pequeno salão de beleza. Aos 17 anos, Penélope mostrou que não estava brincando.

Fez um teste para participar de um filme do delirante diretor catalão Bigas Luna, e passou. Mentiu para os pais, dizendo que se tratava de uma comédia ingênua. E a Espanha inteira viu a nudez da menina Penélope em Jamón, Jamón (1992), sátira a ícones ibéricos como as touradas e o presunto cru (o "jamón" do título), recheada de cenas de sexo de alta voltagem.

No filme, Penélope conheceu um ator não tão iniciante como ela, ao lado do qual a personagem Silvia, uma adolescente em ebulição hormonal, entrava em combustão. Seu nome: Javier Bardem. Famosa a bordo de um pequeno escândalo, faltava a Penélope conquistar seu alvo principal: Pedro Almodóvar.

Foi ter com ele no ano seguinte, num teste para a protagonista do filme Kika (1993). Tinha 18 anos, e tentou convencer o diretor de que poderia interpretar uma balzaquiana. Macaco velho, Almodóvar não caiu na conversa. Mas gostou da ousadia da moça. "Penélope" – anotou o nome em seu caderninho.

Esqueçamos Penélope por um instante e nos concentremos em Lena. Nascida em uma família humilde na periferia de Madri, Lena sonha em ser atriz. Fracassa nas primeiras tentativas. Mas não pode entregar os pontos – o pai tem uma doença grave, a conta do hospital é alta. Para complementar o salário de secretária, trabalha como prostituta de luxo à noite.

A secretária primeiro, e a prostituta depois, enfeitiçam o patrão, um empreiteiro chileno enriquecido com a corrupção na Espanha dos anos 90. Rica, cheia de jóias e morando no palacete de luxo do namorado muito mais velho, Lena renova seu sonho de se tornar atriz. Faz um teste para um filme. Este, de verdade, uma comédia ingênua, em que um colchão entra em combustão por descuido de sua proprietária.

O diretor se apaixona por Lena. Tornam-se amantes. Por artimanhas que envolvem uma especialista em leitura labial, o milionário corrupto descobre. E prepara, com estudada crueldade, uma vingança contra Lena e o diretor do filme.

Penélope é Lena em Abraços Partidos, filme de Pedro Almodóvar que acaba de entrar em cartaz no Brasil. Penélope e Lena, claro, são diferentes, apesar das coincidências – a família humilde, o desejo de atuar no cinema, as mentiras de diferentes calibres para conseguir esse objetivo. Só Penélope, no entanto, poderia interpretar Lena, em sua vontade de aço, em seu sonho sem limites, na sua perseguição obsessiva de um objetivo. Porque Lena, a personagem, foi criada especialmente para Penélope, a atriz.

Penélope se tornou herdeira de uma linhagem nobre. A de atrizes europeias que – levadas ou não pela mão de um diretor – contradizem os estereótipos hollywoodianos, injetam em suas personagens traços da própria biografia e, com isso, encarnam o espírito de determinadas épocas.

Nessa família, ela sucede Marlene Dietrich, Greta Garbo, Ingrid Bergman, Sophia Loren, Catherine Deneuve, Jeanne Moreau e Liv Ullmann. Consagradas no Velho Continente, todas fizeram, em maior ou menor medida, carreira em Hollywood.

Foi só no ano passado que Penélope Cruz conquistou, definitivamente, os Estados Unidos. Ela participou de Vicky Cristina Barcelona (2008), um dos melhores filmes da produção recente de Woody Allen. No papel de Maria Elena, a amante artista do pintor Juan Antonio, ela rouba a cena das atrizes Rebecca Hall e Scarlett Johansson, a Vicky e a Cristina do título.

O espectador ignora as duas estrelas de Hollywood e se apaixona por ela, tão hipnotizado quanto Juan Antonio, interpretado pelo mesmo Javier Bardem de "Jamón Jamón" – e que hoje, dezessete anos depois do escandaloso filme de Bigas Luna, é o namorado de Penélope (o casal não confirma, mas há rumores de que a atriz esteja grávida do serial killer de Onde os Fracos Não Têm Vez).  Com Vicky Cristina Barcelona Penélope levou um Oscar de atriz coadjuvante num filme em que os personagens centrais não foram premiados – prova do quanto ela os ofuscou.

