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Umberto Martins: a raiz da crise mundial

O déficit comercial dos EUA recuou 45% em 2009, fechando o ano no valor de 380,7 bilhões de dólares (2,9% do PIB), com exportações de US$ 1,553 trilhão e importações de US$ 1,933 trilhão. Em 2008, o saldo negativo com a troca de mercadorias foi de 677,1 bilhões de dólares e vem declinando desde o recorde acumulado em 2006, quando correspondeu a mais de 6% do PIB.

Por Umberto Martins

Naquele ano, o país exportou US$ 1,44 trilhão de dólares e importou US$ 2,2 trilhões. O corte no consumo de importados fornece uma boa medida do tamanho da crise internacional do capitalismo. Embora negligenciado pela maioria dos economistas e observadores, o déficit comercial norte-americano tem uma importância extraordinária no processo de reprodução do capital nos marcos da economia mundial.

É nele que se revela, a um olhar mais atento, a fonte da decadência da indústria e da liderança econômica dos EUA no mundo, que contraditoriamente serve de alimento à vertiginosa ascensão da China. É a expressão mais fiel do parasitismo econômico que grassa no interior do império e corrompe o padrão dólar – a medida do quanto Tio Sam vive (consome) à custa alheia.

Superconsumo e superprodução

Embora isto não seja percebido pelo senso comum dos economistas viciados no raciocínio metafísico, o déficit externo estadunidense está estreitamente associado à crise do capitalismo americano, que nas atuais condições é por definição uma crise global. O super consumo da sociedade norte-americana é consorte da superprodução mundial.

Quando a taxa de consumo, e em especial o apetite de Tio Sam por mercadorias estrangeiras, se contraíram fortemente, dando lugar à recessão, inúmeras indústrias foram à falência na China, jogando no leito do desemprego, de uma hora para outra, 20 milhões de assalariados que tinham migrado do campo para as cidades. E a crise, como uma praga econômica implacável, logo se alastrou por todo o mundo.

O gigante que a revolução de 1949 despertou na Ásia, subtraindo-o ao domínio perverso das potências imperialistas, se recuperou rapidamente e, sustentado pelo mercado interno, fechou 2009 com uma invejável expansão de 8,7%, o que permitiu a geração de milhões de empregos. As potências capitalistas não tiveram a mesma sorte. Ainda não saíram da crise, apesar dos frágeis sinais de recuperação, e já se confrontam com novas turbulências decorrentes dos efeitos fiscais colaterais das intervenções anticíclicas.

Montanha de dívidas

Ocorre que o excesso de consumo cultivado pelo american way of life (estilo de vida americano), ao qual corresponde uma taxa de poupança negativa e um escandaloso déficit em conta corrente, é em larga medida artificial. Não tem lastro na renda real extraída da produção, nos salários e lucros, mas na expansão do crédito, num endividamento que não conhece limites, propiciado pelo papel especial que o dólar desempenha como moeda internacional.

Os excessos creditícios que caracterizaram a bolha imobiliária, fomentados pela política monetária de Alan Greespan, que reduziu os juros básicos a 1% a.a para contornar a recessão de 2001, também foram canalizados para o consumo de outros bens. Quem acumulou displicentemente déficits comerciais crescentes ao longo dos últimos 39 anos obviamente só poderia construir uma montanha de dívidas, até agora financiada com capital estrangeiro, proveniente principalmente da China.

Desequilíbrios insustentáveis

Provêm daí os “desequilíbrios mundiais insustentáveis” que na respeitável opinião do economista Stefhen Roach, presidente do Morgan Stanley na Ásia, constituem a raiz da recessão nos Estados Unidos, iniciada no final de 2007, e da crise mundial. Esses desequilíbrios moldaram o padrão de acumulação de capital no mundo durante as últimas décadas.

O déficit comercial foi e, de certa forma ainda é, a principal via de realização do capital produtivo que circula pelo globo e, conforme notou o argentino Aldo Ferrrer, sua expansão tornou-se pressuposto do crescimento global. Contribuiu, igualmente, para o desenvolvimento desigual das nações, beneficiando no passado a Alemanha e o Japão, e a transformação da China na maior financiadora e credora do decadente império americano.

Padrão esgotado

A crise do capitalismo americano, que ainda está em curso, revelou o esgotamento deste padrão de acumulação capitalista e forçou, objetivamente, uma violenta correção dos desequilíbrios, aumentando a poupança e reduzindo o consumo e provocando, por extensão, a queda do valor do déficit comercial. É difícil supor que, doravante, o excesso de consumo nos EUA continuará nutrindo a superprodução na China e em outras plagas.

Ganha corpo a necessidade de uma outra ordem econômica internacional, que deve expressar o novo equilíbrio do poder econômico mundial promovido silenciosamente pelo desenvolvimento desigual das nações, onde o status da China, que se levantou para não mais se curvar ao imperialismo (cumprindo a promessa de Mao Tse Tung), será proeminente.

Porém, estamos ainda no interior de uma ordem em crise e a transição para um novo mundo está longe de ser definida. A correção dos desequilíbrios mundiais, cuja necessidade foi realçada pela crise, também não está definida. O assombroso déficit fiscal em que a Casa Branca recorreu para salvar os bancos amplia o endividamento e tende a alimentar o parasitismo.

Embora tenha caído ao longo do ano, o déficit comercial voltou a crescer em dezembro de 2009, quando somou 40,2 bilhões de dólares, evidenciando que o vício do consumismo ainda é forte na maior economia capitalista do mundo. O resultado foi acolhido com otimismo pelos analistas, pois sinaliza recuperação da demanda internacional, mas já está mais do que provado de que esta é uma base frágil para o desenvolvimento ulterior das nações. As nações terão de procurar outros caminhos.