Argemiro Ferreira: Os jornalões e os interesses de fora
A aliança dos jornalões não é só com os tucanos. É também contra o país: no debate nuclear, como em outros, o governo Lula defende nossos interesses e a mídia fica com os de fora. Nas primeiras páginas dos jornais, a foto de ministro brasileiro presenteando o "vilão" Ahmadinejad com a camisa da seleção encantou os editorialistas. Como desprezam os interesses nacionais, eles festejam leis extraterritoriais dos EUA para intimidar e punir países que divergem de suas posições.
por Argemiro Ferreira
Publicado 17/04/2010 21:44
O ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, entrega uma camisa da seleção brasileira de futebol ao presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
O primeira reação de muitos leitores que viram as manchetes idênticas, dia 14, na “Folha de S.Paulo” e no Estadão (a primeira página de “O Globo”, mesmo sem a manchete, coincidiu no enfoque e na foto) foi recordar a peça de propaganda do tucano Geraldo Alckmin na campanha eleitoral de 2006 – o pacote de dinheiro nas primeiras páginas, exposto de norte a sul do Brasil.
Daquela vez o truque sujo adiou a decisão do eleitorado para o 2˚ turno – no qual Alckmin acabaria com menos votos do que no 1˚. Agora a “coincidência” funciona como alerta para truques futuros. Mas a aliança dos jornalões não é só com os tucanos. É também contra o país: no debate nuclear, como em outros, o governo Lula defende nossos interesses e a mídia fica com os de fora.
Jornalões, revistonas e penduricalhos (Rede Globo à frente) apoiam-se no estereótipo iraniano fabricado por eles próprios. O presidente Ahmadinejad é baixo, magrelo e feio. Não está em questão a aparência dele e nem o holocausto – que reconheceu ter ocorrido, mesmo lembrando que os mortos na II Guerra foram 60 milhões e não apenas os 6 milhões de judeus.
O expediente de produzir o vilão e a partir dele demonizar um país inteiro para invadi-lo e tomar-lhe o petróleo – como foi em 1953 no próprio Irã (de Mossadegh) e em 2003 no Iraque (de Saddam) – começa com difamação e sanções. Armas de destruição em massa foram o pretexto dos EUA para invadir o Iraque. Armas que sequer existiam, como não existe a bomba-A do Irã.
Ao invés de sanções a política externa do Brasil prefere o apelo sensato à negociação. Afinal, o Iraque foi arrasado pelas bombas dos EUA e viu um milhão de civis (segundo estimativas) serem mortos. E lá as sanções, que puniram mais as crianças do que o governo, foram o capítulo inicial. Hoje a acusação dos EUA é que o Irã pode vir a ter uma bomba – em cinco anos.
Seria situação menos ameaçadora do que o arsenal nuclear de 100 bombas que o estado de Israel já tem, sem nunca ter assinado o TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear). A exemplo dos israelenses, Índia e Paquistão negaram-se a aderir ao TNP e já têm armas nucleares – não tantas como Israel, mas prontas para serem usadas numa guerra entre os dois.
E onde entra o Brasil nesse quadro? Assinou e cumpre o TNP, não tenta desenvolver a bomba (mesmo tendo condições para isso), proclama em sua Constituição que não o fará e ainda assinou pactos (um bilateral, com a Argentina; e outro regional, com a América Latina) nesse sentido. Mas sofre cobrança dos EUA, que descumprem o TNP e se arvoram em xerife nuclear.
O TNP não lhe confere tal autoridade. Ao contrário: manda os detentores de armas atômicas reduzirem os arsenais até sua eliminação completa. Os acordos EUA-Rússia só aposentam armas obsoletas, logo substituídas pelas modernas, sofisticadas e portáteis, que tornam mais provável o uso. (Até hoje um único país usou a bomba-A – duas, em Hiroshima e Nagasaki, contra populações civis e não instalações militares).
Nas primeiras páginas da “Folha”, Estadão e “O Globo” a foto de ministro brasileiro presenteando o vilão Ahmadinejad com a camisa da seleção encantou os editorialistas. Como desprezam os interesses nacionais, eles festejam as leis extraterritoriais criadas nos EUA para intimidar e punir países que divergem de suas posições, seja em Cuba ou no Irã.
Em janeiro do ano passado a mídia corporativa já criticava o destaque dado na Estratégia Nacional de Defesa, anunciada então pelo governo Lula, ao desenvolvimento da energia nuclear. Os jornalões prestavam-se claramente ao papel de veículo da pressão do governo Bush em fim de mandato – um “pato manco” agonizante, golpeado ainda pela derrota eleitoral humilhante.
Os mesmos veículos ansiosos para anistiar os crimes da ditadura (de que foram cúmplices e beneficiários) viam – e ainda vêem – com suspeita o compromisso dos militares brasileiros com a democracia e a defesa dos interesses nacionais. O faroeste midiático na época ainda buscava legitimar a superpotência invasora do Iraque no papel insólito de guardiã da paz e do desarmamento.
Essa mídia não costuma ter dúvidas, só certezas. Condena a resistência do Brasil em aderir ao protocolo adicional ao Acordo de Salvaguardas do TNP e atribui a culpa a militares obcecados em ter a bomba-A. Não leva em conta que a questão do desenvolvimento nuclear está longe de ser simplista como sugere o cacoete de um jornalismo aliado aos interesses externos.
