Ilha do Medo: quando a verdade escasseia, cada um tem a sua
Há um enigma em Ilha do Medo, de Martin Scorsese, que já vai se tornando um campeão de público. E sua solução não depende de uma leitura superficial do filme.
Por José Carlos Ruy
Publicado 18/03/2010 17:53

Há pelo menos duas leituras possíveis para o filme Ilha do Medo, que acaba de ser lançado e já é um sucesso de público. Uma leitura mostra um ex-policial doente mental que vive enredado em uma história fantasiosa na qual esconde o sofrimento de um passado cruel. Em outra, um policial enviado para investigar crimes ocorridos em uma instituição de doentes mentais é envolvido nas artimanhas dos médicos criminosos que investiga e acaba ele próprio internado como louco naquela instituição.
Com certeza poderão existir outras leituras nesta obra semeada de sugestões variantes. Por exemplo, a ação se passa em 1954, época de virulenta perseguição anti-comunista e anti-esquerdista do macartismo, semelhante em muitos aspectos à histeria que se instalou nos EUA depois dos atentados de 11 de setembro, amplamente aproveitados pela propaganda neoconservadora e pelo governo de Washington contra inimigos reais e imaginários do "modo de vida americano." Há também um aceno para a ameaça externa representada, na época, por uma suposta articulação de médicos nazistas para controlar as mentes de opositores políticos do stablishment americano.
Mas estas leituras são superficiais e, nesse sentido, quase explícitas. E isso é arriscado tratando-se de um filme dirigido por Martin Scorsese, autor de alguns filmes sobre a realidade norte-americana que muitas vezes exigem um esforço de decifração que vai além da superfície, como é o caso de Ilha do Medo.
Certa vez Jean-Paul Sartre disse do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert: "que época podia ser esta para que exigisse este livro e para que nele reencontrasse mentirosamente sua própria imagem?" Ilha do Medo não se iguala Madame Bovary como obra de arte, mas a pergunta pode ser aplicada ao filme. Que época é esta na qual cabe um filme como este? Ou melhor, que época é esta que um filme como este exprime?
A sociedade norte-americana vive hoje uma situação muito difícil. Uma série de fatores objetivos colocaram em xeque o chamado "sonho americano". A situação do povo e dos trabalhadores já não era boa nas últimas décadas, como estagnação nos ganhos salariais e precarização das relações de trabalho.
Com a crise econômica iniciada em 2008, a situação piorou; o desemprego aumentou para os mais altos níveis das últimas décadas. Muitas famílias perderam todas as economias e também as casas que compraram através de contratos que pareciam favoráveis mas se revelaram impossíveis de pagar. A proeminência norte-americana no mundo enfrenta uma ameaça inédita, o orgulho nacional naufraga no Iraque e nas montanhas do Afeganistão.
A vida parece insuportável mas ainda não há no horizonte uma alternativa aceitável, situação onde proliferam propostas fundamentalistas religiosas e de direita pregoeiras de uma reafirmação "americana" que já não parece viável. A extrema direita vocifera na mídia popularesca, a confiança na política – que já era pequena – diminuiu ainda mais e o cidadão comum parece vive ameaças concretas e imaginárias que vem de todos os lados. Em quem confiar?
O declínio da esperança de mudança, sintetizada na eleição de Obama, confirma velhas suspeitas contra o Estado e o governo e a falta de um horizonte concreto é o caldo de cultura onde teorias conspiratórias crescem como cogumelos. Quando não dá para acreditar em nada, pode-se acreditar em tudo; a verdade objetiva escasseia e tudo depende de interpretações muitas vezes mirabolante.
Cada um interpreta como pode, como seus receios permitem, como seus sonhos autorizam. A verdade fica suspensa pelo fiapo da interpretação e a leitura do real depende do ponto de vista de cada um. Esta parece a mensagem transmitida por Ilha do Medo: a do pesadelo de uma sociedade que perdeu o rumo e tateia na penumbra do medo e da insegurança.