Estabelecida no cinema americano depois de dezenas de filmes equivocados que quase comprometeram sua carreira em língua inglesa – entre eles Sabor da Paixão (2000), em que interpreta uma falsa baiana que derrete ouvindo serenatas entoadas por Murilo Benício — , Penélope acaba de estrear nos Estados Unidos com Nine.

A produção é baseada no musical do mesmo nome, que por sua vez é uma adaptação para o teatro de um filme clássico de Federico Fellini, Oito e Meio (1963). Na história original e na musicada, um cineasta em crise existencial passa em revista as mulheres de sua vida – a esposa, a amante, a estrela do filme que está dirigindo, a mãe. Penélope intepreta – adivinhe – Carla, a sensual e voluntariosa amante. O filme tem estreia prevista para este mês no Brasil.

A hora e a vez de "La Cruz"

Finalmente rendido ao charme de Penélope, foi Pedro Almodóvar quem primeiro percebeu que ela fazia parte daquela família de atrizes a quem se costuma antepor um "La" – "La" Deneuve, "La" Loren, "La" Garbo. E que, mais tarde, conquistariam a regalia maior ainda de serem conhecidas apenas pelo primeiro nome: Catherine, Sophia, Greta – como no título desta reportagem.

Os papeis que consagrariam Penélope como atriz almodovariana coincidem com três grandes filmes do diretor. O primeiro foi Tudo Sobre Minha Mãe, de 1999, primeira obra de Almodóvar a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. No filme ela interpreta uma jovem, Rosa, determinada a cumprir um destino que contraria ponto por ponto os planos de sua família, que sonhava com um bom casamento para a filha.

Em vez de sair em busca do príncipe encantado, Rosa entra para um convento e e se dedica a ajudar soropositivos. Acaba se envolvendo com um travesti, e morre de Aids. A cena em que ela fala da doença, na época considerada quase letal, para a protagonista do filme – Manuela, a mãe do título, interpretada por Cecilia Roth – é uma das mais tocantes do cinema europeu recente.

Em Volver, de 2006, Penélope pela primeira vez ganhou o papel de protagonista num filme de Almodóvar. Uma noite, a personagem que ela interpreta, Raimunda, volta para casa e encontra a filha adolescente chorando na porta do prédio. Ela havia acabado de sofrer abuso sexual do padrasto, o marido de Raimunda – e, depois da violência, revoltou-se e matou-o.

A personagem de Penélope serra o corpo do marido e o guarda no freezer de um restaurante. No enredo, o que poderia parecer bizarro se torna emblema da vontade férrea da mulher do século 21, pós feminismo, revolução sexual e de costumes, que gosta de homens (e às vezes de mulheres também), mas não precisa deles para nada. O terceiro filme é Abraços Partidos, onde Penélope, no já citado papel de secretária/ atriz/ prostituta, completa seu ciclo de protagonistas muiltifacetadas e fortes.

Um anjo dos anos loucos

A linhagem de atrizes europeias que trouxeram vigor ao cinema americano começou na década mais revolucionária do século passado, em termos de comportamento. Não, não foram os anos 60, e sim a louca década de 20 – período de euforia entre duas guerras e de bonança econômica antes da quebra da bolsa de Nova York.

A alemã Marlene Dietrich surgiu nesse tempo em que Stravinsky exercitava suas dissonâncias, Braque suas distorções de perspectiva e todos se permitiam um grau de liberdade sexual dificilmente igualado posteriormente. Seu primeiro sucesso viria no ocaso da década, com o filme O Anjo Azul, de 1930, em que ela vive a cantora de cabaré Lola Lola. Cantando em voz grave, vestindo fraque e cartola, Marlene chamou a atenção do mundo e no mesmo ano foi convidada para estrear em Hollywood, com um remake do mesmo filme, em inglês.

Nos Estados Unidos, ao lado do diretor Josef von Sternberg e com um contrato com o poderoso estúdio Paramount, ela interpretou pelo menos dois clássicos, Marrocos (1930), ao lado de Gary Cooper, e Desonrada, de 1931. No primeiro ela surge também de fraque e cartola, enquanto no segundo interpreta uma espiã austríaca durante a primeira guerra.