Países sem armas nucleares sofrem restrições nas pesquisas – punidos por assinar o TNP. Índia, Paquistão e Israel, por ignorarem o TNP, têm suas bombas-A e são paparicados e privilegiados com acordos especiais. Em 1997-98 essa mesma mídia aplaudiu FHC por sujeitar-se à pressão dos EUA e aderir ao TNP, enquanto o Iraque sob sanções era acusado de ter a bomba – sem tê-la.
Depois do TNP os EUA passaram ainda a exigir que nós, os “sem bomba-A” (ou “have nots”, em oposição aos “haves”) assinássemos o tal protocolo adicional, que amplia as restrições, os controles e as inspeções. Inexistente antes, o protocolo teria de ser negociado com cada signatário do TNP, nunca imposto pelos EUA.
Os “sem bomba” sofrem limitações nas pesquisas, que a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) faz cumprir com inspeções. O compromisso do Brasil é com o uso pacífico da energia atômica. Defende o desarmamento nuclear e é reconhecida sua tradição pacífica. Mas não pode abrir mão da tecnologia nuclear e da necessidade estratégica de desenvolvê-la e dominá-la.
Em 2004 a “Folha” não hesitou em propor rendição singular, a pretexto de ser “transitória” a existência de países com e sem a bomba: o Brasil devia aderir ao protocolo adicional, “como uma decisão soberana”, e ao mesmo tempo “pedir” avanços pelo desarmamento. Ora, os que apóiam o protocolo são pouco mais de 80 dos 190 que assinaram o TNP. A maioria, assim, percebe a ameaça dos EUA de eternizar seu arsenal “transitório”.
Há ainda os interesses comerciais: em 2001 o crescente mercado mundial de urânio enriquecido já movimentava US$18 bilhões. Dono da 5ª maior reserva natural de urânio, o Brasil tem tecnologia própria de centrifugação, desenvolvida por seus cientistas ao longo de 30 anos. Para preservá-la protege com painéis, nas inspeções da AIEA, a sala das centrífugas na Fábrica de Combustível Nuclear da INB, em Resende.
Os interesses dos detentores de arsenais nucleares, claro, são diferentes daqueles dos “sem bomba”. A hipótese de espionagem industrial nas inspeções da AIEA não pode ser subestimada mas a proteção da tecnologia inovadora do Brasil foi descartada pela “Folha” com a alegação de que os EUA não precisam disso porque dispõem de sua espionagem “clássica”.
Antes da invasão do Iraque, no entanto, a CIA usava a equipe de inspeção da ONU (UNSCOM) – chefiada pelo sueco Rolf Ekeus até 1997 e depois pelo australiano Richard Butler (1998) – para espionar. O inspetor Scott Ritter, ex-fuzileiro dos EUA e veterano da guerra do Golfo, acusou os dois de tolerarem o jogo da CIA, permitindo a espionagem nas inspeções.
Na mesma linha do editorial da “Folha”, o do Estadão, dias depois, negou haver razão que justifique a não adesão ao protocolo adicional. Alegou ser do interesse do Brasil ratificar o compromisso com o desenvolvimento pacífico da energia atômica e “evitar atritos” com as potências empenhadas em impedir a proliferação nuclear. (E a FCN? E o mercado de urânio?)
Meses depois dos editoriais, o secretário de Estado de Bush, Colin Powell, ouviu no Brasil a explicação do ministro Celso Amorim sobre a proteção da tecnologia desenvolvida por nossos cientistas. E minimizou, ao falar à “Veja”, o que “Folha” e Estadão maximizaram: o Brasil não preocupava os EUA e nem devia ser comparado a Irã e Coréia, apesar dos “desacordos momentâneos” na AIEA.
Ao voltar ao ataque a 9 de janeiro de 2009, a “Folha” publicou matéria do chefe da surcusal de Brasília, Igor Gielow. “Os EUA cobraram ontem a adesão do Brasil ao chamado protocolo adicional”, dizia o texto. Não ficou claro se a “cobrança” era iniciativa americana, usando a “Folha”, ou se viera por acaso, premiando alguma solicitação de entrevista do jornal.
O entrevistado era o embaixador Gregory Schulte, que representava os EUA não no Brasil mas na AIEA e outros organismos sediados em Viena. Gielow omitiu (de propósito?) se o diplomata respondera a perguntas, se falara em Brasília (estaria ali por alguma razão?), se a entrevista fora por telefone ou se mandara respostas por email a perguntas enviadas a Viena.
Como o próprio jornalista caracterizara a entrevista como “cobrança” dos EUA, seria oportuno informar como tinha ocorrido – por telefone, cara-a-cara, troca de emails ou qualquer que tenha sido a situação. Teria sido uma tentativa de intimidação? Afinal, a dupla Bush-Cheney, derrotada, vivia seus últimos momentos – a apenas 12 dias do final do mandato.
No relato insólito da “Folha” Schulte cobrava a adesão do Brasil a pretexto de que “os EUA aderiram”. Mas o protocolo adicional ao Acordo de Salvaguardas (artigo III do TNP) só é aplicável (e impõe obrigações) aos “sem bomba”. Para os EUA a adesão não prevê inspeções – que são compulsórias para os "sem bomba". Estes têm de aceitá-las. Cabe à AIEA decidir o que inspecionar, como e onde.
Reproduzido da Carta Maior