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'Haiti: ajuda tradicional pode gerar dependência e não autonomia'

Nos primeiros dias após a hecatombe que se abateu sobre o Haiti, a ajuda emergencial estrangeira foi espontânea e universal. O impacto da catástrofe comprovou-se pelo extraordinário acúmulo de bens no aeroporto de Porto Príncipe e nos pontos de passagem de fronteira com a República Dominicana. Um imenso congestionamento inviabilizou a distribuição da ajuda.

Por Ricardo Seitenfus*, em Folha de S.Paulo

Porém, mesmo depois que o tráfego aéreo foi organizado, a solidariedade mundial levou menos tempo para vir dos quatro cantos do mundo até os entrepostos aeroportuários haitianos do que para percorrer os poucos quilômetros entre o aeroporto e as vítimas do terremoto -e isso devido à insuficiente coordenação entre os atores da crise.

Por conseguinte, na fase de reconstrução do país, caso persista a falta de comando centralizado e de responsabilidades claramente definidas, o Haiti perderá uma oportunidade ímpar de finalmente extrair-se da situação de penúria e de miséria em que se encontra há tantas gerações.

Os Estados, as organizações intergovernamentais e a comunidade internacional não dispõem de parâmetros e de experiência para tratar de caso tão extremo. O Plano Marshall, que reconstruiu a Europa ocidental devastada pela Segunda Guerra Mundial, não pode servir como paradigma, na medida em que tratou, sobretudo, de infraestruturas. O desafio haitiano implica a reconstrução de instituições e a identificação de vocações produtivas, hoje inexistentes. Contudo, embora inédita, esta não pode ser percebida como uma missão impossível.

O princípio fundamental que deve guiar a atitude da comunidade internacional é o de que os problemas do Haiti pertencem aos próprios haitianos. Solidarizar-se não é substituir-se a alguém. A ajuda internacional, concebida de modo tradicional, gera dependência em lugar de autonomia. Ora, a centralidade do governo e da sociedade haitianos na gestão da crise constitui condição "sine qua non" para que propostas e projetos vindos de alhures sejam por eles apropriados.

Uma condição complementar é a responsabilidade hemisférica diante do desafio. A maior catástrofe que atingiu as Américas em todos os tempos deve encontrar o continente unido em torno de um só objetivo: resgatar o povo haitiano do abismo em que se encontra. O velho princípio da segurança coletiva continental só pode ser percebido sob o prisma do novo princípio da solidariedade coletiva continental.

Devemos deixar de lado as manifestações de vontades unilaterais, as estratégias bilaterais, a crença arraigada naquelas paragens de que a qualidade do auxílio privado é superior à do público, assim como a ideia de que as autoridades haitianas, democraticamente eleitas, não podem ser as principais interlocutoras da reconstrução nacional.

Se a solidariedade deve se manifestar de forma organizada em escala hemisférica, há, incontestavelmente, uma responsabilidade especial do Brasil e dos Estados Unidos.

Três polos do novo mundo serviram de ímã ao vergonhoso tráfico de escravos dos séculos de colonização das Américas: a vertente ocidental da ilha de Espanhola, a região da Bahia brasileira e certas regiões que hoje constituem os Estados Unidos.

Esse singular vínculo decorre da história, da cultura, das crenças e da maneira de viver desse mesmo povo, retirado do solo africano, dividido e despedaçado por descaminhos e injustiças do passado. Quando recebeu o Prêmio Nobel da Paz, o presidente Barack Obama sublinhou que outros o mereceriam e que ele não havia feito o suficiente para tanto. Pois a reconstrução do Haiti constitui uma grande oportunidade de fazer por merecê-lo.

O Brasil de Lula, por sua vez, que se deixou conduzir ao Haiti, em 2004, movido antes de tudo pela paixão e pela compaixão, está "vinculado emocionalmente e por muito tempo ao Haiti", na feliz expressão do ministro Celso Amorim.

Assim, é no âmbito hemisférico que a solidariedade extracontinental ao Haiti deve ser drenada. A generosidade internacional deve encontrar uma estrutura ágil e eficaz, que tenha presente a complexidade e as dificuldades impostas por um desafio único.

Solidariedade sem organização equivale à ineficiência, ao desperdício e à frustração. O voluntarismo é uma condição indispensável, mas francamente insuficiente.

Se há divisões nas Américas, elas devem ser percebidas como acessórias, se comparadas com o drama vivido pelo Haiti, um país que no início do século 19 deu um exemplo ao mundo na luta contra o colonialismo, o racismo e a escravidão. Hoje, o Haiti deve ser o ponto de encontro dos nossos desencontros, atribuindo outro sentido à expressão "novo mundo".

*Ricardo Seitenfus, 61, é doutor em relações internacionais, é representante especial do Secretário-Geral da OEA no Haiti. Integrou várias missões àquele país e é autor, entre outras obras, de "Haiti, a Soberania dos Ditadores".