Na terceira produção da dupla (O Expresso de Xangai, de 1932), o mundo se rendeu ao poder da atriz, a ponto de os americanos definirem o estilo chamado "toque de Dietrich", o "Dietrich-touch": a mulher fatal solitária, inteligente e independente, que emanava um desejo estranho, andrógino. A polêmica sobre se era bissexual ou apenas fazia tipo dura até hoje. Marlene foi chamada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich, para fazer filmes pelos quais receberia fortunas. Ela , no entanto, se recusou – e tomou o lado certo da guerra, ou seja, contra o nazismo.

"O mistério é o maior charme de uma mulher"

Assim como Josef von Sternberg nutria uma crença quase fanática por sua musa, o diretor finlandês Mauritz Stiller se encantou por outra atriz, a sueca Greta Gustafsson, que mais tarde mudaria seu sobrenome para Garbo. Os dois fizeram em 1924 o filme A Lenda de Gösta Berling, que foi visto por Louis B. Mayer, diretor do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer.

Ao vê-la na tela, ele ofereceu a Greta e Stiller um contrato para trabalhar em Hollywood. O início de carreira da atriz não foi fácil. Assim como Penélope Cruz, ela teve dificuldade em aprender e dominar o inglês. Mas logo depois conquistou o país com sua beleza séria, de uma mulher que não ria e arrancava elogios intensos de outras atrizes como a própria Dietrich. Disse Marlene: "Invejo Greta. O mistério é o maior charme de uma mulher. Gostaria de poder ser tão misteriosa quanto ela".

É imensa a lista de homens poderosos e influentes que receberam um não da atriz, entre os quais o milionário grego Aristóteles Onassis. Solitária e reclusa – uma de suas frases mais célebres está no filme Grande Hotel (1932), "I want to be alone" ("Eu quero ficar só") – Greta explodiu com esse filme e outras duas produções que a marcaram definitivamente, A Dama das Camélias (1936) e Ninotchka (1939).

Este último, uma deliciosa comédia na qual ela faz o papel de uma russa em Paris, traz um dos raros momentos em que a estrela sorri. Os dois filmes lhe valeram indicação para o Oscar, mas ela só levaria uma estatueta mais tarde, em 1954, pelo conjunto da obra. Greta, como seus personagens, àquela altura já tinha se afastado do cinema e da sociedade, cumprindo o desejo de ficar só.

"Sempre teremos Paris"

O trio de estrelas europeias que ganharam Hollywood em sua fase clássica se fecha com outra sueca, Ingrid Bergman. Foi em sua terra natal que protagonizou o primeiro sucesso, Intermezzo (1936), que três anos depois ganharia uma versão americana. Foi a senha para que Ingrid explodisse do outro lado do oceano. Ela é protagonista do clássico dos clássicos de Hollywood, Casablanca, de 1942, o filme campeão de citações em conversas de bar (com suas famosas frases "Prendam os suspeitos de sempre", "Sempre teremos Paris" ou "Este é o início de uma linda amizade").

Seu estilo que combina paixão e controle das emoções encontrou a personagem perfeita em Ilsa Lund, uma mulher casada com um herói da resistência durante a Segunda Guerra, e que reencontra o grande amor de seu passado na cidade de Casablanca. Mesmo ele sendo ninguém menos que Humphrey Bogart, o galã mais charmoso da era de ouro de Hollywood, Ilsa resiste. Depois capitula.

Depois é levada a resistir, já que o próprio amante pede que ela fique com o marido (o fato de Rick Blaine, personagem de Bogart, ter terminado o filme na cidade de Casablanca com o chefe de polícia local inspirou a leitura, bastante difundida, de que haveria um subtexto gay no roteiro). Ao longo de sua consagradora carreira, Ingrid foi indicada ao Oscar sete vezes, levando para casa três estatuetas.

Na segunda metade do século 20, sob as fortes mudanças ocorridas no pós-guerra, o cinema europeu começou a produzir novas musas que refletiam os novos tempos. A italiana Sophia Loren foi descoberta no set de filmagem de A Sereia do Mar Vermelho, em 1953, pelo produtor Carlo Ponti, mas foi graças ao diretor Vittorio De Sica que a voluptuosa romana ganhou a atenção mundial.

