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O papel da Fazenda na crise

Muito já se falou sobre o papel desempenhado pelo Banco Central (BC) na crise financeira internacional. Mas e o Ministério da Fazenda? Teve atribuição coadjuvante? Definitivamente, não! Enquanto o BC trabalhou no enfrentamento direto dos efeitos da crise, especialmente no momento mais agudo da turbulência, entre setembro e dezembro de 2008, a Fazenda adotou medidas que ajudaram a economia a se recuperar mais rapidamente.

Por Cristiano Romero, no jornal Valor Econômico

Principal formulador dessas medidas, o secretário de Política Econômica da Fazenda, Nelson Barbosa, fez um apanhado sobre a experiência para o primeiro número do “Journal of Globalization and Development”, uma publicação da Berkeley Electronic Press, criada por quatro renomados economistas – Dani Rodrik, Joseph Stiglitz, José Antonio Ocampo e M. Shahe Emran. O texto, de 13 páginas, está disponível em inglês no seguinte endereço eletrônico: http://www.bepress.com/jgd/vol1/iss1/art13/.

Barbosa diz, em seu artigo, que as ações do governo brasileiro podem ser divididas em três grupos. No primeiro, estão as “iniciativas estruturais” adotadas antes da crise. A primeira delas foi a expansão dos mecanismos de proteção social. Juntos, benefícios previdenciários, seguro-desemprego e programas de transferência de renda (como o Bolsa Família) custaram aos cofres públicos 6,9% do PIB em 2002. No ano passado, atingiram 9,3% do PIB. Na avaliação do secretário, isso ajudou a criar um estabilizador automático e progressivo da renda disponível em períodos de crise.

A segunda iniciativa foi a adoção de uma política de aumentos reais para o salário mínimo (SM). Como 60% dos benefícios sociais e a maior parte do seguro-desemprego estão atrelados ao SM, um dos principais resultados dessa política foi aumentar a transferência de renda para as famílias. Vale lembrar que o SM é também usado como referência no setor informal da economia.

A terceira ação foi a elevação dos investimentos públicos em infraestrutura – de 0,5% para 0,9% do PIB entre 2005 e 2008. Barbosa atribui o aumento do crescimento médio do PIB entre dois períodos do governo Lula – 3,2% em 2003-05 e 4,9% em 2006-2007 – aos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento. Parece um exagero, mas Barbosa tem um bom argumento: no pior momento da crise, o governo incrementou os investimentos da União e da Petrobras, de tal sorte que, em 2008, eles adicionaram 0,6% do PIB à demanda agregada. Em 2009, responderam por 16% do total investido pela economia.

No ano passado, o governo também reduziu impostos – em 0,3% do PIB – no âmbito da política industrial. Além disso, contratou milhares de funcionários públicos e elevou seus salários, numa política deliberada a partir de 2007. O secretário sustenta que a medida teve “impacto macroeconômico altamente expansionista” no curto prazo. Este é um fato, mas elevar os vencimentos de servidores que gozam do benefício da aposentadoria integral não parece ser a política mais adequada – o incentivo à despoupança da parcela mais bem aquinhoada dos trabalhadores terá efeitos deletérios para a economia a longo prazo.

O segundo grupo diz respeito às medidas temporárias. Barbosa explica as iniciativas do BC, mas o foco aqui é a Fazenda. Uma delas foi o empréstimo, equivalente a 3,3% do PIB, dado pelo Tesouro ao BNDES no início de 2009. Foi a forma encontrada para destravar o crédito, inclusive capital de giro, de pequenas e médias empresas. O Tesouro também liberou recursos subsidiados para que Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal apoiassem, respectivamente, a agricultura e o investimento imobiliário. O resultado é que, entre setembro de 2008 e julho de 2009, a oferta de crédito dos bancos estatais cresceu 33%, diante de 9,1% dos bancos privados.

Barbosa não chega a criticar a “demora” do BC em reduzir os juros em meio à crise, mas diz que, diante desse fato, a Fazenda teve que adotar medidas compensatórias do lado fiscal para estimular a economia. Ele cita os cortes de impostos promovidos para evitar uma acumulação excessiva de estoques de alguns produtos – automóveis, eletrodomésticos, bens de capital e insumos da construção civil. Esta foi, sem dúvida, uma medida acertada e de custo relativamente baixo – 0,3% do PIB. O secretário menciona ainda a ajuda dada a Estados e municípios em 2009 – a manutenção dos repasses dos fundos de participação e a assunção de parte dos investimentos desses entes em saneamento básico e transporte urbano. Além disso, o governo aumentou o período máximo de recebimento do seguro-desemprego.

No terceiro grupo de iniciativas estão “novas ações estruturais”, como a criação de alíquotas do Imposto de Renda de pessoa física (injeção de 0,2% do PIB na renda disponível em 2009); o lançamento de um ambicioso programa habitacional (Minha Casa, Minha Vida); e a redução da taxa básica de juros (Selic) – de 13,75% para 8,75% ao ano. Nesse quesito, o secretário deixa escapar um comentário irônico. Ele lembra que, antes da crise, o juro real oscilava entre 7% e 9% ao ano e que, agora, está em 5% e, no futuro próximo, deverá variar entre esse valor e 7%. “Essa ainda seria uma taxa de juro real muito alta para padrões internacionais, mas esta é uma outra história”, diz Nelson Barbosa.

A crise deixou algumas lições. A primeira delas, na opinião do secretário, é que é preciso ter uma situação fiscal estável e, mais importante do que isso, um nível de reservas internacionais confortável. A segunda lição é que a existência de mecanismos de proteção social ajuda na adoção de políticas anticíclicas e que instrumentos tradicionais de intervenção do Estado, como bancos e empresas estatais, facilitam a ação do governo na estabilização da economia.

A terceira lição é que uma regulação prudencial “pesada” do setor financeiro é não só útil para evitar crises, mas também para combater seus efeitos. A baixa alavancagem dos bancos brasileiros e o elevado recolhimento compulsório, segundo Barbosa, “provaram ser extremamente úteis durante a crise de crédito”. Por último, o secretário sustenta que o fato de o governo Lula ser de centro-esquerda facilitou o combate à crise. “As autoridades governamentais não perderam muito tempo debatendo as implicações ideológicas de cada iniciativa”, comenta ele.

*Cristiano Romero é repórter especial