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Carlos Lessa: A tragédia anunciada

O terremoto de janeiro em Porto Príncipe, no Haiti, produziu mais
de 200 mil mortes, devastou de alicerces às habitações feitas com
folhas de lata e às débeis instituições do mais pobre e infeliz
país latino-americano.

Por Carlos Lessa*

Sob a luz intensa da mídia internacional,
houve um primeiro lugar indesejado pelo Haiti, promovido pela
tragédia sísmica a centro de um espetáculo de dor que mobilizou
milhares de manifestações de solidariedade. Sucedido pelo terremoto
chileno, o Haiti perdeu a centralidade da mídia e das manifestações
de solidariedade. Há poucas semanas, aconteceu um terremoto em
Qinghai, na China. A sucessão midiática naturaliza a tragédia, e
cada uma vai perdendo o sabor de novidade.

Em Santa Catarina, as chuvas de novembro de 2008 deixaram 135 mortes
e muita destruição. Na virada de 2009, em Angra dos Reis,
deslizamentos mataram 52 pessoas. Os 288 mm de precipitação
pluviométrica nas 24 horas do dia 5 para 6 deste mês de abril na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro mataram mais de 250 pessoas.
Todas essas tragédias tiveram seu momento de destaque na mídia
nacional. Inspiraram horror, manifestações de solidariedade, mas
tendem a ser apagadas da grande memória social. A naturalização
impregna Ana Júlia de Souza, moradora do Morro do Fubá, que
declarou à Folha de São Paulo: "o que tiver que acontecer, vai
acontecer, seja com o rico ou com o pobre, porque casas de ricos
estão desmoronando também". No Morro do Fubá houve mortes na mesma
ocasião da tragédia de Angra dos Reis, porém o drama do Fubá não
foi para a ribalta. Ana Júlia foi removida da área de risco do
Fubá, porém retornou e apela para a providência divina: "tenho fé
de que Deus vai nos proteger".

Cada tragédia suscita uma sequência de ações emergenciais e uma
rica retórica de projetos de médio e longo prazos a serem
implantados. Contudo, ao ceder posição no podium das tragédias,
rebaixada pela tragédia subsequente, mergulha progressivamente no
anonimato. Isso dá origem à naturalização do trinômio máxima
energia, retórica evanescente e diferimento dos projetos.

As favelas do município do Rio de Janeiro, na grande Região
Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, foram reestruturadas pelo
Programa Favela Bairro. Na Nova República, fui diretor da área
social do BNDES. Apoiamos, com recursos do Finsocial, a
reestruturação integral de uma favela de Olinda denominada Ilha dos
Ratos. Apoiamos a prefeitura de Curitiba na consolidação e
urbanização de duas favelas. Estivemos em Joinvile, Natal, Belo
Horizonte e Rio de Janeiro. Foi possível, a partir dessas
experiências, fazer um ensaio tipológico de favelas, avaliar
algumas tecnologias especiais de estruturação e estimar (a partir
dos trabalhos de Ricardo Bielschowsky) os custos unitários para
equacionar o suprimento de água e coleta de esgoto e lixo, levantar
a "malha viária" da comunidade para aperfeiçoar a circulação
interna e externa dos moradores e instalar alguns equipamentos
públicos básicos.

Ulysses Guimarães entendia ser um compromisso básico da
Constituição de 1988 integrar todas as famílias no corpo social.
Sabia ser a residência o perímetro-chave dessa plena integração.
A qualidade de vida digna para todos os brasileiros foi meta de seu
programa como candidato à Presidência da República. Se propôs,
como candidato, a converter todas as favelas em bairros populares. A
proposta desse programa nacional de Ulysses se converteu no programa
municipal iniciado em 1993 com o nome de Favela-Bairro. O Rio teve o
apoio do Banco Mundial e foi premiado como o melhor programa de
integração das comunidades faveladas. O Programa foi executado em
sua totalidade, porém não inspirou os demais municípios da região
metropolitana, nem tampouco nas zonas clássicas de migração para a
metrópole carioca. O Favela-Bairro não foi sequenciado com a
indispensável remoção das residências em áreas de risco ou de
hiper dispendiosa urbanização.

Desde então, dois novos fenômenos urbanísticos ameaçaram as
favelas do Rio. A melhor qualidade das comunidades do Rio acentuou a
migração intra-metropolitana. Houve a valorização das áreas
trabalhadas pelo Favela-Bairro. Deu origem a uma verticalização,
pelo comércio do "direito de laje", pelo qual parcelas unifamiliares
se convertem em mini prédios com três, quatro ou mais famílias.
Essa verticalização instala um novo problema sanitário, pois a
calha estreita das vielas e escadarias deixam de receber
adequadamente luz solar. Nas zonas de risco, aumenta a densidade da
ocupação e, se houver mata ou alagadiço a ser ocupado, o
perímetro da comunidade é ampliado. À época, estimou-se que 20%
das residências estavam em zonas de risco e seria necessária uma
grande área bem localizada para a remoção digna dessas famílias.
Era óbvia a potencialidade das cercanias do retro velho Porto do Rio
de Janeiro. Alguém estimou que lá seria possível situar 200 mil
famílias, no centro da metrópole. Alternativamente eou
simultaneamente, deveria ter prioridade absoluta a melhoria e a
extensão do sistema metroviário e ferroviário urbano. Os ramais da
antiga Central do Brasil e Leopoldina deveriam ser convertidos em um
sistema de metrô de superfície que, ao reduzir o tempo de
deslocamento residência-trabalho-residência e ao oferecer a baixo
custo um transporte confiável e de qualidade, seria um multiplicador
de terrenos para a construção de residências populares dignas. Isso
retiraria a pressão sobre as áreas de risco.

Nada disso aconteceu. Houve silêncio quanto a programas de
remoção, que costumam gerar fortes resistências e desgastes
políticos para seus proponentes e executores. O Governo Federal não
cedeu nem destinou o gigantesco latifúndio urbano que possui nos
fundos do Porto do Rio para habitação popular. Persistem, com baixa
prioridade, em um PAC insuficiente e pouco pensado, as metrópoles e
seus sistemas de transporte coletivo.

Os juros de Meirelles têm total prioridade. Parece que os
executivos de um banco de investimentos norte-americano deverão
receber US$ 5 bilhões pela "recuperação" do banco. O Haiti, em
marcha acelerada para um anonimato, não recebeu sequer US$ 1 bilhão
em promessas. Parece que o presidente Obama está escandalizado. No
Brasil, a realização de um favela-bairro nacional, como pretendia
Ulysses, teria um custo de uns US$ 10 bilhões, uma fração dos
juros que o Banco Central paga a partir da política
monetário-financeira do presidente Meirelles. Esperemos que a mídia
faça a conexão entre a crise permanente das metrópoles brasileiras,
as tragédias visíveis e a política econômica oficial. Esperemos
que entidades como FAFERJ, a Pastoral de Favelas e a Fundação Bento
Rubião saibam dispor de uma pauta que vá além da queixa e situe a
prioridade metropolitana em seu devido lugar.

* Carlos Francisco Theodoro M. Ribeiro de Lessa é professor emérito
de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.