Isso ocorreria em 1960, com o filme Duas Mulheres, em que Sophia interpreta Cesira, dona de uma loja em Roma, viúva e mãe de uma adolescente. Sob os pesados bombardeios dos aliados durante a guerra, ela resolve levar a filha para sua região de origem, nas montanhas, para escondê-la. Lá ela conhece e se apaixona por um intelectual comunista que é levado pelos alemães. Cesira espera sua volta com a determinação que marcaria vários personagens de Sophia. Por esse papel, ela recebeu seu primeiro Oscar e definiu seu tipo. O da matrona italiana, a loba que protege sua cria, mas que ao mesmo tempo é desejada e sensual.

Outro filme emblemático da personalidade da atriz é Matrimônio à Italiana, de 1964, uma comédia também dirigida por Vittorio De Sica, e que lhe valeu uma indicação para o Oscar. O filme começa durante a guerra quando o milionário Domenico conhece em um bordel a linda Filumena, papel de Sophia. Após o fim do conflito, os dois se tornam amantes por mais de 20 anos, mas o que Domenico não sabe é que Filumena tem três filhos criados por babás. Essa malandragem à italiana firmou-se como marca das comédias da atriz.

Musa de um tempo vertiginoso

Sophia Loren está para a Itália assim como Catherine Deneuve está a França. Catherine faz o papel da galesa impecavelmente vestida, estandarte do país da moda, mas que é fria, superior e inatingível como uma modelo de capa de revista. Seu trabalho foi notado com o filme Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy, em 1964.

Nesta década, ela imprimiu sua personalidade a dois grandes filmes nos quais interpretava mulheres lindas e frias. O primeiro é A Bela da Tarde (1967), clássico de Luis Buñuel, em que uma mulher rejeita o marido de noite e, nas tardes, tenta se encontrar sexualmente num bordel; e o segundo é Repulsa ao Sexo (1965), de Roman Polanski, em que uma mulher mal resolvida na cama passa a ter alucinações.

Depois disso, assim como todas as musas, trabalhou em diversas produções de Hollywood, inclusive no ótimo Fome de Viver, de Tony Scott, de 1983 – o filme de vampiros que transformou o compositor romântico Franz Schubert num popstar.

Também francesa, mas diferente de Catherine até a medula, surge Jeanne Moreau. Embora já tivesse passado pelas mãos de diretores consagrados como Louis Malle e Michelangelo Antonioni, foi com François Truffaut, em 1962, que Jeanne mostrou a nova mulher do século 20: independente, desinibida e dona de seu desejo.

No filme Jules e Jim (1962), Jeanne interpreta Catherine, uma jovem que divide seu desejo entre dois homens, que dão título à obra prima de Truffaut. A música Le Tourbillon ("Turbilhão"), que ela canta em uma das cenas do filme, é a mais perfeita tradução do espírito libertário dos anos 60. Depois desse sucesso, ela trabalharia em Hollywood com Joseph Losey e Orson Welles, para citar apenas alguns dos diretores mais famosos que a tiveram como protagonista.
Em sua identidade com um único diretor, Penélope Cruz se assemelha à norueguesa Liv Ullmann, a atriz favorita do cineasta sueco Ingmar Bergman. A maior parte de seus personagens é marcada pela impossibilidade de escapar ao passado, das relações familiares desgastadas por conflitos e desentendimentos.

Embora não tenha chegado a trabalhar com grandes diretores de Hollywood, seu talento arrebatou os Estados Unidos, conferindo-lhe duas indicações para o Oscar. Bergman considerava Liv a personificação de suas fantasias criativas, o instrumento pelo meio do qual ele se expressava. "Liv é meu Stradivarius", costumava dizer, comparando-se a um solista devotado a seu violino.

Parafraseando Shakespeare, Almodóvar sabe que Penélope não é como uma flauta da qual ele pode tirar a nota que quiser. "Penélope é muito emocional e, se não fosse atriz, isso seria um problema. Ela teve a sorte de escolher uma carreira que permite a expressão de sentimentos que seriam demais para qualquer pessoa. Se não fosse assim, ela sofreria muito", disse Almodóvar em entrevista à jornalista Ingrid Sischy, autora de um perfil da atriz para a revista "Vanity Fair". Para depois corrigir: "Pensando bem, talvez ainda assim ela sofra muito".

Almodóvar sabe que Penélope – como os personagens que cria para ela e como o tempo vertiginoso e multifacetado em que vivemos – é incontrolável.